Sunday, November 28, 2010

Ao Luar


Máscaras de madeira escondem rostos carregados de trabalho e dor pelo duro trabalho da terra. Uma mulher monda, um homem cava a terra. Os gestos são precisos e a técnica da máscara dá ao corpo uma outra identidade. Os espectadores reconhecem-se naquela realidade rural. As máscaras saem de cena e dão lugar ao actor César Matoso, que canta o amor e o enamoramento por uma camponesa através de um tema popular. É a introdução para a acção, protagonizada por Célia Martins e Rui Penas, que interpretam dois comerciantes donos de uma banca de produtos que fazem parte de um certo imaginário rural. Desde melões e aguardente de medronho até pentes e espuma de barbear, tudo se encontra naquele pequeno reduto de sonhos antigos. Os comerciantes são vizinhos desencantados da vida. Ele é vendedor de produtos agrícolas e viúvo e ela, abandonada por um marido alcoólico, vende os pequenos luxos domésticos a que a população rural podia aspirar. Os seus encontros são desencontros de quem se sente atraído sem o querer dar a entender. Os três fazem parte da Companhia “Ao Luar Teatro”, recém criada em Março com o intuito de chegar às populações mais recônditas e envelhecidas. Neste trabalho a acção passa-se numa pequena população rural que vai vendo a vida passar devagarinho, ao ritmo das flores que crescem na serra e no barrocal.
A conversa entre os vizinhos dá azo a que os espectadores se transformem em potenciais compradores, abrindo-se o espectáculo a uma interacção pacífica e simpática. Os espectadores provam da aguardente, experimentam os perfumes de há 15 anos, seguram nos melões, avaliam os produtos. Os espectadores sorriem, tornam-se cúmplices desta abordagem amável.
Talvez encorajados pelo clima de entusiasmo que se criou junto do público os vizinhos combinam encontrar-se no baile da aldeia. Após alguns desencontros que intensificam o conflito acabam por se encarar, nervosos e aperaltados, pensando cada um para si mesmo que pode ser a última oportunidade de acenar ao amor e de envelhecer ao lado de um ombro amigo. O baile fica animado, sobretudo porque o público é convidado a dançar. O rodopio é tal e a confusão tamanha que as declarações de amor se perdem e dão lugar a um mal entendido que os leva a encetarem caminhos paralelos cujas vidas não se cruzam. As bancas continuam lado a lado mas os corações doridos pela presunção de uma recusa que afinal não passou de um engano.
A calma da vida lenta e pachorrenta é ameaçada por uma ameaça vinda de decisores longínquos. A aldeia de Entre Valados pode desaparecer perante a ameaça da construção de um aeroporto. Mas nem o medo comum aproxima os vizinhos, que vão envelhecendo lado a lado mas sozinhos, cada um em sua banca. Numa noite singular o vendedor de melões tem um sonho revelador pleno de fórmulas e enigmas. Encontra um frasco suspeito que resolve guardar, não vá a vida pregar-lhe mais partidas e ter de partir mais cedo.
Os anos passam e o peso da vida faz-se sentir no peso das costas dos vendedores de ilusões. Olham um para o outro descobrindo as esculturas que o Tempo marcou nos seus rostos, nos seus corpos. A ameaça do aeroporto continua a pairar e a ensombrar as vidas dos habitantes daquele pequeno lugar no seio da serra algarvia. Passaram 20 anos e a vida continua difícil e solitária. O fim aproxima-se e os vizinhos, já que não envelheceram juntos, resolvem experimentar o misterioso líquido encontrado após o enigmático sonho. Depois de o terem ingerido dá-se um milagre e os seus corpos voltam atrás no tempo, recuando aos 20 anos. E como uma segunda oportunidade não pode ser desperdiçada, resolvem acertar as suas vidas e juntar as vendas. O projecto do aeroporto fica sem efeito por questões burocráticas e o final é anunciado através de uma canção que predispõe todos a sair do espectáculo bem-dispostos e com vontade de voltar.
Por Entre Valados, escrito e encenado por Rui Pena, foi um espectáculo rigoroso, honesto, com forte influência da linha do grupo Teatro ao Largo, mas ajustado à realidade da serra Algarve. Um trabalho profissional que une dois actores experientes a um actor recém-formado num curso de formação profissional do Algarve, César Matoso, detentor de uma excelente voz e uma forte presença em palco. Um bom exemplo do serviço que o teatro pode fazer no Algarve.

