Sunday, July 1, 2012

O Aqui

Uma tela horizontal marca o palco do Teatro das Figuras. Um pano que corre de um lado ao outro do palco, ocultando, desocultando. Uma projecção de imagens subaquáticas conduz-nos a um universo distante, quase paralelo, dentro do qual os sentidos captam o real de forma diferente. Ouve-se o som de um coração a bater e a voz da Natália Luiza a falar-nos sobre o Tempo. A noção de tempo que acelera e desacelera de acordo com o olhar de cada um perante o mundo. O seu mundo. O pano corre e desoculta-nos imagens de pessoas que estão fixas numa posição. O pano volta a fechar, volta a abrir e as posições mudam, como se fossem instantâneos captados num instante em que se segura o Tempo. Num momento todos podemos ser iguais. No instante seguinte há formas diferentes de gerir o Tempo. E foi a partir da gestão dessa diferença que surgiu o espectáculo O Aqui, coreografado por Ana Rita Barata, que teve o apoio de uma excelente equipa de criadores que contém Natália Luíza na dramaturgia, Pedro Sena Nunes na direcção artística e imagem e João Gil na criação da música original. O projecto da Companhia Integrada Multidisciplinar pretendeu criar um objecto artístico integrador com pessoas que sofrem diariamente do estigma da diferença e não fazer uma espécie de terapia através da dança. O resultado foi um espectáculo surpreendente e comovedor no qual os rimos dos diferentes intervenientes se adaptavam e criavam partituras coreográficas muito interessantes, com assinalável qualidade ao nível do movimento. A música, criada por João Gil, dava conta das mudanças de ritmo entre as situações e as personagens entre si, de forma harmoniosa e singular. O desenho de luz de Cristina Piedade soube criar uma atmosfera intimista que convida à partilha e à alegria de viver. Ao dançar a coreografia de Ana Rita Barata os intervenientes perdem o medo. O medo de não ter tempo, o medo de não conseguir enfrentar uma realidade que se tornou dolorosa. No espectáculo a dor deu lugar ao riso e ao movimento descontraído dos corpos que executaram composições a solo, a dois, em grupo, absolutamente notáveis. As cadeiras de rodas deslizavam pelo palco ou com pessoas a ocuparem um lugar em diversas posições. Todos os corpos se moviam, quer fosse por si, quer fosse por meio de um impulso exterior que lhes provocava uma capacidade motora que por vezes não possuíam de forma autónoma. No final o espectáculo foi comovente e belo, promovendo uma miríade de sentimentos. Houve uma unidade na imensa diversidade de pessoas, objectos, tempos, ritmos, afectos, diálogos. Composta por 13 pessoas, quatro bailarinos profissionais, dois técnicos da área da deficiência e sete pessoas portadoras de paralisia cerebral, a companhia tem recebido apoios do Centro de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian (CPRCCG), da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa (APCL) e do Instituto de Inserção Social. Os bailarinos profissionais são António Cabrita, Carolina Ramos, Catarina Gonçalves e Pedro Ramos, os técnicos são António Paiva e Carolina Santos e os intérpretes da APCL e CRPCCG são Adelaide Oliveira, Jorge Granadas, José Marques, Maria João Pereira, Paulo Benavente, Sílvia Pedroso, Yete Borges e Zaida Pugliese. Para a criação deste espectáculo, houve uma co-produção com o Teatro Municipal de São Luiz, a Vo´arte e com a co-apresentação do Teatro Camões. O desafio maior foi conseguido. Neste espectáculo os intérpretes foram sentidos pelo público como artistas que se expressaram através de um suporte artístico, de um corpo, apresentando-o num espectáculo, apagando a imagem do portador de deficiência. Este equilíbrio é fruto de uma capacidade artística e de uma sensibilidade notável. Reflexivo e divertido, comovente e belo. Um prazer que inunda os sentidos e obriga a pensar.

