Tuesday, October 29, 2013

Um Hamlet de mente aberta

Contrariando o seu nome a Associação Ar Quente ofereceu uma lufada de ar fresco a quem assistiu à sua última produção. Open Hamlet foi uma agradável surpresa no panorama teatral algarvio. Pela irreverência, pela ousadia, pela excelência do trabalho de encenação de João Garcia Miguel. Segundo a produção, “Hamlet tem tanto de aterrador como de desconcertante: a velocidade do seu pensamento, sensível em extremo e demolidor na forma como baralha e aniquila aqueles que o pretendem enganar ou apenas aproximar-se dele; os jogos existenciais, que o levam a fingir-se de louco, de forma a testar os seus limites e a provocar o engano dos outros que o vigiam; os constantes solilóquios acerca das suas experiências e contradições pessoais; a crueldade para com Ofélia, para consigo mesmo e para com todos os que o procuram apaziguar; a sua teimosia e honestidade roçam a ingenuidade e a bestialidade e terminam em tragédia pessoal e colectiva.” Para fazer juz a esta linha de pensamento a encenação procurou, dentro de algum caos aparente, uma linha dramatúrgica fracturante, por vezes quase Brechteana, que obriga o público a interrogar-se sobre a sua função na vida. O público entra na sala e é disposto em arena, sendo a frente de palco cada uma das faces do quadrado. Aquilo que ressalta à vista é a plasticidade do cenário: uns blocos cilíndricos em papel, quais tarolos de madeira, dividindo o espaço numa diagonal. Uma diagonal que desde logo separa o cunho psicológico das personagens. Hamlet e a sua mãe, Hamlet e o seu tio-padrasto Cláudio, Hamlet e Ofélia, Hamlet e o resto do mundo. Os figurinos, exóticos e insólitos, apontam para a ambiguidade das personagens. Hamlet é uma personagem do universo Shakespeareano, mas é também um ser com idiossincrasias comuns ao homem do séc. XXI. Os folhos que no séc. XVI enfeitavam o pescoço, o punho da camisa, descem nas personagens masculinas, interpretadas por Gil Silva e Ricardo Mendonça, formando uma saia que aponta para um esbater do género na assunção desses sentimentos. Por outro lado, a personagem feminina, interpretada por Teresa da Silva, é quase desprovida de ornamentos no figurino, uma transparência que se adequa à sua personalidade, à excepção da sua cabeça, enfeitada com um excêntrico penteado, onde se colocaram as flores características de Ofélia. Um pormenor no figurino de Ricardo Mendonça, para além do casaco aos losangos brancos e pretos, lembrando os salões do séc XVI e toda a simetria palaciana a preto e branco, é o contraste com a máscara assumida pelo actor de Groucho Marx. Hamlet, com o seu sentir trágico perante a existência, contrasta com o cómico do séc. XX que, curiosamente, assumia num dos seus textos cómicos mais assinaláveis, nunca aceitar ser membro de um clube que o aceitasse como seu membro. Esta aparente contradição pode ser uma alegoria da vida de Hamlet, pois o jovem príncipe da Dinamarca viveu toda a sua vida numa corte que, após a morte do rei seu pai, teve dificuldade em aceitá-lo como seu legítimo herdeiro. Muito interessante a irónica identificação encontrada entra a figura de Shakespeare e Fernando Pessoa. No espectáculo apresentou-se uma semelhança física mas a identidade procurada vai muito para além dessa parecença forçada. A identidade repousa no encontro de dois dos maiores vultos da literatura mundial que recriaram como ninguém este ser que se desliga de si mesmo e busca uma outra identidade que não a sua. Ofélia, protagonizada por Teresa da Silva, interpretou de maneira assinalável a dor de um amor não correspondido e a procura de uma identidade entre a actriz e a personagem. Senhora de uma voz notável ao nível do bel canto, Teresa da Silva presenteou o público com uma área operática. Mostrou uma personalidade afectada pela dor da perda ao colocar obsessivamente as ameias das muralhas à mesma distância entre si. Tal como colhia as flores silvestres, para fazer o colar, Ofélia construiu a muralha que a separou do mundo onde habitava o seu ideal romântico. Não seguiu para o convento, como Hamlet lhe ordenou, mas refugiou-se nos muros de nada da sua própria solidão e do seu próprio desgosto. Uma chamada de atenção para os muros que erguemos entre nós e os outros. Entre nós e as palavras. Daí o convite das personagens para o público os acompanhar numa coreografia, daí o convite para cada elemento do público pegar num cilindro que simbolizava a ameia dos castelos que erguemos à nossa volta e irromper pela cena adentro, lendo em uníssono o belíssimo poema de Mário Cesariny, You are welcome to Elsinore. O espectáculo termina com um momento belíssimo, com o público dentro do espaço de representação, partilhando com os actores as palavras do poetas: “Entre nós e as palavras, os emparedados /entre nós e as palavras, o nosso dever falar.” De assinalar o excelente jogo de luz, de som, e o trabalho de actor de Gil Silva, desocultando um inesquecível Hamlet.

2 comments:

Anonymous said...

Olá Ana. Fiquei deveras embalado com as suas imagens escritas sobre o nosso trabalho. Viu mais do que nós fizemos e isso é a magia do que os encontros sempre podem e exponenciam fazer. A acutilância do seu olhar e o poder observador e transformador que revela o seu texto permitiram me reviver por dentro as emoções que colocámos ali naquele tempo e lugar. Obrigado por isso. Foi como se regressasse a mim através do que escreveu. Algo de essencial aconteceu pelo simples facto de a ler. Um bem haja para si. JGM

Anonymous said...
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