Sunday, August 14, 2011

Antígona em Mérida: um deleite para os sentidos


Como em Agosto os espetáculos de teatro escasseiam no Algarve, os amantes desta arte, que até estão mais disponíveis para refletir sobre textos mais complexos, porque estão de férias, têm de se meter ao caminho e procurar fora da região aquilo que por cá não existe. E o destino, de há uns anos a esta parte, tem sido a cidade espanhola de Merida. A 400 quilómetros de Faro, sem portagens, Merida é, nos meses de Julho e Agosto a capital do teatro clássico. Este ano, a consagrada atriz espanhola Blanca Portillo foi nomeada diretora do Festival. Pela primeira vez em 57 anos este Festival Internacional de Tema Clássico foi dirigido por uma mulher, e como mulher, Blanca Portillo acredita profundamente nos valores do feminino. Daí este ano o festival girar em torno da figura feminina, possibilitando assim uma homenagem a esse universo feminino onde, nas palavras de Blanca Portillo, prima o sangue, a força das emoções, a luta pela paz, a energia da terra perante a ordem, a luta pelo poder e a racionalidade do mundo masculino”. Este ano foram apresentadas em Merida três versões da Antígona. A primeira, Antígona de Merida, de Miguel Murillo, recorda Mérida no ano de 1936, quando as tropas nacionais entram em Mérida. Uma jovem atriz quer recuperar o cadáver do seu irmão morto em combate. A segunda, a Antígona do séc. XXI, mostra os desafios da mulher atual procurando interpretar os mitos clássicos.
Antígona de Sófocles foi revisitada por Mauricio García Lozano. O encenador assumiu o texto integral de Sófocles, evidenciando os conflitos patentes nas várias dicotomias clássicas – homens contra mulheres, jovens contra velhos, indivíduos contra a sociedade - convidando o espetador a fazer uma nova leitura dramatúrgica através das coreografias de Ronald Savkovic.
O espectáculo começa com Antígona desocultando um pequeno piano de criança. Toca umas notas dispersas e é interpelada pela irmã. Discutem sobre a lei de Creonte e Antígona decide resolutamente enterrar o irmão. Saem de cena e entram de rompante dezenas de jovens raparigas correndo pela cena, felizes e envergando uns vestidos diáfanos. Depois entra o coro, protagonizado por homens brutos, guerreiros acabados de chegar de uma guerra, que com a sua força bruta destroem a fragilidade e a beleza das raparigas, assassinando-as. Depois dos ritos fúnebres devolvem-nas ao mundo subterrâneo, o mundo dos mortos, onde permanecem quietas, quais espíritos das águas profundas. O conflito entre a lei dos homens, simbolizada por Creonte e a lei da tradição e do respeito à família, simbolizada por Antígona faz-se sentir ao longo de todo o espetáculo, tendo o seu ponto alto no confronto direto entre as duas personagens e na discussão entre Hémon e seu pai, Creonte. Antígona decide morrer e fica sozinha, fechada na sua solidão. Nesse momento o anfiteatro romano é envolvido por uma cobertura prateada, que exalta a figura de Antígona, mostrando que não quer o mal de ninguém não quer desrespeitar a lei, mas há obrigações que os vivos têm para com os seus mortos. Quando vai para a tumba enverga um magnífico figurino, misto de vestido e jaula, caminhando resolutamente para a morte. Quando chega à beira da entrada para a morte, na boca de cena, deixa-se cair para os braços das deusas subterrâneas que a esperam na orquestra, transformada num tanque com água. Nessa dimensão do Hades Antígona é libertada de todas as cadeias, despindo o vestido prisão. Torna-se numa divindade dos rios subterrâneos envergando uma veste diáfana e contribuindo para o bem-estar daquele mundo. No mundo real Creonte acaba sozinho, fechado no seu palácio, ajustando contas com os mortos que foram proliferando à sua volta e Antígona menina volta à cena inicial, tocando no piano as notas que recordava da infância, dos tempos de cumplicidade com o irmão. A este texto maior da história do teatro juntaram-se as coreografias contemporâneas de Ronald Savkovic. Fortes e cruéis, quando mostrava o universo masculino e etéreas e ofuscantes quando desocultava o universo feminino. Foi sobretudo através da gestão dos corpos que o espetáculo mostrava as dicotomias primordiais. Um dos momentos altos do espetáculo foi a entrada de Tirésias, interpretado por Blanca Portillo, que de forma notável deu ao adivinho a dimensão ambígua quanto à sexualidade, anunciando friamente a Creonte que “não demorará muito tempo que surjam no teu palácio gemidos de homens e de mulheres”. O mensageiro da desgraça não demora a ver cumpridas os seus augúrios e, numa cidade cheia de mortos, o espírito do amor eleva-se e vence sobre o ódio. Portentoso, tanto na interpretação, sobretudo de Blanca Portillo e de Antonio Gil, como na encenação e na música original. Foi pena as ninfas não terem assumido a nudez de forma integral quando descem ao mundo subterrâneo, assim como a figura de Antígona perdeu muito quando ao ser-lhe retirado o vestido não expôs a sua nudez de forma liberta e adulta. Na estreia houve alguns problemas técnicos que não imperiram, todavia, que as cerca de 3000 pessoas que quase lotavam o anfiteatro aplaudissem entusiasticamente de pé esta produção que, certamente ficará na memória. Mesmo com uma noite cuja temperatura não baixou dos 30 graus, o público seguiu atentamente o espetáculo, rendendo homenagem no final a toda a equipa que o protagonizou e produziu.

Monday, August 8, 2011

Aventureiros já sem aventura


Uma procissão, uma mulher que remenda as redes de pesca. Um sentir trágico e carregado, homens vestidos de negro vigiando todos os movimentos. Este é o início de 1974, o espectáculo do teatro Meridional, encenado por Miguel Seabra sobre o ano da revolução do 25 de Abril. Um espectáculo onde o espaço cénico e os figurinos de Marta Carreiras, aliados ao desenho de luz de Miguel Seabra e à música de José Mário Branco assumem uma assinatura distintiva da qualidade. As crianças brincam despreocupadas enquanto são vigiadas por agentes da repressão. Deixam de poder brincar e têm de aprender a marchar, mesmo que as forças lhes fujam. A escola não é um sítio de aprendizagem mas de correcção e castigos. A vida dos adultos tem de se defrontar com uma vigilância mais apertada e a candura dos primeiros namoros contrasta com as detenções e com as partidas para a guerra. Comovente a cena em que os soldados se despedem das mulheres e partem para um destino incerto de onde podem não voltar. Os casamentos, as relações que têm por base um certo tipo de violência muito lusa surgem como um retrato social simbolizado pela música e pelos corpos que se tornam felizes ou amargurados. O edifício social está suspenso numas caixas que descem do tecto, como se fosse um armazém onde todas as emoções estivessem bem arrumadas. Há um momento em que todo esse edifício desaba e as caixas caem, provocando o caos com a sua libertação. O povo entra em euforia num momento de suspensão. Como se aquele momento de felicidade pudesse durar a vida inteira. Mas no momento seguinte, quando se pretende arrumar a casa começam os desentendimentos e as discussões. E assim se vai construindo um pais, aos solavancos e desordenadamente. Até que chega a hora dos políticos. A azáfama dos assessores a cuidar do espaço, os cidadãos ávidos a aplaudir e os discursos vazios e desprovidos de sentido. Brilhante essa caricatura de um país onde “houve aqui alguém que se enganou”. Depois dos primeiros tempos de alguma confusão após a mudança de regime deparamo-nos com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia e com o esvaziamento de sentido que os gestos assumem de uma forma cada vez mais alarmante. O consumismo, a indiferença perante alguém que sucumbe ao seu lado, as conversas vazias de sentido e as palavras vazias de conteúdo. Nas festas as pessoas mostram-se como figurinhas que valem pelo invólucro, assumindo uma pose dos tempos hipermodernos. O homem dos novos tempos assume-se de acordo com o mercado, o indivíduo e os avanços científico-tecnológicos. O símbolo da revolução de Abril, exposto num museu, é esvaziado do seu sentido primordial e confundido com uma obra de um artista contemporâneo. O cidadão conseguiu o seu direito ao voto mas é tratado de uma forma descartável. E num mercado comum, onde sempre quisemos pertencer, damo-nos ao luxo de negligenciar as opiniões de outros cidadãos que, como nós, foram à procura de “outras paragens, entre outros povos, onde o suor, se faz em pão”. Mas o apelo da mestiçagem é mais forte e a força da música consegue unir o que a política não permite. Aos som de vários batuques as pessoas de diferentes nacionalidade e diferentes credos dançam juntas até que restam os injustiçados, os perfilados no medo, os filhos bastardos da vida que continuam à espera, olhando o futuro, ansiando por dias melhores.
Toda esta história foi narrada com o corpo, com canções, com a luz e com a plasticidade da cenografia. As palavras foram parcas mas as estritamente necessárias para o desenrolar da acção. Miguel Seabra soube proporcionar um deleite para os olhos, um verdadeiro bálsamo para os sentidos, numa época em que sobram as palavras e o discurso de torna desprovido de sentido.
No final Miguel Seabra leu um poema de Alexandre O’Neill, que foi musicado por José Mário Branco, como uma mensagem a ter em conta nestes tempos difíceis: “Perfilados de medo / agradecemos o medo que nos salva da loucura. / Decisão e coragem valem menos / E a vida sem viver é mais segura. // Aventureiros já sem aventura, / perfilados de medo combatemos /
irónicos fantasmas à procura /do que não fomos, do que não seremos. /Perfilados de medo,/ sem mais voz, / o coração nos dentes oprimido, /os loucos, os fantasmas somos nós. /Rebanho pelo medo perseguido, / já vivemos tão juntos e tão sós / que da vida perdemos o sentido... Foi um momento intenso, cantado a capela, recordando a todos que o teatro ainda pode ser uma arma.

