Sunday, February 27, 2011

A insustentável leveza do Fado


Entra-se no TEMPO e deparamo-nos com uma cenografia que não nos deixa indiferentes. Quatro cubos translúcidos, iluminados por uma luz azul, estão no palco, limitando o espaço sobre o linóleo branco. Ao fundo um paralelepípedo igualmente translúcido iluminado pela mesma luminosidade azul. Na vertical, criando a ilusão de uma parece, uma série de quadrados suspensos em vários tons de azul. Entram os músicos: Filipe Lucas na Guitarra Portuguesa, André Santos na viola e Max Ciuro na viola baixo. Começam a encantar-nos com os acordes iniciais de um fado, cantado ao vivo por Joana Melo. Os bailarinos entram e iluminam a cena. Não foi apenas a luz que aumentou a intensidade. Foi antes a vibração dos corpos, a energia, a carga dramática, a técnica apurada emanada daqueles corpos que iluminou o espectáculo do princípio ao fim.
Nuno Cardoso concebeu um espectáculo de homenagem ao fado no qual se iluminou esta canção a partir da sua alma. E a sua alma encontra-se no riso das varinas, nas brigas entre os gingões, na dança dos corpos quando se enamoram, nas noites de paixão, de solidão e de desalento. Nuno Cardoso criou um espectáculo assente em fados que cantavam Lisboa, dançando a essência da Cidade Branca, presente nos sorrisos dos bailarinos na cumplicidade dos olhares, nos voos dos corpos, dançando com a poesia presente nas palavras de Fernando Pessoa, Alexandre O’Neill, José Carlos Ary dos Santos, ou mesmo Amália.
A companhia de Dança Quorum Ballet trouxe-nos um espectáculo com a qualidade a que já nos habituou, dançando o fado de forma arrojada e inovadora. O privilégio de ter no palco os músicos e a cantora interpretando ao vivo os temas dançados confere uma força especial à própria dança. As coreografias foram concebidas tendo em vista a desmistificação desta canção como exclusiva do lamento ou da saudade. Nestas coreografias o fado vibra de vida, paixão e cor. A essência do fado vadio pode encontrar-se no suor destes bailarinos que amam, sofrem, vivem e sucumbem sob o peso das emoções.
De realçar os momentos em que a bailarina dança o fado Nem às Paredes Confesso, de Maximiano de Sousa, numa tina cheia de água. A sensação de sufoco de uma relação que não pode ser assumida é magistralmente apontada naquela plano em que quase se partilha o corpo nos dois estados e quase se sucumbe de amor.
O outro momento intenso é quando se dança o fado Barco Negro de David-Mourão Ferreira. Os bailarinos penetram do lado de dentro da parede falsa, de onde se vislumbram numa visão translúcida que revelam um sentimento ambíguo e de desespero. O fado em que a mulher do pescador não quer acreditar na sua morte é dançado sob uma chuva intensa, como se todo o corpo chorasse a trágica notícia, é um momento de intensa emoção onde a própria cenografia chora com os corpos dos bailarinos a perda de um amante.
O final é uma festa de emoções onde os elementos se fundem na dança. Os cubos abrem-se e os bailarinos podem mergulhar os corpos no líquido brilhante que contêm. É a euforia causada pela música porque “Se ser fadista é ser triste, é ser lágrima prevista, se por mágoa o fado existe, então eu não sou fadista!”
Dançado por Daniel Cardoso, Elson Ferreira, Filipe Narciso, Gonçalo Andrade, Inês Godinho, Inês Pedruco, Mathilde Gilhet e Theresa da Silva C., este espectáculo aliou o virtuosismo à emoção e arrebatou o público do TEMPO que o aplaudiu efusivamente. Uma vez mais, uma fantástica criação de Daniel Cardoso.

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