Um Mozart de chocolate

E se num espetáculo de ópera os cantores interpretassem as suas árias, representassem o seu papel e ainda mimassem o seu público oferecendo-lhe comida? O público pôde encontrar esse tipo de interação na companhia Laika, que se destaca na cena artística com a criação de um Teatro dos Sentidos. Nos dias 8, 9 e 10 de Junho os claustros da escola hoteleira em Faro lotaram os lugares previstos para receberem o espetáculo Ópera Buffa que aliou uma ópera criada a partir da obra Dom Giovanni, de Mozart tocada ao vivo, com teatro e culinária. O público foi convidado a sentar-se em mesas corridas de madeira que se constituíam como plataformas desniveladas, possibilitando a passagem dos atores/cantores por cima delas ao longo do espetáculo. Com a participação da Orquestra do Algarve, os cantores apresentaram-se assumindo o chefe de cozinha a identidade de D. Giovanni, o famoso sedutor. D. Giovanni seduz a bela e inocente Zerlina, que sucumbe aos seus encantos, mau grado os sentimentos de Masetto, o seu eterno apaixonado. Os atores/cantores começam por servir aos convidados uma bebida à base de gengibre, limão e menta. A distribuição dos pratos, dos copos, dos jarros está cuidadosamente encenada de forma divertida mas rigorosa. Nem um dos convidados fica sem talher, nem uma das mesas fica sem todos os apetrechos. O público colabora e vai degustando alegremente o que lhe é dado ao longo do espetáculo. Depois da bebida rosada e apetitosa os cozinheiros preparam o estômago dos espectadores com um caldo de castanha polvilhado com amêndoa ralada. Por esta altura uma das primeiras raparigas seduzidas por Giovanni, Elvira, surge enfrentando com fúria o abandono do incorrigível sedutor. Elvira confronta Giovanni e nessa discussão as messas servem de estrados aos seis cantores que se posicionam em várias alturas, dando uma outra dimensão a uma das áreas da conhecida ópera de Mozart. O público tem de afastar os pratos, os copos, os jarros com a bebida, sob pena da fúria de Elvira deitar abaixo um copo mais incauto. Ao longo da ópera o público ia sendo servido pelos cantores, que surgiam dos mais inimagináveis lugares. Um risotto de legumes foi o prato principal, ao qual se seguiram profiteroles regados com chocolate. Para o molho de chocolate as cantoras provocaram o apetite dos espectadores com um ritual no qual se derretia o busto do infame sedutor, feito de chocolate, para um depósito. O chocolate líquido tornou-se o elemento comum desta refeição comungada pelo público. A cabeça de Dom Giovanni tornou-se num deleite para os sentidos de todos, percebendo-se finalmente a razão pela qual ela afirmava não poder ser fiel a uma única mulher sob pena de estar a trair todas as outras que o desejavam. O espetáculo da companhia Laika, dirigido por Peter De Biee e Jo Roets cumpriu as expectativas, pois completou os prazeres dos olhos e dos ouvidos com um presente ao palato, culminando no chocolate, símbolo do desejo que se degusta e lambuza com prazer. O público aplaudiu entusiasticamente os músicos, os atores, os cantores e os cozinheiros pois, cada um na sua especificidade contribuiu para que o espetáculo enchesse de gozo artístico os sentidos. De facto, como prometido este espetáculo foi uma sumptuosa mistura de música, canto, teatro e chocolate. Uma palavra também de apreço e louvor aos alunos formandos da Escola Hoteleira do Algarve que, tendo confecionado toda a culinária do espetáculo, contribuíram para este caleidoscópio de prazeres. Este foi mais um dos espetáculos da rede Movimenta-te que pretende estabelecer uma rede entre os municípios de Faro, Olhão, Loulé, S. Brás e Tavira, como lugar crucial de encontros e fonte de criação artística.