Casamento em jogo


Casamento em Jogo, de Edward Albee, foi a proposta do Teatro da Trindade para o início da época estival. Encenado por Graça P. Corrêa conta com a participação de Rogério Samora e Cucha Carvalheiro. O texto, na boa tradição de Edward Albee tem um vetor satírico, abordando a realidade crua de um casamento de 30 anos, desgastado pela rotina e pela falta de aventura. Edward Albee, um dos dramaturgos que a ACTA trabalhou em 2000, com o texto Zoo Story, mostra a realidade de uma forma amarga, pincelando-a de uma ironia quase macabra. Se na sua primeira e brilhante peça de teatro, Zoo Story, a ação era protagonizada por dois homens desconhecidos, sendo um deles um sem abrigo, no texto Casamento Em Jogo o enredo submete um casal da classe média alta a um jogo de avanços e recuos verdadeiramente notável. A cenografia deslumbrante de Ana Vaz ajuda o espetador a entrar na intimidade requintada daquele casal. Um enorme estante de livros, jornais no chão, um belíssimo candeeiro de tecto, e espaço, muito espaço a mediar os sofás, protegidos por um majestoso cortinado vermelho que se impõe na cena. O espetáculo começa com a mulher deitada no sofá, lendo qualquer coisa que a faz soltar algumas gargalhadas. Momento depois chega o homem, pousa as chaves na mesa, a pasta na cadeira e diz: “Vou deixar-te”. Aquela frase, lapidar para a maior parte das relações, não parece surtir efeito na mulher que desdramatiza, perguntando-lhe se teve um dia mau. O homem insiste naquilo que diz ser a sua pretensão e, para ser levado a sério decide repetir a entrada. A mulher, uma vez mais, ironiza, encolerizando-o. O homem, desesperado por ser levado a sério, repete a entrada quatro vezes, levando a que a mulher proponha a instalação de uma porta giratória, mas que funcione a moedas, para poderem ganhar alguns trocos enquanto as entradas não se tornam perfeitas e triunfais. Na última entrada a mulher revela ao homem que estava a ler um livro escrito por si e que ainda não tinha sido editado, o que causou um enorme espanto no seu companheiro de 30 anos. Então depois de uma vida em comum ele descobre que afinal a sua mulher também escreve? Refeito do choque inicial, outro choque o espera: a sua mulher não só escreve, como escreveu um livro (O Livro dos Dias) sobre todos os seus momentos sexuais ao longo de 30 anos. Cerca de 3000. Estupefacto, o homem quer saber o conteúdo acerca do seu desempenho sexual. Ela lê-lhe algumas descrições. Umas são secas, com três ou quatro palavras. Outras mais profundas e poéticas, que ele ironiza, comparando a escritores norte americanos de relevo, como Henry James ou Hemingway. O jogo entre as personagens, interpretado de forma magnífica pelos atores, adensa-se e entre ofensas, contas com o passado, pedidos de desculpa e agressões físicas, o casal mostra o que tem sido a sua vida durante 30 anos. E, tal como na obra A Guerra dos Rosas, assistimos pelas descrições no Livro dos Dias, a um envolvimento terno e apaixonado, arrebatador que embevecia as pessoas que os olhavam. Ainda passeavam de mãos dadas aproveitando todas as oportunidades para descobrirem o corpo um do outro. Entretanto passaram 30 anos, criaram dois filhos e cometeram-se traições. Traições perdoadas tacitamente mas nunca esquecidas. Nunca apaziguadas pelo tempo, prontas a servirem de cavalo de batalha na primeira ocasião. O jogo oscila entre o “Vou deixar-te” e o “amo-te, sempre te amei e tu sabes disso”. Entre essas duas reflexões Rogério Samora e Cucha Carvalheiro oscilam entre uma ternura envolvente e uma violência levada quase ao limite. A noite acompanha as intensas e múltiplas variações do casal até que surge a manhã com a sua luz que rompe e invade os pensamentos mais sombrios. O homem afasta a cortina, vislumbra o jardim, e percebe que o seu lugar no mundo não é mudar de vida naquele momento. A sua missão é cuidar do jardim, uma vez mais. É cuidar de si e da sua relação, e daquela mulher que ao longo de 30 anos o amparou, resistindo a tudo por respeito e companheirismo. Aliás, é ela sempre quem conduz o homem ao longo da discussão. É ela quem coloca as cartas na mesa, quem dá o jogo e quem vence todas as partidas. O homem tenta dizer um discurso que elaborou muito bem no seu espírito, mas que resvala na dimensão daquela relação. Casamento em Jogo assume-se como um retrato das relações contemporâneas, vividas por homens e mulheres insatisfeitos e inseguros mas que se vão ajeitando um ao outro, como dois sapatos velhos se ajeitam à forma de andar dos pés que os calçam. Um momento de teatro notável protagonizado por dois atores de referência da nossa cena. Vale a pena dar um saltinho a Lisboa de quinta-feira a sábado e passar pelo Teatro da Trindade até dia 31 de Julho para apreciar este magnífico espetáculo.

Novos tempos, novos textos


Os tempos mudam, e nem sempre é para melhor. Com o advento da crise mundial os interesses e as necessidades dos cidadãos adaptam-se e ajustam-se a novas formas estéticas marcadas pelo engenho dos criadores. Passados trinta anos sobre a revolução que marcou a queda da ditadura em Portugal já se respira algum distanciamento para a revisitar e, sobretudo, para reflectir sobre os efeitos dessa alteração política. Ao nível sociológico, o que mudou? E a arte, acompanhou essa mudança?
Em Lisboa dois textos de teatro que fazem uma reflexão sobre a revolução de Abril foram levados à cena em contextos diferentes. Um, chamado Degraus, da autoria de Marcantonio Del Carlo foi levado à cena pelo grupo de teatro universitário ARTEC. O espetáculo, interpretado por onze estudantes universitários, faz uma abordagem ao vazio com que habitualmente nos deparamos quando damos a revolução por concluída. O texto, metafórico e cruel, mostra os vícios e os excessos cometidos no período pós revolucionário. A construção de uma nova ordem social anula a anterior mas nem por isso a melhora. Marcantonio evidencia os estereótipos dos “filhos da revolução”: o líder, o seguidor cego do líder e escrupuloso cumpridor da lei, a religião sempre ao lado do Estado e os artistas que, apesar de cantarem a revolução, não tomam parte nela. Estas são as figuras que estão em cima dos degraus. Têm sonhos comuns e alcançaram, cada um à sua maneira, o seu próprio degrau. Os outros são as flores da revolução. Apesar de flores, de terem crescido, como anunciava a canção, “Uma papoila crescia, crescia…” ficaram sem cor e sem esperança. As flores eram seres andrajosos e sem sujos. Mas portadores de asas e de uma alma pura. Cantavam melodias de raiva e inconformismo. E derrubaram o poder porque o poder lhes tinha roubado as asas. Derrubaram o poder e imitaram-no quando ascenderam aos degraus. E todos se queriam servir dos artistas para os ajudarem, quer a promover a ideologia, quer a recuperar o poder. Porque “são os artistas que têm as ideias”. As flores acabaram por recuperar as asas, não se sabe bem por quanto tempo, acabando o espetáculo com a gravação do Presidente da República anunciando a demissão do governo e a marcação de novas eleições legislativas para o próximo dia 5 de Junho. Uma chamada de atenção ao estado de coisas e ao estado de um país que é controlado por pessoas que falam “numa língua que ninguém entende mas que, felizmente, gostam do nosso peixe.” Um trabalho que, não saindo do âmbito escolar, foi interpretado por onze excelentes actores, dois deles, David Canário e Miguel Ponte, acabadinhos de chegar de um Clube de teatro sedeado em Faro. Um texto que convida o espectador a manter-se alerta com as ratoeiras da democracia.
O segundo texto, Álbum de Família, de Rui Herbon, foi o vencedor do grande prémio de Teatro Português 2010 SPA / Teatro Aberto. Este texto, apesar de ter sido escrito por um autor nascido na altura da revolução, não tendo passado de forma directa pelas experiências descritas, é um documento tocante pela verdade dos pormenores mais inquietantes. Este texto foi encenado por Tiago Torres da Silva para o Teatro Aberto e interpretado por Catarina Avelar, Catarina Wallenstein, Fernanda Neves, Jorge Carrula e José Eduardo. O espetáculo tornou-se num documento emocional, uma vez que põe a nu as inquietações de uma família de classe média baixa em meados dos anos setenta em Portugal. Uma família com o pai, a mãe, os cinco filhos e as memórias dos seus mortos – a avó – e dos vivos distantes – o professor, o tio padre, a vizinha, o enfermeiro.
No espectáculo de Tiago torres da Silva sente-se o medo, o desespero, a vergonha de poder ser apanhado em falso, a obediência cega a qualquer directriz, mesmo injusta. Uma família que parte de comboio juntando à pressa os seus parcos haveres. Na bagagem o álbum de família e a avó, que, mesmo morta, viaja com eles. Quem tem os bilhetes? Quem responde ao revisor? Quem ousa cantar para matar o tempo? Neste Portugal profundo o medo e a vergonha imperam nas consciências. Não se pode cantar os parabéns a uma criança na sala de espera de um comboio porque alguém pode entrar. Não se pode cantar no comboio porque o revisor pode aparecer. Não se pode gostar de viver porque se pode começar a exigir condições para que a qualidade de vida melhore. Neste espectáculo a música de Pedro Jóia ajuda a encontrar a emoção adequada ao estado de espírito que se vivia na época anterior ao 25 de Abril de 1974. As pessoas obedeciam e rezavam. E no final, quem tem os bilhetes? Quem pode sair da miséria cultural a que todos nós estávamos votados?
Essa miséria, esse medo, ainda que camuflado, essa vergonha de nos assumirmos como povo dotado de uma identidade cultural única está a voltar aos poucos e é preciso que novos textos surjam para que mais espectáculos possam abanar as consciências, sobretudo as dos mais jovens. De que me serve uma formação se me espera o desemprego? De que me serve qualificação, se me espera uma função descartável? De que me serve ter entrado para a universidade se os meus pais vão ser despedidos? De que me serve uma família se não há dinheiro para uma casa? De que me serve a arte, se não for para me interrogar acerca do sentido de tudo isto?

