Friday, November 26, 2010

A vertigem Meridional


O espectáculo VLCD é uma fábula sobre o poder que o Tempo detém sobre ser humano. Assente no rigor da técnica da máscara, os quatro actores, Carla Maciel, Fernando Mota, Luciano Amarelo e Miguel Seabra mostram a simultaneidade e a discordância de uma vida a vários tempos. A encenação de Nuno Pino Custódio mostra um espaço delimitado por um círculo vermelho assumindo-se no chão. Os actores estão fora do círculo, sentados, preparando a sua entrada. A um tempo, levantam-se sem haver nenhum sinal exterior que lhes dê a noção de simultaneidade, a não ser a concentração. Entram no círculo e passam a ser personagens controladas pela velocidade (vlcd). Carregam malas de viagem de diferentes tamanhos, prontos a partir para as suas jornadas pessoais, que se cruzam acidentalmente com outros transeuntes. Experimentam a vertigem da velocidade através de uma linguagem inventada que nos conduz para um universo em que as crianças inventam os seus próprios signos e as suas próprias significações.
VCLD mostra-nos a incapacidade que o Homem tem de controlar a sua relação com o Tempo. A páginas tantas as malas de viagem transformam-se num escritório/fábrica, no qual o ritmo é marcado por uma bateria cenografada num dos malões de viagem. Os viajantes são apanhados numa vertigem de velocidade da qual não se conseguem libertar, mostrando o destempero de uma sociedade que exige cada vez mais ao nível do ritmo de produção. O ritmo pára e somos confrontados com as pequenas rotinas quotidianas, executadas descompassadamente. Dentro dessas pequenas rotinas exalta-se o pormenor da fila na qual se tem de esperar para qualquer coisa: para um transporte, para o pão, para um afecto. Uma deslumbrante solução de encenação para a ideia do texto Line, de Israel Horowitz, desta feita levada a cabo com aguçado engenho. Os transeuntes deambulam de fila para fila, sem saberem muito bem qual é o objectivo. Simplesmente, está-se na fila porque todos os outros também estão. Miguel Seabra tem um momento em que evoca o distanciamento brechtiano, explicando em breves segundos o que está a acontecer em palco. Mas a cena continua e as relações entre as pessoas começam e acabam em breves momentos. Com um domínio admirável do corpo os quatro actores brincam com o conceito de velocidade, ora acelerando o ritmo, ora atrasando-o até a um elevado nível de lentidão. Mostram, através do corpo, como o tempo pode espartilhar o homem, desde o seu trabalho até aos seus sentimentos. Pode, enfim, dar-se ao luxo de adquirir produtos de marcas reconhecidas internacionalmente. Mas a que preço! Segundo a produção do teatro Meridional, “Falar em tempo, hoje, significa acima de tudo compreendê-lo em velocidade, impondo-se agora uma nova ordem do mundo: o mais capaz é o mais rápido. Independentemente da qualidade, do valor intrínseco, da beleza, do afecto, o melhor é o que chega primeiro. Mas é assim também que se passa ao superficialmente pelas coisas (senão pela própria vida), sem aprofundamento algum, sem vivência interior, sem a essência imaterial dos objectos que suscitaram algures o nosso interesse. Pouco ou nada se vivencia – nem mesmo a relação com a experiência tida. Anda-se tão apressado que tudo e todos os que possam atrasar essa marcha se transformam no inimigo. E, assim mesmo, nesse pressuposto, se fez toda uma Revolução Industrial, onde o ser humano se tornou ele próprio um bem que tem que circular para que esta grande engrenagem nem sequer sofra a fricção de um pensamento. Comer depressa, dormir depressa, amar depressa... transformou as pessoas em casas com janelas abertas para a rua mas sem alguém a espreitar por elas. Ruas que, afinal, mais não são que perfeitos túneis de “A a B” onde seres humanos se projectam, quais comboios rompendo, rompendo, rompendo furiosos a paisagem e por isso rasgando-a de um possível desenho onde ainda se pudesse sonhar. Mas com o aumento da esperança de vida, nos últimos 150 anos, a questão da felicidade tornou-se presente (e muito premente). Há que ser feliz, aqui e agora, não numa vida depois da morte. Há que ser feliz, agora que por volta dos quarenta anos existe todo um tempo de vida que, do ponto de vista da reprodução da espécie, se tornou redundante.”
Todo este vórtice em direcção à velocidade máxima possível foi acompanhado por um suporte sonoro absolutamente admirável, da responsabilidade de Fernando Mota. Do Lugar onde estou já me fui embora é uma metáfora que ajuda a reflectir no papel do Homem enquanto portador de sentido e, em última instância, sobre o sentido último da vida humana. Mais uma vez o Teatro Meridional não decepcionou o seu público: é sempre um prazer admirar o trabalho de quem arrisca dentro do absurdo, sem a rede de um texto assente na palavra. Foi importante parar para ver. Excelentes interpretações, uma brilhante encenação. É importante parar para reflectir. Sobre a vida e sobre a maneira de fazer Teatro. Mais uma vez. Sempre.

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