Friday, November 26, 2010

A caravana


O Teatro Meridional tem habituado o seu público a um trabalho marcado pelo despojamento cénico e pelo protagonismo do trabalho de interpretação do actor, aliando o jogo dramático a um rigor exemplar. Apostando nas novas dramaturgias, Nuno Pino Custódio construiu um texto baseado na rota da seda, do qual surgiu o espectáculo A Caravana. Interpretado por Carlos Pereira, Catarina Guerreiro, Nuno Nunes, Rui M. Silva e Yolanda Santos, o espectáculo arrasta o espectador para uma viagem fascinante desde a China a Itália. A história de um tecido macio e brilhante é contada através do corpo dos actores que, apoiados por panos e varas, constroem universos de sentido tão diferentes como os que envolvem os trabalhadores da China, os sábios indianos, os pastores sírios ou os mercadores venezianos. O espectáculo começa com uma plataforma longa e estreita, em cima da qual estão dobrados vários panos. A luz, mais do que mostrar, desoculta os contornos e algum colorido daqueles panejamentos que irão ser a cenografia do espectáculo. Os actores entram com roupas de corte largo, lembrando kimonos, onde o laranja é a cor dominante. Dirigem-se à plataforma onde se encontram os panos e no tempo de uma respiração constroem uma oficina, onde um homem começa a contar a história da seda. Tudo começa pelo bicho, que tem de ser sabiamente alimentado com folhas de amoreira. Depois é a construção da oficina, ond os bichos-da-seda são alimentados, onde os casulos são desfiados, onde os fios são tingidos e onde o tecida acaba por ser construído nos imensos teares. Toda esta sequência é apresentada de uma forma surpreendente, com o rigor dos actores que desdobram e dobram panos, tornando-se a um tempo abrigos, casas, coberturas, ou o casulo em que uma mulher se envolve para se transfigurar num dragão. O ritmo é o adequado ao relato da história. Os panos, que abriram o olhar do homem ocidental a outros mundos, são a base do espectáculo. As varas que suportam os panos também se transformam de tear em varanda, em casa, em ponte. E de todas estas paragens o espectador se apercebe, com a evidência do símbolo que contém em si a matriz geradora do jogo cénico. Da China, onde nascem os bichos e se constrói o tecido, começa a viagem em caravanas que seguem para a Índia, onde as histórias de Sheerazade assumem uma crueza desconcertante. Uma mulher, trajando um sahri de seda é assassinada pelo marido, possuído pela loucura do ciúme infundado. O homem passa por uma transformação que o leva a despojar-se de tudo e a devotar-se ao conhecimento, envergando apenas um pano trazido da China. E a caravana continua, passando pela Síria, onde um pastor, que guarda amorosamente as suas ovelhas segue um destino diferente e acaba por fazer parte do deserto harmonioso que o leva ao desejo de encontro consigo próprio. A caravana segue, através do deserto e chega a Veneza, onde os mercadores vendem enfim um tecido magnífico: brilhante, leve, resistente, que fala por si. Todas estas ambiências foram sendo sucessivamente mostradas através de um trabalho exigente e sóbrio, onde o rigor comunica activando no espectador a capacidade de ver para além do aparente. Os figurinos vão-se transfigurando com o simples gesto de enrolar ou desenrolar os panos, dando-nos a dimensão da diferença no trajar ao longo da rota da seda. Para o autor, “A Caravana é um espectáculo sobre a (in) comunicação, a singularidade do indivíduo e a sua identidade colectiva. Relatos de histórias contadas numa representação total onde o corpo do actor assume todos os recursos. De Pequim a Veneza, a maior de todas as rotas é aquela que se faz entre cada ser, preservando a sua essência, fazendo-o existir quando cada um se quis realmente plural.” Uma viagem que traz em si a certeza de um encontro. Entre o actor e o seu público, entre culturas, entre o homem e si próprio, na sua singularidade de indivíduo. Com uma luz belíssima de Pedro Domingos, espaço cénico e figurinos de Marta Carreiras e as vozes potentes de Yolanda Santos e Catarina Guerreiro, o espectáculo A Caravana eleva o espectador acima de si mesmo, viajando através de paisagens, cheiros e sons desconhecidos, tornando-o mais rico e mais aberto a uma visão global. Um espaço vazio preenchido pela harmonia do saber. Um espectáculo a perseguir e a (re)ver.

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