Em casa no jardim zoológico


Edward Albee escreveu, Dinarte Branco encenou e interpretou, e Tomé Quirino e Leonor Salgueiro acompanharam-no na interpretação. Dinarte Branco justifica a sua escolha: “Edward Albee, escolha consciente e direccionada. Um contemporâneo que através da sua atenção e sensibilidade permitiu questionar esta nossa, e também sua, condição Humana. Criando assim, particularmente na peça “ At Home at The Zoo” uma discussão e um debate com a nossa própria consciência sobre o que é vivermos nesta massa contemporânea que faz de nós seres limitados e não pensantes. Tudo isto provoca assim uma espécie de espelho perante a nossa própria racionalidade fornecendo-nos a nitidez necessária na compreensão deste modo pseudo-perfeito, egoísta, alienado, apático e materialista, em que nos permitimos existir, o modo como ignoramos o outro, mesmo quando o outro é a pessoa que dizemos amar. Albee consegue-o não dando respostas mas colocando perguntas que enquanto espectadores não podemos deixar de considerar.” Em Casa no Jardim Zoológico, trazido a Faro pelo Centro de Artes Performativas do Algarve, mostrou o texto completo de Albee, do qual ainda só tínhamos tido oportunidade de apreciar as memoráveis interpretações de Pedro Ramos e J.P Naylor no texto inicial, Zoo Story, escrito em 1958 e produzido pela ACTA em 2001. Peter, um menino mimado da vida, é interpelado por Jerry, um homem desequilibrado, que giza um plano para se suicidar. Nesse confronto, apoiado pelo brilhante texto de Albee, revela-se a animalidade do conformado e decente Peter, tema, aliás, a que Albee regressa de forma recorrente. O texto A Cabra, ou quem é Sílvia, é disso o seu exemplo mais radical. Esta segunda parte, a original do texto de Albee, foi protagonizada por Dinarte Branco (Peter) e Tomé Quirino (Jerry). A relação entre os dois atores é forte mas o facto de Dinarte Branco ter optado por uma fúria contida para a personagem de Jerry faz com que o desequilíbrio entre os dois homens se atenue, permanecendo ao nível das palavras. O modo estático de Jerry aproxima-o do ser estável e integrado de Peter. No final as situações invertem-se e a bestialidade de Peter, que deveria ter sido mais evidente em Jerry, assume-se e Jerry adota uma atitude mais seráfica e consciente. Este ato é, por si mesmo, brilhante, até porque a partir das poucas palavras que Peter profere, o espetador consegue penetrar no interior do seu quotidiano seguro e confortável. Por isso foi a peça chave para o lançamento de inúmeros jovens atores, pelo jogo de contenção e violência, pela descoberta que obrigada a fazer.
Cinquenta anos depois Albee escreve a primeira parte, ou seja, o enquadramento de Peter na sua vida familiar confortável. Nessa vida, que o espetador já tinha visitado através das inúmeras vezes que viu Zoo Story, as palavras confirmam a suspeita e a gestão das pausas e dos silêncios ampliam o sentimento de indiferença e quase abandono polido que o casal vive. A interação de Dinarte Branco e Leonor Salgueiro é desequilibrada, não porque o texto assim o exija, como o faz na segunda parte, mas porque o desempenho dos atores é por si só desequilibrado. O olhar terno e cúmplice de Dinarte Branco é o olhar adequado, enquanto que toda a atitude cénica que Leonor Salgueiro mostra é inadequada, falsa e imatura. Os silêncios, os risos, a procura do cigarro que tira e volta a colocar na bolsa, as saídas à procura do esparregado, as investidas quando diz: “Precisamos de falar…” não são as de uma mulher que partilha a vida, os afetos, as filhas, os periquitos, os gatos, as televisões e os microondas há tempo suficiente para sofrer com a ausência e a calidez de uma relação. Dinarte Branco está perfeito no seu papel de pai de família e cidadão anódino que se deixa conduzir pelos acontecimentos, não exigindo mais da vida a não ser o conforto que havia planeado. Leonor Salgueiro mostra-se desconfortável no papel de uma mulher que, apesar de amar o seu marido, sonha com momentos arrebatadores de paixão. Talvez por ter sido escrito por um homem, há momentos no discurso de Ann que muito dificilmente seriam atribuídos ao discurso de uma mulher madura, como é o caso do pensamento obsessivo da mutilação dos seios como medida profilática para o cancro da mama, ou a confusão lamentável que compara a circuncisão à excisão do clítoris, colocando no mesmo saco uma medida profilática e uma prática bárbara e cruel, que como mutilação análoga, apenas pode corresponder à castração. Esta confusão de puro mau gosto e algum desconhecimento causa mal-estar, até por partir da mulher a referência à tranquilidade que essa prática exerce, uma vez que se acaba de vez com a infidelidade. Este tipo de observação extrapola a pura provocação, abrindo caminhos à estupidez. E Ann não é uma mulher estúpida nem desinformada. É educada, sofisticada e provocadora, o que não é coerente com as considerações aberrantes que tece no seu discurso.
Não é só o banco, a fantástica peça cenográfica que se impõe no espetáculo, que aponta para o desequilíbrio entre as personagens. O próprio texto, sobretudo o primeiro, torna-se não só desequilibrado mas também desadequado quando Ann começa a tecer considerações que estão longe do sentir feminino. Esta prequela ao texto Zoo Story enquadra Peter dentro da sua jaula, da sua gaiola de conforto dourado. Mostra Ann como uma mulher insatisfeita, não com uma vida dorida, mas com uma vida de esquecimento. Ann diz ao seu marido “temos de falar” e ele não a ouve, de tão embrenhado que está no seu trabalho: “O livro mais aborrecido do mundo”. Provoca o marido dizendo que tem vontade de ir à rua de noite, quando ele está a dormir, e de se exibir nua aos transeuntes. Pede-lhe um pouco mais de paixão, a paixão que ele tem medo de demonstrar porque é demasiado civilizado para a magoar. A paixão e a bestialidade que ele é obrigado a mostrar fora das grades, no banco do Central Park, quando se confronta com a figura do desregramento. Comete o ato mais bárbaro sem intenção, fugindo de volta para a sua gaiola dourada, como os periquitos que conserva no quarto das filhas. Um final brilhante, como há 50 anos. Um início desnecessário, porque desadequado ao sentir feminino.