Uma voz universal

Carolina Cantinho apresentou no Teatro das Figuras a sua criação Outra Voz. Uma criação feitas de pedaços de vozes que se juntaram numa harmonia de corpos. Um trabalho excelente de uma jovem coreógrafa.
“Outra voz é uma voz coletiva. Uma voz sem palavras que se faz ouvir e sentir”. Este foi o projeto que Carolina Cantinho concretizou no Teatro das Figuras. Acompanhada por Beatriz Gonçalves, Filipa Cavaco, Joana Glória e Sophia Rosa Carolina Cantinho conseguiu traduzir o conceito de comunidade num jogo de corpos e vozes que se articularam de forma convincente. As cinco intérpretes cruzam o espaço claro do palco do Teatro das figuras fazendo-se acompanhar de um microfone com um longo fio que as liga ao exterior. Elas são as vozes que escutam do exterior; seja de uma menina de 8 anos, seja de uma mulher madura. As vozes invadem as bailarinas, que cruzam os fios e interpretam as emoções dos penitentes corpos que aguardam uma ligação ao corpo dançante. E as bailarinas ouvem a voz, sentem a emoção e traduzem-na em movimentos. Ora subtis, ora violentos, ora solitários, ora coletivos, esses movimentos são sempre a escrita de uma súplica que vem da outra voz: a voz comum. Como diz Carolina Cantinho, “ Através de uma linguagem universal, vencemos as barreiras da língua e falamos com as emoções”. As emoções são transfiguradas em movimentos efetuados com rigor técnico pelas cinco bailarinas. Os movimentos falam porque estas jovens intérpretes da dança os sabem fazer falar. E escutar. Em três momentos os corpos repousam e dão protagonismo a outros corpos projetados na tela. Os corpos de onde tudo partiu. Os corpos que pertencem aos detentores das emoções que clamam por serem escutados. Os vídeos de Artur Rosa mostram o processo de criação de vinte e dois intérpretes que participaram nas formações que originaram este trabalho. No espetáculo as bailarinas conversam com as vozes trazidas pelos microfones. Articulam-nos de acordo com a altura dos seus interlocutores, interagem com esses objetos até a voz exterior se tornar presente. Quando o público assume a presença de uma outra voz, os microfones deixam de se fazer sentir presentes e tornam-se numa presença latente, fora do tapete onde tudo se transforma. A cena é aberta, por isso o espetador ode observar os cinco microfones assistindo atentos ao desenrolar do espetáculo. “O corpo é uma preciosidade física com o qual experienciamos a vida. A dança vem complementar essa experiência.” Carolina Cantinho afirmou. Os corpos, através de vozes que noticiam o quotidiano de um país em crise, confirmam. E foi importante que, a partir de vozes de cinco bailarinas, as notícias tivessem saído escorreitas, fluidas, mas também agressivas e cruéis. Essa crueldade de que também é feita a vida. Os movimentos foram pensados até ao ínfimo pormenor, permitindo às bailarinas dançarem em sincronia ou dentro da sua própria solidão, como acontece tantas vezes na vida. Por vezes a nossa voz encontra uma voz irmã, com a qual seguimos um percurso e, no momento seguinte, essa voz torna-se dissonante da nossa, divergindo, discutindo. Foi o que se verificou com a coreografia criada nesta Outra Voz: os corpos juntavam-se, separavam-se, havia encontros a dois, a três, até chegar a um encontro total que, não precisando de dançar em sincronia, se percebe numa harmonia das cinco intérpretes. Neste trabalho percebe-se já uma assinatura de uma jovem coreógrafa que, tendo começado a dançar segundo a matriz tradicional, se emancipou, devolvendo à arte uma forma de pensar coerente e original. No final do trabalho as bailarinas foram buscar os objetos que os formandos desta outra voz levaram para dar algo mais de si. E entre peluches, óculos de mergulhador, sapatilhas de dança e chapéus Carolina Cantinho soube devolver aos seus colegas de criação a sua voz genuína. Este foi um projeto que partiu do trabalho com vinte pessoas de várias idades onde não se traiu a ideia do coletivo. Pelo contrário: a outra voz deixou de ser tímida e singular para se tornar numa voz harmoniosa e universal. Carolina Cantinho é, desde 2004, formadora em Iniciação à Dança e em Dança Contemporânea em várias escolas de Faro, bem como bailarina coreógrafa da Companhia de Dança do Algarve, tendo obtido vários prémios de interpretação tanto a nível nacional como internacional.

Luis Vicente - A Assunção de um actor maior!

Dia 27 de Março, Dia Internacional do Teatro, a ACTA estreou a sua mais recente produção. O espetáculo começa com a assunção de um prólogo que enquadra o espetador na estética e na lógica do espetáculo. Com base no conceito de espaço vazio, de Peter Brook, Luis Vicente apresenta o espaço, que se vai enchendo de significações. Apresenta a cadeira, único objeto cénico assumido e desprende-se do ator para assumir a personagem. Luis Vicente guarda os óculos no bolso do casaco cinzento e imediatamente o rosto, o corpo se transfigura. A braços com um texto de grande violência psicológica, Luis Vicente interpreta um homem, Miguel Torres que, tendo nascido num meio adverso, alcançou uma prosperidade reconhecida a nível social. Cavalo Manco Não Trota, de Luis Del Val, é um texto que apresenta um limite ético quando a vida nos coloca perante o monstro que foi criado por nós. Luis Vicente assume a personagem ao longo de uma hora e meia, prendendo a atenção do espectador. Perante a barra do tribunal, Miguel Torres dirige-se ao juiz, fazendo um percurso pela sua vida, desde a infância até ao momento crítico em que teve de assumir um ato fatal. Tudo na vida de Miguel Torres estava a decorrer de acordo com o que Miguel quis fazer dela. Este homem foi um exemplo de um ser humano que domou a vida à sua maneira. A vida pregou-lhe a partida mais cruel que um pai pode sofrer. E Luis Vicente, sozinho, põe-nos diante de um drama que confronta várias famílias. O flagelo da toxicodependência é uma chaga que afeta de forma impiedosa aqueles que os amam. Do fundo do seu trabalho de ator Luis Vicente extravasa a simples interpretação para presentear o público com uma prestação de excelência, como é raro podermos presenciar na cena do teatro nacional. A não perder, num teatro perto de si.