Friday, November 26, 2010

O dia dos Prodígios


O público entra na sala principal do Teatro da Trindade e depara-se com um cenário que se impõe pela sua simplicidade e beleza, sem ser ostensivo. Uma plataforma que eleva a cena composta por tapetes, uma árvore típica do barrocal algarvio, ramos suspensos, uma janela que domina o olhar, uma carrinha escondida num canavial. De repente o palco enche-se de corpos que vão compondo a cena. Carlos Paulo, Cristina Cavalinhos, Diogo Morgado, Elisa Lisboa, Filomena Cautela, Hugo Franco, José Martins, Lucinda Loureiro, Luís Lucas, Maria Emília Correia, Maria Ana Filipe, Rogério Vieira e Teresa Faria levam consigo adereços que vestem a cena, compondo-a de um Algarve profundo e isolado do resto do mundo. Vilamaninhos é o lugar onde decorre a acção, descrita magistralmente por Lídia Jorge, na sua obra O Dia dos Prodígios. Com a poesia que caracteriza as suas descrições, a Carminho de Lídia Jorge é transposta para a cena por Filomena Cautela, fazendo lembrar uma figura de Lorca. Uma rapariga bela, filha de mãe solteira, que atrai o seu soldado através do seu cheiro. Lava as janelas, numa imagem belíssima, que causa a inveja das outras mulheres da aldeia. Por entre os ritmos do quotidiano a má-língua impera. E por entre os diálogos criados entre as personagens percebe-se a história de um Portugal triste, iletrado, com as mágoas da Primeira Grande Guerra e as feridas da Guerra Colonial. Carminha é madrinha de guerra de um soldado que a descobre por entre os cheiros doces das plantas aromáticas do barrocal algarvio de carrasco e tomilho. As duas mulheres, isoladas da aldeia no cimo do monte, não assistem ao prodígio protagonizado por Jesuína Palha. O prodígio que foi uma cobra ganhar asas e levantar voo deixou toda a aldeia presa no feito, deixando os desaguisados para segundo plano. A vida continua na sua lenta passagem pelos dias marcados pela lida das mulheres. Pelo bordado de Branca, que borda uma colcha com um dragão para entreter os dias e esconder dos vizinhos os dedos de Pássaro Volante marcados na sua cara. Mas como ela mesma descobre, "Ninguém se liberta de nada se não quiser libertar-se". A memória da Guerra colonial revela-se mais cruel quando a mãe de Carminha descobre numa folha de jornal a notícia da morte do formoso soldado, afilhado de guerra da sua filha. Os tempos difíceis levaram todos os filhos de Teresa e José Júnior a ganhar a vida para fora do país. A aldeia fica quase despida de gente jovem. A mula de Pássaro Volante foge, Macário toca e suspira de amor por Carminha, que não consegue deixar de pensar no seu soldado, a taberna recebe os mesmos homens que contam as mesmas histórias. Até que um dia um soldado irrompe pela aldeia anunciando uma revolução e o fim da guerra. A aldeia continua a cismar no seu prodígio, não percebendo o que as novas do soldado lhe pode trazer. E continua a viver atrás do tempo, tomando como mote a expressão: “Ninguém se liberta de nada se não quiser libertar-se”. Branca conseguiu libertar-se através do seu dom de vidente e Carminha desistiu de si, casando com Macário, depois deste a ter atacado. Esta obra é um retrato desapiedado da ilusão que foi a euforia da revolução. Da crença no esclarecimento global criado por decreto ou por osmose.
O espectáculo teve um excelente leque de actores que contribuiu para uma revisitação mais próxima de um Algarve profundo, ainda desconhecido do resto do país. Uma homenagem às populações que vivem o isolamento a que são votadas nos locais mais inóspitos e a uma escritora consagrada que sempre soube imprimir poesia na situação mais crua: Lídia Jorge.
A acção decorre em Vilamaninhos, interior algarvio, não muito longe do mar, entre o Verão 1973 e a Primavera de 1974. Estamos no Portugal da guerra colonial: há uma madrinha de guerra e um soldado. Mas ecoam memórias da primeira guerra mundial e da implantação da república, e as pessoas desta pequena comunidade, que a emigração reduziu, parecem viver à margem do tempo, ocupadas em reviver o passado, presas em preconceitos ancestrais e conflitos caseiros. Até ao dia dos prodígios, o dia em que a aldeia vê uma serpente a voar...
Com a ironia deste texto de Lídia Jorge, muito próximo do realismo mágico, o espectáculo glosa as contradições tradicionais que estruturam e esclererosam o imaginário português.