Visita guiada a Dublin


A jovem companhia irlandesa The Company construiu um espetáculo que mostra a odisseia de quatro amigos pelas ruas de Dublin. O espetáculo, criado e interpretado por Brian Bennett, Nyree Yergainharsian, Rob Mcdermott e Tanya Wilson, começa com um momento coreográfico em que os quatro atores empilham e distribuem caixas de cartão pelo espaço. À semelhança das peças de construção usadas para fazer brinquedos os atores sugeriam diversos tipos de construção como uma casa, um quarto, uma sala de refeições, o interior de uma casa, o interior de uma cidade. O pulsar das ruas, o trânsito, o movimento de Dublin. Quatro amigos que partem à descoberta de uma cidade descrevendo o seu dia, à semelhança de Joyce, quando embarca na viagem através do Bloom.
A viagem, depois do arrumar da cidade, começa com um despertar, a higiene matinal, a escolha do guarda-roupa e a primeira refeição partilhada. As caixas tomam formas diferentes e obrigam o espetador a assumir uma compreensão diferente para cada elemento cénico. A crítica mordaz à religião que ordena e domina as refeições está apontada na obsessão de dar graças antes de as partilhar. Depois, na exploração da cidade, cada elemento conta a história á sua maneira. O macho mais agressivo coloca todos os amigos a viverem a cidade de acordo com a sua passagem. Ele passa e os outros observam. Ele vive e os outros fazem o possível por merecerem viver ao pé dele. Mas esta descrição, sempre articulada com as caixas de cartão desenhando a cidade de pedra e cal, cai por terra quando um outro elemento começa a contar a sua odisseia na cidade. É uma rapariga jovem bonita e loura, e, pela sua descrição, não simpatiza muito com o primeiro rapaz. Acha-o convencido e, apesar de não se conseguir lembrar de muita coisa, descreve a sua viagem por Dublin de forma completamente diferente. A cidade permanece, assim como o seu ritmo, espelhados na manipulação das caixas. No entanto, a descrição da viagem é completamente diferente.
E tudo volta ao início e tudo volta a ser diferente na mesma cidade. A cidade que acolhe os seus habitantes e as suas histórias da mesma maneira, deixando-os contar a sua aventura, a sua odisseia na qual cada um é o protagonista da sua própria história. A cidade não se revela como uma selva, ou como um espaço desprotegido e perigoso à mercê de meliantes mal intencionados. A cidade revela-se acolhedora e disponível para receber todos, independentemente das suas histórias e da maneira de as contar. Curiosamente os movimentos de construção da cidade que se viram no início do espetáculo são repetidos com a mesma exatidão e o mesmo cuidade anteriormente observado.
Depois do terceiro elemento ter descrito a sua cidade não perdendo a sua individualidade o quarto elemento já não a exemplifica da mesma maneira. O ciclio iria recomeçar e os espetadores aperceberam-se que tudo aquilo era um círculo que se ia alimentando de si próprio, fazendo com que cada um revivesse a parte da memória que lhe tinha feito sentido. Quel quisesse juntar o ser fragmentário do espetáculo só tinha de ligar os vários sinais.
Segundo a produção, “As you are now so once were we é, sobretudo, uma peça sobre a experiência de leitura de Ulisses e não sobre a história do próprio Ulisses. Não é uma peça sobre Leopold Bloom ou sobre a sua mulher traidora, mas sim sobre todas as coisas que nos fazem acreditar e sentir que estamos num espaço, num só espaço ao qual pertencemos. E este espaço não é necessariamente uma localização geográfica, mas sim um sentimento intangível de que temos muito mais em comum do que pensamos. Não é uma história, mas sim um sentimento, uma ideia, uma crença que é ao mesmo tempo pessoal e universal.
As you are now so once were we redescobre o significado de se ser irlandês, partilhando com o público esta descoberta.”
As you are now so once were we intensifica o desejo de partilhar com estes irlandeses o privilégio de palmilhar as ruas de Dublin e de conseguirmos agarrar essa sensação de felicidade que pairava no ar.
Um espetáculo divertido e rigoroso que convida tanto à leitura de Joyce como à visita in loco à própria Irlanda.

John Romão assumiu-se na cena teatral por ser um criador que corta com a convenção, riscando os cânones ao mesmo tempo que deles faz uma leitura aturada. Desde sempre que John Romão intromete uma visão escatológica com o objectivo de o ajudar a encontrar o fim da realidade. No espectáculo apresentado no Centro Cultural de Lagos John Romão apresenta-nos um ícone da beleza masculina, criado pela televisão através do actor Ângelo Rodrigues. Com uma câmara apontada à cara de Ângelo Rodrigues, que por sua vez é projectada num grande écran dando conta aos espectadores de todos os pormenores, John Romão vai deformando a face da apolínea da beleza, retirando a harmonia através da inclusão de elementos estranhos provocando assim desfigurações performativas e assumindo a relação das deformações com citações relativas a artistas que trabalharam a deformação facial nas suas obras. Desde fita cola, objectos de escritório, perucas, salsichas e creme de chocolate para barrar, a cara de Ângelo Rodrigues foi uma tela onde se operaram várias transformações que lhe retiraram a harmonia. Depois de várias experiências que culminaram com a paste de chocolate John Romão começa a dizer um texto sobre os limites da Arte e do criador. Vai buscar quatro placas de esferovite que enquadram as figuras dos dois actores e, depois de deitadas no chão, começam a ser adaptadas ao corpo do actor que se lhes coloca por cima. As placas transfiguram-se numa espécie de monstros elaborados a partir das figuras dos corpos perfeitos dos actores. O palco fica preenchido com os desperdícios da esferovite enquanto as figuras deformadas se apoiam umas nas outras conseguindo assumir o plano vertical. O cenário muda e o ciclorama é pintado de vermelho, o palco inundado de fumo e a música pop é o pretexto para que os actores dancem efusivamente, deixando transparecer as suas silhuetas, enquanto um outro texto com frases curtas aparece no écran, deixando mensagens acerca desta cultura descartável. Fazendo o contraste com o caos dionisíaco os actores vão buscar dois coelhos brancos, símbolo da inocência e da procriação e interagem com os animais brancos, deixando-os à solta no meio da cena completamente contaminada pelos desperdícios de esferovite. Os coelhos, que no auge da sua pureza procriam porque essa é a sua natureza, sucumbem sob o peso dos livros, das obras, dos clássicos. Shakespeare, Stanislavski, Sartre e Aristóteles serviram de toca ao assustado coelho que, à nossa semelhança, carrega sobre as suas costas o peso de uma herança cultural de referências, e escolas, e ideologias filosóficas das quais não nos conseguimos libertar.
Por sua vez, Ângelo Rodrigues sucumbe sob o brilho do seu sucesso, quais bolas de espelhos que rodopiam sem cessar sobre a sua figura. Mesmo arrefecendo com a água que lhe vai sendo deitada por cima do seu corpo entra em transe, mas suportando o brilho fácil da fama a que está votado.
Por último John Romão faz um monólogo sobre a morte, ostentando um coelho branco nas suas mãos. O contraste entre a vida e a certeza da morte é espelhado naquela imagem onde se explora a fragilidade do ser. John Romão cita inúmeros teóricos do teatro para além do filósofo José Gil, autor de inúmeros trabalhos sobre Estética. Stanislavski, Meyrold, Aristóteles e mesmo José Gil, se bem que obrigatórias para qualquer alunos de Teatro são referências que escapam à maioria do público português, pelo que esta última parte do espectáculo não atinge a sua verdadeira dimensão junto do público em geral, contentando a minoria de estudiosos que se contentam ao reconhecer todas as referências.
Só os Idiotas Querem Ser Radicais é um espectáculo de risco e de desafio, como nos habituou John Romão nos seus trabalhos anteriores. Arrisca-se a não ser entendido por se destinar a um público conhecedor do teatro e das novas tendências de construção de espectáculos. É um espectáculo que ainda não atingiu o ponto de maturidade cénica devido à necessidade quase obtusa de chocar o espectador e de preencher a cena com um caos aparente. O terceiro elemento do ciclo hegeliano ficou por definir e o espectador não saiu apaziguado deta apresentação que contava reflectir sobre “o poder da imagem”. Houve a apresentação de muitas propostas sem se concretizar ou resolver em profundidade nenhuma delas, o que entra em contradição com toda a panóplia de autores e teóricos do teatro citados no decorrer do espectáculo. De acordo com John Romão, “O museu é um depósito de coisas roubadas, até aí, nada de novo. Gosto de saber que a minha civilização é feita disso, sinto-me menos mal. Porque quando era puto também roubava no supermercado chocolates e brindes dos cereais da Nesquick. Quando entro num museu e percebo que fomos um império, um império do gosto, eu próprio me sinto um imperador ao ver a Vitória de Samotrassa. Samotrácia não se escreve com dois “s” e tem asas e tem a cabeça cortada e eu que a vejo, não tenho nada, senão a certeza que sou um imperador que também aprecia naturezas mortas, porque a morte tem um cio absoluto. Os historiadores, os teóricos inventam crises, declínios, apogeus, revoluções estéticas. Inventam a sua história da arte consoante o mercado, consoante o poder dos estados. O que se alastrou às artes plásticas, alastra-se agora ao teatro. O novo tornou-se um valor comercial, especulado, um bom filão para urbanos endinheirados. Há quem continue a afirmar-se vanguardista quando as vanguardas acabaram. Há quem continue a vender-se como radical, quando a radicalidade é um logro comercial.” A linguagem é complexa, rica, cheia de referências. O espectáculo é excelente para se mostrar a um público de estudiosos de novas dramaturgias. Ao nível do público em geral cai no perigo de se tornar arrogante intelectualente, uma vez que as referências não são perceptíveis. Mas no final é obrigatório ver

