Monday, August 8, 2011

Novos tempos, novos textos


Os tempos mudam, e nem sempre é para melhor. Com o advento da crise mundial os interesses e as necessidades dos cidadãos adaptam-se e ajustam-se a novas formas estéticas marcadas pelo engenho dos criadores. Passados trinta anos sobre a revolução que marcou a queda da ditadura em Portugal já se respira algum distanciamento para a revisitar e, sobretudo, para reflectir sobre os efeitos dessa alteração política. Ao nível sociológico, o que mudou? E a arte, acompanhou essa mudança?
Em Lisboa dois textos de teatro que fazem uma reflexão sobre a revolução de Abril foram levados à cena em contextos diferentes. Um, chamado Degraus, da autoria de Marcantonio Del Carlo foi levado à cena pelo grupo de teatro universitário ARTEC. O espetáculo, interpretado por onze estudantes universitários, faz uma abordagem ao vazio com que habitualmente nos deparamos quando damos a revolução por concluída. O texto, metafórico e cruel, mostra os vícios e os excessos cometidos no período pós revolucionário. A construção de uma nova ordem social anula a anterior mas nem por isso a melhora. Marcantonio evidencia os estereótipos dos “filhos da revolução”: o líder, o seguidor cego do líder e escrupuloso cumpridor da lei, a religião sempre ao lado do Estado e os artistas que, apesar de cantarem a revolução, não tomam parte nela. Estas são as figuras que estão em cima dos degraus. Têm sonhos comuns e alcançaram, cada um à sua maneira, o seu próprio degrau. Os outros são as flores da revolução. Apesar de flores, de terem crescido, como anunciava a canção, “Uma papoila crescia, crescia…” ficaram sem cor e sem esperança. As flores eram seres andrajosos e sem sujos. Mas portadores de asas e de uma alma pura. Cantavam melodias de raiva e inconformismo. E derrubaram o poder porque o poder lhes tinha roubado as asas. Derrubaram o poder e imitaram-no quando ascenderam aos degraus. E todos se queriam servir dos artistas para os ajudarem, quer a promover a ideologia, quer a recuperar o poder. Porque “são os artistas que têm as ideias”. As flores acabaram por recuperar as asas, não se sabe bem por quanto tempo, acabando o espetáculo com a gravação do Presidente da República anunciando a demissão do governo e a marcação de novas eleições legislativas para o próximo dia 5 de Junho. Uma chamada de atenção ao estado de coisas e ao estado de um país que é controlado por pessoas que falam “numa língua que ninguém entende mas que, felizmente, gostam do nosso peixe.” Um trabalho que, não saindo do âmbito escolar, foi interpretado por onze excelentes actores, dois deles, David Canário e Miguel Ponte, acabadinhos de chegar de um Clube de teatro sedeado em Faro. Um texto que convida o espectador a manter-se alerta com as ratoeiras da democracia.
O segundo texto, Álbum de Família, de Rui Herbon, foi o vencedor do grande prémio de Teatro Português 2010 SPA / Teatro Aberto. Este texto, apesar de ter sido escrito por um autor nascido na altura da revolução, não tendo passado de forma directa pelas experiências descritas, é um documento tocante pela verdade dos pormenores mais inquietantes. Este texto foi encenado por Tiago Torres da Silva para o Teatro Aberto e interpretado por Catarina Avelar, Catarina Wallenstein, Fernanda Neves, Jorge Carrula e José Eduardo. O espetáculo tornou-se num documento emocional, uma vez que põe a nu as inquietações de uma família de classe média baixa em meados dos anos setenta em Portugal. Uma família com o pai, a mãe, os cinco filhos e as memórias dos seus mortos – a avó – e dos vivos distantes – o professor, o tio padre, a vizinha, o enfermeiro.
No espectáculo de Tiago torres da Silva sente-se o medo, o desespero, a vergonha de poder ser apanhado em falso, a obediência cega a qualquer directriz, mesmo injusta. Uma família que parte de comboio juntando à pressa os seus parcos haveres. Na bagagem o álbum de família e a avó, que, mesmo morta, viaja com eles. Quem tem os bilhetes? Quem responde ao revisor? Quem ousa cantar para matar o tempo? Neste Portugal profundo o medo e a vergonha imperam nas consciências. Não se pode cantar os parabéns a uma criança na sala de espera de um comboio porque alguém pode entrar. Não se pode cantar no comboio porque o revisor pode aparecer. Não se pode gostar de viver porque se pode começar a exigir condições para que a qualidade de vida melhore. Neste espectáculo a música de Pedro Jóia ajuda a encontrar a emoção adequada ao estado de espírito que se vivia na época anterior ao 25 de Abril de 1974. As pessoas obedeciam e rezavam. E no final, quem tem os bilhetes? Quem pode sair da miséria cultural a que todos nós estávamos votados?
Essa miséria, esse medo, ainda que camuflado, essa vergonha de nos assumirmos como povo dotado de uma identidade cultural única está a voltar aos poucos e é preciso que novos textos surjam para que mais espectáculos possam abanar as consciências, sobretudo as dos mais jovens. De que me serve uma formação se me espera o desemprego? De que me serve qualificação, se me espera uma função descartável? De que me serve ter entrado para a universidade se os meus pais vão ser despedidos? De que me serve uma família se não há dinheiro para uma casa? De que me serve a arte, se não for para me interrogar acerca do sentido de tudo isto?

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