Geometria para uma música


Os olhanenses foram brindados com uma noite especial. Dia 12 de Junho o místico chalé que o poeta João Lúcio mandou construir em Marim abriu as suas portas para uma partilha entre várias artes. Numa das alas da geométrica casa de Marim Paula Cardoso Rocha interpretou alguns temas musicais da sua autoria, que tocou ao vivo, acompanhada pelo contrabaixista Zé Eduardo. Outra ala da casa foi ocupada pela pintura de Graça Moniz, bisneta de João Lúcio. No centro da casa, onde emerge uma cúpula em forma de pirâmide de vidro, ecoou a voz da poesia interpretada por António José da Silva e, um pouco por todo o lado, dentro e fora da casa, duas dançarinas enrolavam e desenrolavam um fio de Ariadne, convidando o público a resolver o labirinto deste palacete que, desde sempre, foi dedicado às artes.
Toda esta movimentação ficou registada e dará origem a um documentário, realizado por Ricardo Resende e a um cd que irá ser produzido pela Associação Grémio das Músicas.
O público acorreu ao chamamento e encheu por completo esta mansão que sempre causou curiosidade nos habitantes de Olhão. Foram recebidos pela voz de António José da Silva que, do alto da varanda, disse poemas de Raul Brandão, Miguel Torga e João Lúcio. As bailarinas saíram pelas janelas, iluminadas pela centelha da inspiração, simbolizada na vela que acenderam no início do espectáculo e convidaram o público a visitar esta ancestral morada das artes. Depois do recital de piano e contrabaixo o público pôde usufruir de uma cálida e tranquila noite estival, apreciando a arquitectura e o prazer de uma boa conversa em torno das artes. Há noites assim: que se deixam visitar por um núcleo de criadores e artistas de excelência que se vão revelando no Algarve.

O pianista do oceano


A MITO, Mostra Internacional de Teatro de Oeiras, promoveu entre os dias 3 e 13 de Setembro uma temporada recheada de teatro para todos os gostos. Espectáculos para o público em geral, espectáculos de rua, espectáculos destinados ao público infantil e ainda mesas redondas e formações têm desinquietado as noites de Setembro na vila de Oeiras.
Um dos espectáculos que conseguiu surpreender o público que lotou o auditório do Teatro Independente de Oeiras foi produzida pelo grupo “Peripécia Teatro” e baseou-se no texto Novecentos, de Alessandro Barico. O texto conta a história de um pianista que nasceu a bosdo do Virginian, um paquete que fazia a rota dos emigrantes e milionários entre a Europa e a América, e nunca pisou terra.
Encenado por Noelia Dominguez, o espectáculo contou com o desempenho dos actores Sérgio Agostinho e Angel Fragua, acompanhados por dois excelentes músicos: Luis Filipe Santos e Tiago Abrantes.
O espectáculo começa com dois homens envelhecidos a falar sobre a sua vida. E como a vida é a memória, a memória traz consigo a capacidade de reviver outras vidas, recontadas e reescritas à medida que os anos vão passando. O espaço era preenchido por caixotes da madeira que se transformavam em vários objectos, e por uma cómoda de três gavetas. A história de um homem que viveu sempre no navio onde foi encontrado recém-nascido e conseguia retirar sonoridades únicas do piano, foi representada por estes quatro homens de forma notável e divertida. Os actores, acompanhados pelos dois clarinetistas cruzam várias técnicas teatrais que vão desde a criação do espaço imaginário e a assunção do objecto num universo de verdade, até à técnica do clown e ao café teatro. A história de Novecentos, com toda a carga poética de Alessandro Barico, foi trabalhada dramaturgicamente por José Carlos Garcia e contada em três línguas, mostrando a multiculturalidade que se encontrava nos navios que faziam o transporte dos emigrantes para a América. A voz, o corpo, o olhar, fizeram da história de Novecentos um conto emotivo que não cai no melodrama de lágrima fácil. Pelo contrário, faz com que o espectador se divirta enquanto está a ouvir a história dramática de um homem que nunca saiu do navio de onde nasceu. Atreveu-se uma vez, mas assustou-se com o infinito presente nas ruas, nas casas, nas mulheres bonitas. Preferiu a finitude das teclas do piano e do seu oceano. É notável a cena em que um conhecido músico de jazz sobe ao navio para enfrentar um duelo musical com Novecentos. A ambiência de duelo num western dá o mote para uma coreografia em que Novecentos mostra que é um músico autodidacta e não convencional, indiferente aos desafios habituais dos compositores e intérpretes da sua época. O momento em que os dois velhos músicos recordam a morte de Novecentos é repleto de poesia. A carga nostálgica termina no momento exacto em que a nostalgia daria lugar à tristeza. Novecentos decide afundar-se juntamente com o paquete que o viu viver e, no momento da explosão os dois velhos músicos recriam a hipotética conversa que Novecentos teria com S. Pedro, pedindo-lhe para entrar no Paraíso. O público diverte-se, sem deixar de sentir uma simpatia profunda pelo músico dos oceanos.
Uma companhia composta por dois actores espanhóis e um português e que consegue trazer para a cena toda a vivacidade e paixão que caracteriza o espírito latino no seu melhor. Os músicos conseguiram construir um espectáculo paralelo que, acompanhando o texto, contribuía para o público integrar a emoção procurada no relato da história de Novecentos. Um mito tornado realidade, a não perder quando se cruzar connosco em terras algarvias.