LAMA - O irromper de vontades


No final de 2010 nasceu a associação LAMA – Laboratório de Artes e Média do Algarve. Uma associação formada por actores, artistas plásticos, gente ligada ao cinema, à fotografia e ao jornalismo. Naturais do Algarve, foram para Lisboa investir na sua formação superior e regressaram agora querendo devolver à sua região o seu talento e a sua criatividade.
LAMA (Laboratório de Artes e Media do Algarve), assume-se como um projecto de desenvolvimento artístico com especial enfoque na área do Teatro. Dentro dos seus objectivos estão as criações de diversas dramaturgias desde as adaptações de obras, a textos dramáticos e criações originais. O texto será a ferramenta impulsionadora do espectáculo, quando se decidir que ele existe, sendo que, a palavra não será a principal forma de comunicação cénica. A associação LAMA na sua actividade além das criações teatrais, trabalhará também as áreas da fotografia, cinema e música, com apoio a acções de formação, debates, exposições, ciclos, festivais, residências e tertúlias, tornando-a multidisciplinar. Acentua a educação não-formal e formal, sendo que a primeira terá um papel importante na população destinatária que será a comunidade no seu geral.
No passado dia 12 de Fevereiro esta associação mostrou no Centro de Artes Perfomativas do Algarve o espectáculo Brilharetes, de António Tarantino com João de Brito e Tiago Nogueira e a colaboração de Jorge Silva Melo no processo de encenação.
O texto fala de um ex-professor de instrução primária, educado num seminário e com ligações ao partido comunista, que começou a viver nas ruas. A cena começa com essa personagem no meio de sacos e roupas e com o seu parceiro de esquemas e urinar descontraidamente para a rua. Brilharetes é então a história de dois sem abrigo que conversam e discutem sobre o próximo golpe para sacarem dinheiro e um incauto homem abastado. Ensaia o discurso em que argumenta apelando à piedade, fazendo uso da sua educação no seminário para impôr alguma compaixão na má consciência burguesa. A construção das personagens está feita com rigor. A personagem do Brilharete misto dos marginais de Beckett, Almodovar, e Iñárritu mostra uma queda abissal nas franjas de uma vivência que roça o inverosímil. A outra personagem, Cavagna, é o contraponto do ex-professor. Rude, desembaraçado, portador de uma verborreia profícua em calão de rua. O texto, talvez porque construído depois desse monumento dramatúrgico que foi Stabat Matter não teve o fogo e o brilho deste último. É vítima de uma construção circular, repetitiva, onde as ideias se repetem sem mostrar nada de novo. A própria encenação, que remete os actores para um canto da cena, concentrando o olhar do espectador num único foco, não ajuda a uma outra redescoberta do sub-texto e da terceira personagem que, à semelhança de Godot, é nomeado inúmeras vezes sem nunca aparecer. Brilharetes morre, quiçá de subnutrição, infecções múltiplas, ou simplesmente desalento. O comunismo e as lutas de classes já não são o que se julgou ser. A vida foi perdendo o seu brilho fátuo adquirindo de forma cruel e presente o seu sentido efémero. Com Brilharetes morre a esperança num modo de vida mais puro e genuíno, vendendo o corpo mas não o espírito. Brilharetes morre e deixa o parceiro refém das palavras certas que tão adequadamente utilizava. Tiago Nogueira, a grande personagem deste diálogo, assume neste trabalho a difícil responsabilidade de ser uma das grandes esperanças no trabalho de actor no Algarve. João de Brito, embora tenha defendido uma personagem com maior dinamismo, enfada o público com a linguagem inundada de palavrões que, após o primeiro momento de incómodo, deixam de fazer sentido.
Um trabalho a reter na memória, que cria no espectador algarvio a expectativa de uma lufada de ar fresco com novos textos e novos actores com formação superior na área.

Tchekov ainda...? E sempre!

Os nomes sonantes dos grandes dramaturgos podem soar de forma assustadora para algum público mais jovem e ainda desconhecedor, que busca no teatro uma forma de entretenimento e uma certa panaceia para as suas vidas. Perguntam amiúde: “O que é que eu posso encontrar de interessante para a minha vida numa peça de um autor clássico?” o desafio é convidá-los a arriscar e procurar a resposta na sala de espetáculos. Nuno Cardoso encenou os texto As Três Irmãs, de Tchekov numa perspectiva contemporânea, fazendo uma leitura política da situação em que o país se encontra. Segundo a produção, “Depois de “Platonov” (TNSJ, 2008), o fulgurante primeiro ensaio, inacabado, caótico, tido como irrepresentável, da obra teatral mais estruturante do drama moderno, e de “A Gaivota” (Ao Cabo Teatro/ TNSJ/CCVF/Teatro Maria Matos/Teatro Aveirense, 2010), uma espécie de espelho vertiginoso onde o Teatro se serve de si próprio para ensaiar uma reflexão sobre o paralelo entre vida e criação, Nuno Cardoso encerra a sua trilogia tchekhoviana com “As Três Irmãs”, metáfora do sonho destruído pelo tempo que passa, drama imbricado da decadência de uma classe dominante cuja fixação infantil na felicidade dos “tempos de antanho” esconde mal a ausência de horizonte e a perda de sentido. Reexercício de uma metodologia de trabalho que prolonga e aprofunda a ideia de ensaio, tomando o repertório e uma dramaturgia material, física, descoberta com o corpo, enquanto pontos de partida para o livre desenvolvimento das linguagens de criadores cujo trabalho conjunto parece exponenciar as qualidades de cada um.”
Em “As Três Irmãs”, Olga, Macha e Irina vivem um quotidiano banal numa pequena cidade dos confins da Rússia, enquanto sonham com o regresso à Moscovo natal. Nestes tempos de crise, quando a nostalgia daquele momento em que “éramos felizes e não sabíamos”, repetindo a formulação de Pessoa, paira como uma ameaça, importa saber onde fica a nossa Moscovo, importa compreender porque é que o sonho não se torna motor de futuro. Importa redescobrir o Teatro como ensaio de nós próprios e como alternativa ao consumo cultural de massas que apenas prolonga a submissão.
O texto presta-se a um tratamento que evoca a perda, o desencanto, a necessidade de começar de novo. O equilíbrio instável da vida, tal como nos sugere a cenografia de F. Ribeiro, que coloca os atores numa plataforma com dois declives, onde as personagens se têm de viver com todas as dificuldades que o plano inclinado implica. Olga, Masha e Irina apresentam-se a contra luz, estáticas, ao som do violino tocado pelo irmão. É o tempo da felicidade. O tempo em que eram felizes sem se aperceberem do quanto. Cada uma absorve uma cor. Olga a profundidade do azul, Masha o luto pela vida infeliz que se obrigou a viver e Irina assume o branco e a despreocupação da juventude. Masha esvazia o sonho através de balões que esvoaçam. Irina corre despreocupada e feliz. Olga entra no jogo e na brincadeira da irmã mais nova e corre atrás dela. Têm a vida à sua frente e são felizes. Os convidados chegam e mimam-nas com os seus galanteios e presentes. O irmão anuncia-lhes que está apaixonado e que irá casar em breve. A cunhada, cuja cor é o vermelho, é o elemento que irá provocar a instabilidade inerente. Incita o marido a mudar rotinas, procedimentos, em prol de uma melhoria das suas condições de vida. Recusa-se a receber os convidados boicotando uma festa, obriga Irina a mudar de quarto, incita Olga a despedir a ama, propõe serrar as árvores que sempre embelezaram o jardim. Ao longo de todas estas mudanças forçadas as três irmãs mantêm um sonho: ir para Moscovo. Mudar de vida e serem finalmente felizes. Só que a vida já as confrontou com os dias de felicidade e as três mulheres tornam-se amargas e cada vez mais desalentadas com a vida. Vão-se despindo de juventude e fulgor e arrastando a sua vida infeliz pela casa, onde são indesejadas. A páginas tantas são espectadores do seu próprio drama sem nada conseguirem fazer para o mudar. As três irmãs nunca conseguirão ir para Moscovo. Olga não se casa, Masha renuncia à sua paixão e Irina deixa de rodopiar e de sonhar em mudar para outra cidade. A encenação de Nuno Cardoso é simplesmente deslumbrante, conseguindo tocar no âmago do texto de Tchekov através das movimentações dos atores, dificultadas pelo plano inclinado e afinadas pela iluminação de José Álvaro Correia. Olga, Masha e Irina sucumbem de cansaço e tédio às exigências da cunhada Natacha e à apatia do seu irmão André. E, no fundo, é esta a lição de vida que Tchécov nos quer dar: a vida não se transforma por si só, temos de ser donos da nossa vontade e termos a coragem de mudar o nosso destino. Irina desejava sair da sua vida de burguesa e começar a trabalhar. Quando o conseguiu deixou-se domar pela rotina, pela amargura e começou a tratar mal as pessoas que recorriam aos seus serviços. Masha não conseguiu que o oficial por quem estava apaixonada deixasse a sua mulher louca e assumisse a paixão por ela. Olga esqueceu-se de viver, entregando toda a sua alegria à escola e ao seu lugar de diretora. No final deixam-se ultrapassar por Natacha mas percebem que estarão sempre juntas e que, por muitas voltas que a vida dê, há uma vida que pode ser mudada. Nesta encenação vemos o Teatro como uma antecipação do espetáculo da nossa vida e como um aviso relativamente à aceitação das condições que nos impõem. Juntas, podem redescobrir a sua Moscovo e refazer o sentido de felicidade. Com Daniel Pinto, Isabel Abreu, João Grosso, José Neves, Luís Araújo, Manuel Coelho, Maria Amélia Mata, Sara Carinhas, Sérgio Praia, Vitor D’Andrade, Micaela Cardoso e Tonan Quito, esta encenação de Nuno Cardoso foi uma lufada de ar fresco nos cenários por vezes insípidos das propostas correntes. E hoje, ainda haverá espaço para Tchekov? Provavelmente hoje, mais que nunca, urge ouvir Tchekov e revisitá-lo pela mão de encenadores lúcidos, como Nuno Cardoso.

