Tuesday, October 29, 2013

A origem do mal

E se, por alguma espécie de sortilégio todos nós fôssemos obrigados a revelar a nossa mais recôndita natureza? O resultado não iria certamente dar razão a Rousseau. Antes se traduziria num inominável pesadelo. Foi esta a imagem que Olga Roriz soube transmitir através do seu mais recente espetáculo denominado Pets. O espaço do quotidiano, com objetos que permanecem na nossa memória coletiva, torna-se caótico pela necessidade de domesticação de um ser humano por outro. No início do espetáculo uma mulher chama por um homem como se de um cão se tratasse. Assobia-lhe, faz-lhe gestos carinhos com a mão, tenta que ele se encoste à sua perna, como se estivesse dominado. Essa imagem, absurda, transmuta-se nos absurdos do quotidiano traduzidos na violência com que um ser se impõe a outro, com que um ser impõe uma certa dose de violência a si próprio, ao seu espaço, ao seu tempo. Há um momento de euforia em que os sapatos de salto alto, a imagem por excelência da feminilidade que exercem uma violência extrema no corpo da mulher são libertados da sua função castradora. Os objetos são destituídos das suas funções quotidianas, as caixas abrem-se espelhando o seu conteúdo nocivo, remontando a Pandora. Só que estas caixas, esvaziadas de todo o mal, deixaram escorrer a esperança por entre os interstícios da maldade. As caixas abriram-se e deixaram de esconder os mundos que devemos ocultar. Tudo se evidencia num jogo de perversidade, crueldade e demência posto a nu perante o olhar cúmplice dos seus semelhantes. Em qualquer tipo de relação, das mais íntimas às mais distantes, há uma noção de domínio que impera entre os seres. Entre o Homem e o seu espaço, percorrendo todos os recantos por explorar. Entre o Homem e o Tempo, tentando vencer a inexorável e inadiável ditadura dos anos mantendo-se em forma para permanecer mais jovem. Entre o Homem e os objetos, moldando-os à medida das suas necessidades. Entre o homem e o seu semelhante, tentando vencer nos debates, nos gostos, no corpo, nos afetos. E se existem cenas brutais como um homem que domina uma mulher, sufocando-a numa tina com água, outras existem, mais subtis, que não se tornam menos cruas. A solidão de um homem que sucumbe ao comércio do sexo ou a necessidade de se gritar bem alto a nossa tristeza sem que ninguém nos ouça realmente pode colocar o ser humano abaixo de um limiar de compaixão partilhado por outros mamíferos. Pets, interpretado por Cristina Câmara, Maria Cerveira, Marta Lobato Faria, Bruno Alexandre e Pedro Santiago Cal exterioriza os alter-egos libertando-nos do socialmente correto, ao som de um suporte musical de excelência. Como afirma a produção deste espetáculo: “Pets é um espetáculo onde nos propomos observar o inatingível. O privado e o público. O quotidiano, a rotina e os hábitos. O silêncio e a solidão. Os lugares apertados. O espaço sem espaço. A acumulação de detritos. A reciclagem dos afetos, dos objetos dos sentidos. A azáfama e a inércia reciclada. As pequenas palavras. A procura dos nomes. As presas e as surpresas. Os jogos de poderes. A sedução. O desejo. O domador e o domesticado. As funções e disfunções. A dependência. Reações e confusões. A vivência possível. A ironia de uma partilha forçada. A falsa privacidade. O engano. O acaso. Brincar como se fosse ao acaso. Homens e mulheres afeiçoados por si próprios. Auto domesticados. Selvagens. Um espaço interior com paredes, portas e janelas imaginárias. A luz é apenas uma memória. O som da cidade dissipou-se no tempo. A clausura torna-se real.” E foi sobre esta clausura real que se consubstancia no domínio de um ser sobre si próprio que incidiu o espetáculo de Olga Roriz. E foi com o peso da última personagem, sobre a qual o home ia colocando toda a espécie de objetos, conduzindo-a com uma trela, que os espetadores saíram do teatro. Um soco no estômago das más consciências que suportam todo o tecido social. Um retrato brilhante das relações humanas na contemporaneidade.

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