Monday, August 8, 2011

Duas actrizes à procura de um texto


A bruxa Teatro tem desenvolvido um ciclo subordinado ao tema “O Outro Lado da Alma”. Dele fizeram parte espectáculos como Stabat Mater Furiosa, de Jean-Pierre Siméon, O Coleccionador, de Mark Healy, ou Antígona em Nova Iorque, de Janusz Glowacki. Em todos eles, para além da temática corrosiva e fracturante, assistimos a desempenhos dignos de registo e de memória por parte dos atores. De realçar o desempenho de Ana Leitão, em Stabat Mater Furiosa, que excedeu o plano da excelência da representação e ofereceu ao público uma nota do sublime que se pode esperar de um espectáculo.
Música no Vale, de John Ford Noonan explora a doença mental e a ténue barreira que separa a sanidade da patologia. De acordo com o autor do texto, “para vivermos uma vida especial precisamos de comida, atenção e permissão.” A permissão para podermos concretizar os nossos sonhos. A de John Noonan veio através do Rock-n-roll. A dos outros seres humanos pode vir tanto da música, de qualquer música, como de qualquer outro deslumbramento estético que faça despoletar a coragem para assumir os sonhos. John Noonan deu a Claire e a Margot a mesma possibilidade de sentirem a sua luz. No caso de Claire foi a música de Bruce Springsteen, no de Margot os temas que soaram no Festival de Woodstock. Duas mulheres complexas, com variações de humor, com distúrbios mentais bem diversos são internadas numa clínica para doentes mentais e obrigadas a partilhar o mesmo quarto. Claire comunica através da música e de uma enorme exuberância. Margot faz de um enorme ursinho de peluche o seu alter-ego, comunicando através dele e privilegiando o conforto do seu silêncio. Depois de Claire ter dançado enfaticamente ao som do seu ídolo Margot chega ao quatro discreta, com um casaco que lhe esconde a figura, um casaco que lhe esconde o rosto e um urso que lhe esconde a personalidade. O confronto entre as duas mulheres é inevitável e o contaminado de cumplicidade é, por seu lado, previsível. O quotidiano das duas mulheres preenche-se então de memórias, alucinações, criações fantásticas, efabulações e fantasmas dos quais fogem a para os quais regressam. Claire foge da sua mitomania, regressando a ela sempre que se sente ameaçada. Margot foge da sua dupla identidade, em nome da qual foi expulsa do colégio onde dava aulas. As duas confrontam-se, medem-se, e num jogo ardiloso e felino observam-se e conseguem retirar a outra do limbo em que cada uma mergulhou. Esse jogo, no entanto, nunca esteve apurado ao nível do trabalho de atriz. O tormento psicológico que cada uma, à sua maneira, sofria, não passou para o público de forma convincente. Os conflitos pessoais, as disparidades de ritmo, as alterações de humor foram apresentadas de forma superficial e ligeira, fazendo com que o próprio texto perdesse ritmo na primeira parte do espetáculo. Ana Amorim e Marta Rosa revelaram não estar ainda à altura de um papel que exige tanta complexidade psicológica como a das personagens que interpretaram.
O texto evolui para uma cumplicidade que leva as duas personagens a um plano muito próximo do padrão da normalidade. Claire começa a assumir as mentiras que cria e nas quais acredita e Margot consegue enfim libertar-se da rigidez histérica em que tinha caído, começando mesmo a dar aulas de dança. A tímida professora de latim, culta e metódica, ouve a música no vale através das memórias que evoca do Festival de 1969 e a exuberante mulher dona de um corpo portentoso começa a ouvir e, também ela a saber deitar por fora o boião de raiva que pinga até se transformar em lágrimas. E ambas aceitam encarar a luz. Margot de uma forma mais convencional. Claire, de forma mais dissimulada, acabando no final por aceitar o presente de Margot, cuja sonoridade a invade e purifica como um ritual de renovação. O facto do comportamento de Claire se apresentar demasiado histriónico perturbou a profundidade do papel. Por outro lado, não passou para o público a noção de que Margot era uma mulher de meia-idade, pela ligeireza com que Ana Amorim interpretou a personagem. Só pelas contas que o texto sugeria se chegava à conclusão de que Margot não era uma rapariga de idade próxima da Claire.
As transições de cena tornaram-se repetitivas e previsíveis. Mas a encenação de Figeira Cid, privilegiando o pormenor conseguiu dar a uma cenografia quase assética um caleidoscópio de emoções de que as atrizes se puderam socorrer.
Música no Vale é uma metáfora sobre o encontro de cada um consigo mesmo, que por vezes tem de ser desbloqueado por uma música estridente, ou mesmo pela descoberta de uma luz que pode ser a paixão pela dança ou a capacidade de ouvir o outro. Um texto com inúmeras potencialidades que não chegou a ser encontrado pelas duas atrizes que o defenderam.

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