A magia tornada real


As crianças entram num espaço sombrio no qual vislumbram uma casinha de madeira cuja porta é ladeada por duas lanternas coloridas. Entram na casinha de madeira e deparam-se com o interior de uma sala com traves de madeira no tecto, de onde desabrocham, para além de lustres que iluminam o espaço através dos seus milhares de vidrinhos, uma série de objectos estranhos. Tesouras, espanta-espíritos, celhas de alumínio, peões gigantes, cestos e mais alguns objectos que a imaginação pode criar. Num dos lados da casinha está Hans Christian Andersen, sentado numa cadeira de braços, acariciando uma miniatura de um cisne. À frente dele uma atriz, que nos faz lembrar uma boneca de pano. É a senhora Track, uma das cordas que possibilitam o mecanismo do tempo. A outra personagem é o senhor Trick. Quando bem articulados proporcionam um encantamento. Do outro lado da sala uma grande roda dividida em doze partes, com diferentes figurinhas desenhadas, entre elas uma porta. As crianças sentam-se em bancos corridos que vão de um lado ao outro da sala, ligando o escritor à grande roda, que fica no seu lado oposto.
Hans começa por falar no poder do Tempo. O Tempo é o mais importante. Saber esperar, saber respeitar o tempo próprio de cada coisa. E a roda do tempo começa a girar, abrindo a pequenina porta onde se descobrem cinco ovos num ninho. Cinco ovos que são retirados do pequeno retábulo do Tempo e mostrados às crianças. A minúscula portinhola fecha mas volta a abrir-se, mostrando desta vez um ovo diferente. Maior, com outro tipo de pigmentação e outra coloração. Os outros ovinhos esperam no ninho e chegado o seu tempo abrem-se, deixando sair os patinhos. O outro ovo espera. Tem de esperar mais tempo. É diferente, tem um tempo diferente. E sob os pés de Andersen começa a passar um magnífico tapete, ilustrado por Carl Larsson, que mostra o desenrolar das estações. Os actores vão depositando pequenos símbolos das estações, desde as folhas secas do Outono até às pétalas que as raparigas colocam nos seus vestidos brancos estivais. Toda esta passagem é acompanhada pelo girar da roda que puxa o ovo diferente para o seu próprio tempo. Até que o último patinho nasceu e, tal como o ovo, continua a ser diferente. Maior, mais desengonçado e sem a penugem desenvolvida. Todos os que estão à sua volta o tratam mal por ser diferente. Até a rapariga que o alimenta. E mesmo a sua mãe, que chocou o ovo até ao fim, representada por uma magnífica máscara feita de uma pá de madeira, que luta por ele, desiste e revela-lhe que não é a sua verdadeira mãe. Depois desta revelação o patinho feio foge daquele lugar inóspito e corre pelo mundo em busca de paz. Vai ter a uma cabana onde habita uma velha, uma galinha estrábica e um gato despenteado. As formas animadas continuam a surpreender e, ora as personagens aparecem numa dimensão pequena, quase onírica, ora se transformam em bonecos de tamanho real. Mas os habitantes da cabana desentendem-se e o patinho tem de continuar a percorrer o mundo. E corre, corre, até encontrar os patos selvagens, junto dos quais encontra algum conforto. A sua música consegue confortá-lo. Mas o mundo é cruel e os caçadores matam os patos selvagens. Fitas vermelhas soltam-se do tapete simbolizando o sangue das aves abatidas. E nem o cão que foi resgatar os patos o quis levar, de tão feio que ele era. O patinho encontrou-se de novo sozinho e, como tinha muita vontade de nadar, mergulhou num lago que não tardou a ficar gelado. A celha de metal abrigou o pobre pássaro, que em breve ficou preso sob o gelo. O tempo ficou sombrio e a neve começou a cair. Até que uma violenta pancada no gelo despertou o patinho, que foi reanimado por um pobre homem que tinha bom coração. A má sorte não está sempre atrás da porta e o pobre patinho, que passou um ano a fugir do seu destino adverso, vai ao lago quando chega a Primavera. E quando vê o se reflexo na água não se reconhece. Tinha chegado o seu tempo. O tempo de desabrochar num cisne que Hans mostra aos meninos dentro de uma caixinha de música, desocultando a magia e o trabalho precioso do Tempo e da persistência da coragem.
O espectáculo foi apresentado por três atores de excelência, Cláudio Guain, Elena Gaffuri, Piergiorgio Gallicani que, apesar de italianos, disseram todas as falas em português. Os atores mostraram-se versáteis, desempenhando várias personagens e cruzando várias técnicas de representação. A encenação de Maurizio Bercini dotou esta história cruel de uma magia a que a maior parte das crianças, embora por vezes apreensivas e temerosas, pois havia partes assustadoras, foram bastante receptivas. Pena é que algumas mães se recusem a perceber que o tempo dos seus filhos ainda não chegou. Assim, deixam a criança o espectáculo quase todo a chorar copiosamente, sem terem a sensibilidade de perceber que nem a sua criança está a receber o espectáculo como deveria, nem as outras crianças se conseguem concentrar. É um dos fatores que nos leva a concluir que devemos continuar a investir na educação de públicos, o infantil e o adulto.

Duas actrizes à procura de um texto


A bruxa Teatro tem desenvolvido um ciclo subordinado ao tema “O Outro Lado da Alma”. Dele fizeram parte espectáculos como Stabat Mater Furiosa, de Jean-Pierre Siméon, O Coleccionador, de Mark Healy, ou Antígona em Nova Iorque, de Janusz Glowacki. Em todos eles, para além da temática corrosiva e fracturante, assistimos a desempenhos dignos de registo e de memória por parte dos atores. De realçar o desempenho de Ana Leitão, em Stabat Mater Furiosa, que excedeu o plano da excelência da representação e ofereceu ao público uma nota do sublime que se pode esperar de um espectáculo.
Música no Vale, de John Ford Noonan explora a doença mental e a ténue barreira que separa a sanidade da patologia. De acordo com o autor do texto, “para vivermos uma vida especial precisamos de comida, atenção e permissão.” A permissão para podermos concretizar os nossos sonhos. A de John Noonan veio através do Rock-n-roll. A dos outros seres humanos pode vir tanto da música, de qualquer música, como de qualquer outro deslumbramento estético que faça despoletar a coragem para assumir os sonhos. John Noonan deu a Claire e a Margot a mesma possibilidade de sentirem a sua luz. No caso de Claire foi a música de Bruce Springsteen, no de Margot os temas que soaram no Festival de Woodstock. Duas mulheres complexas, com variações de humor, com distúrbios mentais bem diversos são internadas numa clínica para doentes mentais e obrigadas a partilhar o mesmo quarto. Claire comunica através da música e de uma enorme exuberância. Margot faz de um enorme ursinho de peluche o seu alter-ego, comunicando através dele e privilegiando o conforto do seu silêncio. Depois de Claire ter dançado enfaticamente ao som do seu ídolo Margot chega ao quatro discreta, com um casaco que lhe esconde a figura, um casaco que lhe esconde o rosto e um urso que lhe esconde a personalidade. O confronto entre as duas mulheres é inevitável e o contaminado de cumplicidade é, por seu lado, previsível. O quotidiano das duas mulheres preenche-se então de memórias, alucinações, criações fantásticas, efabulações e fantasmas dos quais fogem a para os quais regressam. Claire foge da sua mitomania, regressando a ela sempre que se sente ameaçada. Margot foge da sua dupla identidade, em nome da qual foi expulsa do colégio onde dava aulas. As duas confrontam-se, medem-se, e num jogo ardiloso e felino observam-se e conseguem retirar a outra do limbo em que cada uma mergulhou. Esse jogo, no entanto, nunca esteve apurado ao nível do trabalho de atriz. O tormento psicológico que cada uma, à sua maneira, sofria, não passou para o público de forma convincente. Os conflitos pessoais, as disparidades de ritmo, as alterações de humor foram apresentadas de forma superficial e ligeira, fazendo com que o próprio texto perdesse ritmo na primeira parte do espetáculo. Ana Amorim e Marta Rosa revelaram não estar ainda à altura de um papel que exige tanta complexidade psicológica como a das personagens que interpretaram.
O texto evolui para uma cumplicidade que leva as duas personagens a um plano muito próximo do padrão da normalidade. Claire começa a assumir as mentiras que cria e nas quais acredita e Margot consegue enfim libertar-se da rigidez histérica em que tinha caído, começando mesmo a dar aulas de dança. A tímida professora de latim, culta e metódica, ouve a música no vale através das memórias que evoca do Festival de 1969 e a exuberante mulher dona de um corpo portentoso começa a ouvir e, também ela a saber deitar por fora o boião de raiva que pinga até se transformar em lágrimas. E ambas aceitam encarar a luz. Margot de uma forma mais convencional. Claire, de forma mais dissimulada, acabando no final por aceitar o presente de Margot, cuja sonoridade a invade e purifica como um ritual de renovação. O facto do comportamento de Claire se apresentar demasiado histriónico perturbou a profundidade do papel. Por outro lado, não passou para o público a noção de que Margot era uma mulher de meia-idade, pela ligeireza com que Ana Amorim interpretou a personagem. Só pelas contas que o texto sugeria se chegava à conclusão de que Margot não era uma rapariga de idade próxima da Claire.
As transições de cena tornaram-se repetitivas e previsíveis. Mas a encenação de Figeira Cid, privilegiando o pormenor conseguiu dar a uma cenografia quase assética um caleidoscópio de emoções de que as atrizes se puderam socorrer.
Música no Vale é uma metáfora sobre o encontro de cada um consigo mesmo, que por vezes tem de ser desbloqueado por uma música estridente, ou mesmo pela descoberta de uma luz que pode ser a paixão pela dança ou a capacidade de ouvir o outro. Um texto com inúmeras potencialidades que não chegou a ser encontrado pelas duas atrizes que o defenderam.

