Monday, August 8, 2011

Em casa no jardim zoológico


Edward Albee escreveu, Dinarte Branco encenou e interpretou, e Tomé Quirino e Leonor Salgueiro acompanharam-no na interpretação. Dinarte Branco justifica a sua escolha: “Edward Albee, escolha consciente e direccionada. Um contemporâneo que através da sua atenção e sensibilidade permitiu questionar esta nossa, e também sua, condição Humana. Criando assim, particularmente na peça “ At Home at The Zoo” uma discussão e um debate com a nossa própria consciência sobre o que é vivermos nesta massa contemporânea que faz de nós seres limitados e não pensantes. Tudo isto provoca assim uma espécie de espelho perante a nossa própria racionalidade fornecendo-nos a nitidez necessária na compreensão deste modo pseudo-perfeito, egoísta, alienado, apático e materialista, em que nos permitimos existir, o modo como ignoramos o outro, mesmo quando o outro é a pessoa que dizemos amar. Albee consegue-o não dando respostas mas colocando perguntas que enquanto espectadores não podemos deixar de considerar.” Em Casa no Jardim Zoológico, trazido a Faro pelo Centro de Artes Performativas do Algarve, mostrou o texto completo de Albee, do qual ainda só tínhamos tido oportunidade de apreciar as memoráveis interpretações de Pedro Ramos e J.P Naylor no texto inicial, Zoo Story, escrito em 1958 e produzido pela ACTA em 2001. Peter, um menino mimado da vida, é interpelado por Jerry, um homem desequilibrado, que giza um plano para se suicidar. Nesse confronto, apoiado pelo brilhante texto de Albee, revela-se a animalidade do conformado e decente Peter, tema, aliás, a que Albee regressa de forma recorrente. O texto A Cabra, ou quem é Sílvia, é disso o seu exemplo mais radical. Esta segunda parte, a original do texto de Albee, foi protagonizada por Dinarte Branco (Peter) e Tomé Quirino (Jerry). A relação entre os dois atores é forte mas o facto de Dinarte Branco ter optado por uma fúria contida para a personagem de Jerry faz com que o desequilíbrio entre os dois homens se atenue, permanecendo ao nível das palavras. O modo estático de Jerry aproxima-o do ser estável e integrado de Peter. No final as situações invertem-se e a bestialidade de Peter, que deveria ter sido mais evidente em Jerry, assume-se e Jerry adota uma atitude mais seráfica e consciente. Este ato é, por si mesmo, brilhante, até porque a partir das poucas palavras que Peter profere, o espetador consegue penetrar no interior do seu quotidiano seguro e confortável. Por isso foi a peça chave para o lançamento de inúmeros jovens atores, pelo jogo de contenção e violência, pela descoberta que obrigada a fazer.
Cinquenta anos depois Albee escreve a primeira parte, ou seja, o enquadramento de Peter na sua vida familiar confortável. Nessa vida, que o espetador já tinha visitado através das inúmeras vezes que viu Zoo Story, as palavras confirmam a suspeita e a gestão das pausas e dos silêncios ampliam o sentimento de indiferença e quase abandono polido que o casal vive. A interação de Dinarte Branco e Leonor Salgueiro é desequilibrada, não porque o texto assim o exija, como o faz na segunda parte, mas porque o desempenho dos atores é por si só desequilibrado. O olhar terno e cúmplice de Dinarte Branco é o olhar adequado, enquanto que toda a atitude cénica que Leonor Salgueiro mostra é inadequada, falsa e imatura. Os silêncios, os risos, a procura do cigarro que tira e volta a colocar na bolsa, as saídas à procura do esparregado, as investidas quando diz: “Precisamos de falar…” não são as de uma mulher que partilha a vida, os afetos, as filhas, os periquitos, os gatos, as televisões e os microondas há tempo suficiente para sofrer com a ausência e a calidez de uma relação. Dinarte Branco está perfeito no seu papel de pai de família e cidadão anódino que se deixa conduzir pelos acontecimentos, não exigindo mais da vida a não ser o conforto que havia planeado. Leonor Salgueiro mostra-se desconfortável no papel de uma mulher que, apesar de amar o seu marido, sonha com momentos arrebatadores de paixão. Talvez por ter sido escrito por um homem, há momentos no discurso de Ann que muito dificilmente seriam atribuídos ao discurso de uma mulher madura, como é o caso do pensamento obsessivo da mutilação dos seios como medida profilática para o cancro da mama, ou a confusão lamentável que compara a circuncisão à excisão do clítoris, colocando no mesmo saco uma medida profilática e uma prática bárbara e cruel, que como mutilação análoga, apenas pode corresponder à castração. Esta confusão de puro mau gosto e algum desconhecimento causa mal-estar, até por partir da mulher a referência à tranquilidade que essa prática exerce, uma vez que se acaba de vez com a infidelidade. Este tipo de observação extrapola a pura provocação, abrindo caminhos à estupidez. E Ann não é uma mulher estúpida nem desinformada. É educada, sofisticada e provocadora, o que não é coerente com as considerações aberrantes que tece no seu discurso.
Não é só o banco, a fantástica peça cenográfica que se impõe no espetáculo, que aponta para o desequilíbrio entre as personagens. O próprio texto, sobretudo o primeiro, torna-se não só desequilibrado mas também desadequado quando Ann começa a tecer considerações que estão longe do sentir feminino. Esta prequela ao texto Zoo Story enquadra Peter dentro da sua jaula, da sua gaiola de conforto dourado. Mostra Ann como uma mulher insatisfeita, não com uma vida dorida, mas com uma vida de esquecimento. Ann diz ao seu marido “temos de falar” e ele não a ouve, de tão embrenhado que está no seu trabalho: “O livro mais aborrecido do mundo”. Provoca o marido dizendo que tem vontade de ir à rua de noite, quando ele está a dormir, e de se exibir nua aos transeuntes. Pede-lhe um pouco mais de paixão, a paixão que ele tem medo de demonstrar porque é demasiado civilizado para a magoar. A paixão e a bestialidade que ele é obrigado a mostrar fora das grades, no banco do Central Park, quando se confronta com a figura do desregramento. Comete o ato mais bárbaro sem intenção, fugindo de volta para a sua gaiola dourada, como os periquitos que conserva no quarto das filhas. Um final brilhante, como há 50 anos. Um início desnecessário, porque desadequado ao sentir feminino.

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