A preservação da língua como uma questão ética


Por vezes o sublime é um sentimento que custa a dissolver-se no universo fragmentado das sensações humanas, custando, por isso, a impor-se ao nível racional. Turismo Infinito, produzido pelo Teatro Nacional de S. João, é o paradigma de um espectáculo que a memória retém como pertencendo à categoria do sublime.
A cenografia de Manuel Aires Mateus, arquitecto cujo trabalho foi muito recentemente distinguido com o prestigiante Contractworld Award, é o que se impõe de forma quase agressiva ao espectador. Duas plataformas enormes, dando a ideia de uma estrada a caminhar para o infinito, anunciam o reflexo uma da outra, ao mesmo tempo que revelam a ideia de desequilíbrio. A plataforma de baixo abre-se em fendas mágicas, desocultando heterónimos pessoanos, que se assumem como entidades autónomas. O desenho de luz de Nuno Meira é de uma sensibilidade extrema, conseguindo captar os diversos matizes do universo pessoano em questão naquele texto. As personagens eram todas interpretadas por actores de primeiríssima água, fazendo justiça a Pessoa. O espectáculo é todo ele uma viagem intensa e profunda ao difícil universo pessoano. A cenografia abriga no seu interior o mundo subterrâneo do guarda-livros Bernardo Soares, do engenheiro naval Álvaro de Campos, da eterna namorada Ofélia Queiroz e do próprio mentor Fernando Pessoa. Alberto Caeiro já surge num plano superior, que paira acima dos outros fragmentos de personalidade e a corcunda Maria José, o único heterónimo pessoano feminino que se conhece, rasteja enquanto lê a carta ao carpinteiro, num registo tocante da actriz Emília Silvestre. Impressionante a forma como modifica o registo da leitura, subserviente e vitimizante, para uma postura de maioridade moral, perante o seu destino. João Reis está assombroso na interpretação de Álvaro de Campos. Com uma voz poderosa, que mostra a essência do excesso dado áquela personagem. Luís Araújo mostra-nos um Alberto Caeiro bucólico e sonhador, que se liberta das sombras e integra o mundo de forma panteísta, misturando-se com o poder da verbalização da beleza.
José Eduardo Silva traz-nos à memória o guarda-livros contra o qual continuamente lutamos. O inconformado que vocifera contra o patrão Vasques mas que tem medo de ousar uma mudança mais radical na sua vida. E o próprio Fernando Pessoa, interpretado por Pedro Almendra, que faz a intersecção de todas as personagens. Em todos eles se sente a beleza de uma dicção perfeita, que não é forçada, mas surge como um veículo natural do pensamento pessoano. Num tempo em que a língua portuguesa está continuamente a ser maltratada por entidades com responsabilidades acrescidas na sua transmissão, como locutores, jornalistas e até professores, é quase uma questão ética a necessidade da manutenção do uso correcto da Língua Portuguesa. Principalmente quando se trata da transmissão de ideias de um poeta que se tornou o maior embaixador da língua portuguesa no mundo.
“Sou a cena viva onde passam vários actores representando várias peças.” A frase que Bernardo Soares escreve pelo punho de Fernando Pessoa é uma das muitas epígrafes possíveis de Turismo Infinito. Porque as personagens navegam no infinito mar de sentidos e sensações do universo pessoano. Porque se encontram todas no “porto infinito” para onde as linhas paralelas se encontram, porque as personagens trocam entre si o sentido de ser, cruzando sombras e interseccionando sensações. O ritmo do espectáculo, lento, é imprescindível ao saborear das palavras e dos sentidos contidos nos textos de Pessoa e dos seus heterónimos.
Também Ofélia Queirós marca a sua presença no universo quase esquizofrénico entre Álvaro de Campos e Fernando Pessoa, quando comenta a carta de despedida do seu namorado, ditada ao engenheiro naval.
O guarda-roupa, cinzento, mostra a indefinição das personagens, fugindo ao contraste habitual do preto e branco, utilizado na poética de pessoa.
Este é um daqueles espectáculos que temos obrigação de ver, por foi superiormente encenada e magistralmente interpretada. É uma oportunidade quase única de ver um espectáculo que agarra o público sem que este tenha oportunidade de respirar, tantos são os estímulos estéticos de que se serve. A sua matéria prima assenta numa conjugação perfeita dos actores, da cenografia, da luz, da articulação das palavras, tudo orquestrado pelo talentoso encenador Ricardo Pais.
Um perfeito tributo a Pessoa. Um espectáculo inesquecível.