Diplomatas da cultura


Na cultura está a cumprir-se o sonho antes preconizado pela economia: o sonho de uma Europa unida nas suas diferenças, respeitando as idiossincrasias de cada povo, partilhando o mesmo ideal. Esse sonho foi cumprido com a produção “A Tempestade”, um projeto de teatro multilingue que apela aos grandes valores de uma Europa moderna e civilizada: liberdade, igualdade, fraternidade e, finalmente, a dádiva do perdão. A Tempestade, tradicionalmente considerada a última peça de Shakespeare, é uma reflexão sobre o colonialismo, o choque de culturas, a traição e o perdão. Próspero, ilustre duque de Milão, é traído pelo próprio irmão que lhe usurpa o ducado, expulsando-o com a sua filha ainda criança, para uma ilha longínqua. Na ilha confrontam-se com uma criatura da Terra, Caliban, interpretado magistralmente por Mário Spencer, a quem Próspero, interpretado por Luís Vicente, se dedica, ensinando-lhe as palavras e as maneiras do seu país. Mas Caliban, ser lascivo e instintivo tenta profanar a pureza de Miranda, interpretada por Tânia Silva, filha de Próspero, recebendo assim todo o seu desprezo. Por outro lado, outra criatura dos ares, assexuado e etéreo, Ariel, submete-se ao poder de Próspero, que homem letrado, consegue manipular por artes mágicas a criaturas diferentes. Caliban, filho da temível feiticeira Sycorax, é disforme e obstinado, longe do ideal do “Bom selvagem”. Revolta-se pelo facto de ter sido subjugado ao poder de um náufrago que ali aportou e lhe usurpou o domínio da ilha que era sua por direito. Caliban, anagrama de canibal, é o retrato do selvagem insubmisso que se recusa a assumir as regras de alguém que chega e, valendo-se da sua pretensa superioridade cultural, lhe quer impor um outro mudus vivendis. Miranda é o pretexto para a ruptura e para a subjugação do escravo ao senhor. Luis Vicente mostra a dignidade de um duque culto e erudito em todo o seu esplendor.
Através dos seus poderes mágicos Próspero ativa uma tempestade que atira para a ilha os seus traidores. O seu irmão António, Alonso rei de Nápoles e seu irmão Sebastião e Gonçalo, um conselheiro honesto. Desta comitiva fazem parte também um copeiro bêbado e um bobo da corte, as típicas personagens para exercerem o alívio cómico necessário num texto com características trágicas. Fernando, filho do Rei de Nápoles, naufraga também na ilha, sem que seu pai o saiba. É manipulado por Próspero no sentido de se apaixonar por Miranda, pela qual faz todos os sacrifícios.
Pela mão do copeiro bêbado e do bobo da corte Caliban conhece os segredos do néctar de Baco, devotando todo o seu labor a Estefânio, acabando todos enganados pelas quinquilharias criadas pela magia de Próspero. O final, surpreendente nos textos de Shakespeare, remete para uma reconciliação e para o poder do perdão, que se sobrepõe à vingança. Assim, Alonso arrepende-se da sua traição e, como prémio, revê o seu filho que julgava morto. Acolhe Miranda e a peça acaba de forma cordata e pacífica. A ilha é entregue de novo a Caliban e todos partem para Itália, aproveitando os ventos favoráveis, embalados na ideia segundo a qual “somos feitos da mesma matéria dos sonhos”.
Ao nível da produção verificou-se um equilíbrio entre os diversos atores, mostrando que a produção nacional está ao nível dos seus congéneres europeus. A cenografia de Jean-Guy Lecat evidencia por um lado o poder de um soberano numa ilha praticamente desabitada e, por outro, a solidão que lhe assiste. O imponente rochedo cinzento roda na sua solidão, recebendo com sobranceria os incautos náufragos. E, se bem que todo o elenco cumpriu de forma equilibrada a essência da mensagem de Shakespeare, temos de salientar a diferença pela positiva dos atores portugueses. Luis Vicente fez justiça ao sentido latino da arte e mostrou um Próspero apaixonado e ardente, que arrebatou o espetáculo. Mário Spencer assumiu um Caliban não propriamente disforme mas suficientemente diferente para provocar inquietação nas consciências que exercem a supremacia cultural perante os outros povos. Tânia Silva desempenhou uma Miranda frágil e ansiosa por conhecer novos mundos e novas culturas. Recusando a mistura com Caliban mostra-se, no entanto, ávida de conhecer outros elementos da espécie humana. Carlos Pereira interpretou um voluptuoso Ariel, divertido e, apesar de etéreo, sensual. Este foi o elenco português que deu a conheceu ao centro da Europa o bom teatro que se faz no Sul. E todos nós nos podemos orgulhar destes diplomatas da cultura e do teatro.

Sunday, February 27, 2011

A insustentável leveza do Fado


Entra-se no TEMPO e deparamo-nos com uma cenografia que não nos deixa indiferentes. Quatro cubos translúcidos, iluminados por uma luz azul, estão no palco, limitando o espaço sobre o linóleo branco. Ao fundo um paralelepípedo igualmente translúcido iluminado pela mesma luminosidade azul. Na vertical, criando a ilusão de uma parece, uma série de quadrados suspensos em vários tons de azul. Entram os músicos: Filipe Lucas na Guitarra Portuguesa, André Santos na viola e Max Ciuro na viola baixo. Começam a encantar-nos com os acordes iniciais de um fado, cantado ao vivo por Joana Melo. Os bailarinos entram e iluminam a cena. Não foi apenas a luz que aumentou a intensidade. Foi antes a vibração dos corpos, a energia, a carga dramática, a técnica apurada emanada daqueles corpos que iluminou o espectáculo do princípio ao fim.
Nuno Cardoso concebeu um espectáculo de homenagem ao fado no qual se iluminou esta canção a partir da sua alma. E a sua alma encontra-se no riso das varinas, nas brigas entre os gingões, na dança dos corpos quando se enamoram, nas noites de paixão, de solidão e de desalento. Nuno Cardoso criou um espectáculo assente em fados que cantavam Lisboa, dançando a essência da Cidade Branca, presente nos sorrisos dos bailarinos na cumplicidade dos olhares, nos voos dos corpos, dançando com a poesia presente nas palavras de Fernando Pessoa, Alexandre O’Neill, José Carlos Ary dos Santos, ou mesmo Amália.
A companhia de Dança Quorum Ballet trouxe-nos um espectáculo com a qualidade a que já nos habituou, dançando o fado de forma arrojada e inovadora. O privilégio de ter no palco os músicos e a cantora interpretando ao vivo os temas dançados confere uma força especial à própria dança. As coreografias foram concebidas tendo em vista a desmistificação desta canção como exclusiva do lamento ou da saudade. Nestas coreografias o fado vibra de vida, paixão e cor. A essência do fado vadio pode encontrar-se no suor destes bailarinos que amam, sofrem, vivem e sucumbem sob o peso das emoções.
De realçar os momentos em que a bailarina dança o fado Nem às Paredes Confesso, de Maximiano de Sousa, numa tina cheia de água. A sensação de sufoco de uma relação que não pode ser assumida é magistralmente apontada naquela plano em que quase se partilha o corpo nos dois estados e quase se sucumbe de amor.
O outro momento intenso é quando se dança o fado Barco Negro de David-Mourão Ferreira. Os bailarinos penetram do lado de dentro da parede falsa, de onde se vislumbram numa visão translúcida que revelam um sentimento ambíguo e de desespero. O fado em que a mulher do pescador não quer acreditar na sua morte é dançado sob uma chuva intensa, como se todo o corpo chorasse a trágica notícia, é um momento de intensa emoção onde a própria cenografia chora com os corpos dos bailarinos a perda de um amante.
O final é uma festa de emoções onde os elementos se fundem na dança. Os cubos abrem-se e os bailarinos podem mergulhar os corpos no líquido brilhante que contêm. É a euforia causada pela música porque “Se ser fadista é ser triste, é ser lágrima prevista, se por mágoa o fado existe, então eu não sou fadista!”
Dançado por Daniel Cardoso, Elson Ferreira, Filipe Narciso, Gonçalo Andrade, Inês Godinho, Inês Pedruco, Mathilde Gilhet e Theresa da Silva C., este espectáculo aliou o virtuosismo à emoção e arrebatou o público do TEMPO que o aplaudiu efusivamente. Uma vez mais, uma fantástica criação de Daniel Cardoso.

Dançar o Norte

Nortada, de Olga Roriz, é uma viagem de afectos. Uma viagem ao país da infância da coreógrafa, onde nunca viveu, mas de onde guarda gratas memórias. Nortada arrepia, tal como o vento com que partilha o nome. Ao chegar à sala de espectáculo o espectador depara-se com uma imensa e vasta planície plena de searas de milho. Uma imensidão que preenche o espaço. Olga Roriz foi convidada para fazer uma homenagem à sua cidade de origem, repto a que correspondeu com carinho.
Olga Roriz mostra bem a generosidade e a tradição das gentes do Norte. Neste trabalho deparamo-nos com os rituais da família, concentrando várias fases do espectáculo à volta de uma mesa. A família come de forma ritmada e quase sagrada, contendo as palavras. Em oposição a esta atitude sóbria da refeição à volta da mesa de família assume-se o ser divertido e extático do ser português quando se liberta e procura divertir-se com uma garrafa de vinho. Branco, tinto ou verde, convertem-se na euforia de um sentir português que se consubstancia na boa disposição do povo do Norte.
Neste espectáculo podemos sentir de uma forma mais próxima as relações entre as pessoas. Relações contrastantes entre o peso da tradição, das noivas de Viana das relações convencionais, do domínio do homem sobre a mulher. Mas é também sobre a delicadeza dos bordados tecidos por milenares mãos de mulheres, sobre a solidão e a cumplicidade das mulheres que trajam de negro. E essa solidão contrasta com a euforia das festas, das procissões, dos bailes de aldeia. E, se num momento as mulheres estão a navegar num mar de solidão, planando sobre as searas, no instante seguinte estão em festa, partilhando a alegria com os seus familiares que foram viver para fora e que regressam nessa altura. A música festiva dá o mote para os bailarinos se entregarem à expressão à volta de uma mesa que antecipa um casamento, ou um baptizado, ou a comemoração da família estar reunida.
É um espectáculo que, sendo dançado na Terra evoca o mar sempre presente em Viana Do Castelo. Olga Roriz serviu-se de poucas sonoridades para colorir os corpos que mostram a alma de Viana. Amália Rodrigues, com o seu hino “havemos de ir a Viana” inicia o espectáculo. Depois a fragmentação exige sonoridades diferentes que vão desde os Dead Combo, as mornas, os cantos tradicionais do Norte até ao peso de Corelli. Um prazer para os sentidos, uma homenagem a Viana do Castelo, uma lição que parte das memórias, na nostalgia, e chega ao coração.
Os cinco bailarinos de Olga Roriz, Catarina Câmara, Rafaela Salvador, Sylvia Rijmer, Bruno Alexandre e Pedro Santiago Cal ofereceram o corpo às memórias de uma terra generosa correndo entre as searas, sofrendo com as águas geladas de Viana, libertando a alma com a euforia do vinho verde, divertindo-se nas festas e romarias com os reencontros e o deslumbramento dos foguetes.
Como revela a coreógrafa, “Nortada é um espectáculo sobre as memórias dessa minha terra onde nunca vivi mas que guardo os mais fortes momentos de infância e adolescência.
Tudo nessa terra me é familiar apesar de tanta ser a distância e maior ainda a ausência.
Foi exactamente nesse lugar de confronto entre a incontornável distância e a profunda proximidade afectiva que nasceu, se desenvolveu e construiu esta peça.
Nortada situa-se num lugar invadido de nostalgia, de saudade, de intimidade.
Cada memória feita imagem é carregada de um simbolismo quase inocente como o olhar dessa criança que fui.”
Com cenografia de Pedro Santiago Cal e desenho de luz de Cristina Piedade Nortada dá continuidade à assinatura de excelência a que Olga Roriz nos habituou. Entre o cruel, o irónico e o belo Olga Roriz conseguiu criar um trabalho sublime.

A Idade Maior


Depois de várias curvas na estrada chega-se a um caminho no qual não se vislumbram encruzilhadas nem entroncamentos. Apenas uma longa recta com fim anunciado. É o caminho a que se chega depois da reforma, quando se chega à conclusão de que o melhor será ir para casa e deixar os mais novos seguirem com a sua vida. Ou a altura em que se atravessa um país, nem se seja num cortador de relva, para nos reconciliarmos com as pessoas que valem a pena. Ou quando acordamos dos nossos sonos de ilusão e nos apercebemos de que tudo era mentira.
O Teatro Municipal de Portimão programou para esta semana dois filmes paradigmáticos do sentimento da velhice: “Vou Para Casa”, de Manoel de Oliveira e “Uma História Simples” de David Lynch. Os espectáculos de Teatro foram da responsabilidade da recém formada Companhia Maior, que reúne actores e bailarinos profissionais com idade superior a 60 anos, e o grupo de teatro sénior da Junta de Freguesia de Portimão. A Companhia Maior trouxe o espectáculo Bela Adormecida, encenado por Tiago Rodrigues. Segundo a produção, “Bela Adormecida é uma história sobre a passagem do tempo, o renascimento e as segundas oportunidades. É possível acordar num tempo que não é o seu e torná-lo seu?, pergunta-nos esta ficção. Será sequer possível que o presente seja pertença de alguém? E que lugar reserva o mundo para aqueles por quem passou um século de sono, enfeitiçados, e que agora acordam no futuro? Na nossa Bela Adormecida talvez não haja feitiço e não tenham permanecido jovens aqueles por quem o tempo passou. Talvez tenham estado acordados todo o tempo e apenas sintam que renasceram, pelo simples exercício de evocar a memória.” Este é um trabalho sobre o tempo e a nossa relação com esse grande escultor, de acordo com o eufemismo de Yourcenar. O príncipe é um velho que está sentado a uma secretária escrevendo as suas memórias. Queixa-se das dores que as suas raízes lhe causam, impedindo-o de dormir. Descobre que quanto mais dorme mais se esquece e decide escrever tudo para que a memória permaneça. De repente entra numa dimensão da memória onde o regresso é possível mas num outro corpo. O príncipe entra no palácio da princesa Aurora e encontra toda a gente a dormir. Velhos à espera de serem acordados. À espera do beijo que nunca chegou, da dança que nunca aconteceu, do olhar que nunca se cruzou. O príncipe beija Aurora e, à semelhança do conto para crianças, todos os seres que habitavam o palácio despertam com o poder daquele beijo. O sopro da vida e da memória. A mente desperta jovem num corpo envelhecido. O corpo já não responde com a velocidade do desejo mas o prazer da descoberta é o mesmo. Os velhos, idosos, como é politicamente correcto tratar as pessoas com mais de 60 anos, vão desocultando os seus apoios, as cadeiras, retirando os panejamentos que o tempo foi colocando. Panos atrás de panos são retirados e dobrados, deixando ver a verdadeira natureza dos suportes dos corpos. Aurora, cheirando a almíscar, atrai o príncipe. Com a elegância de primeira bailarina ao longo de anos na Companhia Nacional de Bailado Kimberley Ribeiro rodopia pelo palco extasiando o príncipe. A sua memória é o seu corpo, que transcreve para um alfabeto próprio tudo o que capta. Todos os que partilhavam o palácio com a princesa Aurora dançam na esperança de recuperar a juventude perdida. Enrolam os fios da vida que desperdiçaram e rodopiam com um olhar de adolescente deslumbrado. E com eles, o espectador recupera a ilusão. No final o príncipe entrega as suas memórias a Aurora, que as traduz para a sua metalinguagem orgânica e sai desse mundo paralelo para a realidade da dor. As memórias doem, mas são preferíveis à ilusão, ao mundo de sonho e encantamento que é a Arte, tão bem simbolizado pela imagem projectada do palácio-centro-cultural-de-belém. Tiago Rodrigues soube explorar as capacidades e as diferentes proveniências artísticas dos seus actores, embora o texto tenha parecido denso e longo. O recurso à fada má como ponto do mestre-de-cerimónias que se esqueceu de a convidar pareceu um recurso brilhante porque apontava para uma simbologia do mal que a culpa carrega ao longo da vida.
Profissional, sem falsos moralismos, com a carga dramática adequada, este trabalho foi um exemplo do que se pode explorar com actores que têm tudo a ensinar com a sua experiência e nada a perder.
O espectáculo Temporalidade, a que a encenadora Sofia Brito denominou performance, foi interpretado pelo grupo de teatro Sénior da Junta de Freguesia de Portimão. Com base num texto de Manuel António Pina, de Sofia Brito e das memórias dos actores o espectáculo percorre os fios das memórias mais agradáveis dos seus intérpretes. Os actores cantaram, desafiaram o público, dançaram, recordaram o primeiro beijo, o baile da vassoura e as cartas de amor. No limiar da memória ficou o Stabat Mater de Vivaldi que simbolizou o sofrimento das mães que caem perante a dor dos filhos mas que são amparadas pela solidariedade das outras mães. Um momento bonito que apontou para o sofrimento que é suavizado pelo ombro solidário de uma amiga. Assim como a cena dos quatro homens a ler o jornal ao som de anúncios populares nos anos 60 que estava muito bem conseguida. Mas no limiar ficaram as mágoas de que é feita uma vida completa. Um vestido de noiva com que se sonha ao som de Moon River, a canção que Audrey Hepburn imortalizou, aponta para os amores impossíveis e para noivas que nunca envergaram o seu vestido de sonho. No limiar ficou o desgosto de uma carta de amor que se atrasou um, dois, três dias, até que chegou um aerograma anunciando o fim da correspondência amorosa. No limiar da vida ficou o lado sombrio, as memórias pesadas, ficando um espectáculo incompleto porque irreal. Os actores tinham no olhar o brilho da irreverência e da saudade de outros corpos e conseguiram dar dinamismo ao texto. Mas deixaram de lado a matéria de que são feitas as rugas: a mágoa.
Este foi um exemplo interessante de partilha entre uma proposta de uma companhia nacional profissional e um grupo de teatro não profissional de âmbito regional. No final houve uma partilha de experiências e saberes e todos ficaram a ganhar. E abriram-se novos caminhos em cada estrada.