A escola da vida


Depois de ter percorrido as escolas da região com espectáculos que obrigavam a uma reflexão e posterior discussão sobre problemas como as drogas duras, a educação para a sexualidade, o bullying, chegou a vez do álcool. A ACTA, companhia de teatro do Algarve, vai iniciar a digressão pelas escolas do Algarve com o espectáculo Mais um Shot?, sobre o problema do álcool na adolescência. Com texto de Elisabete Martins e Bruno Martins, Mais um Shot? assume-se como um espectáculo interactivo que pretende promover a discussão sobre a relação dos jovens com o álcool. Incentivado socialmente desde tempos ancestrais o álcool desde cedo se tornou um problema devido à falta de controlo que os consumidores assumem amiúde.
Bruno Martins, Elisabete Martins, Nádia Gonçalves e Nuno Silvestre são os actores que dão vida a quatro personagens jovens. Apresentam uma séria de situações e passam a bola ao público para que sejam os adolescentes que lidam de perto com este problema a apresentar soluções e propostas de representação. À semelhança de outros trabalhos anteriores destinados ao público escolar, os alunos dividem-se em grupos e completam as histórias contadas pelos actores da ACTA. Neste caso, a história de base é a de quatro adolescentes que se preparam para ir a uma festa. Há uma rapariga que gosta de um rapaz mas a sua timidez impede-a de assumir o seu interesse. Há um rapaz que gosta de disfarçar a sua insegurança com comportamentos e comentários excessivos, quer em relação ao seu envolvimento com raparigas, quer em relação às suas façanhas que incluem bebedeiras em festas. Há um adolescente que não bebe mas se diverte e uma outra rapariga que bebe moderadamente e gosta de se divertir. Estas quatro figuras dão origem a uma multiplicidade de histórias que vão sendo criadas pelo público a partir do momento em que os jovens se encontram na festa. Os panoramas são vários: há um cenário em que a rapariga deslumbrada pelo rapaz entra em coma alcoólico, há uma versão em que entram todos alcoolizados num carro e sofrem um acidente de viação, há outra situação, menos realista, que é a de uma feste em que não há álcool mas todas se divertem e há a criação de uma outra história em que o rapaz e a rapariga se envolvem e na manhã seguinte não se lembram do que lhes aconteceu. Os alunos, para além de recriaram essas versões através de propostas suas, criam também uma lista elencando os problemas que a ingestão excessiva de álcool pode provocar. Estas pequenas dramatizações são intercaladas com explicações mais técnicas por parte dos actores da ACTA sobre as consequências do abuso do álcool e com uma ferramenta teatral que é o recurso ao hot sit. O actor senta-se numa cadeira especial em que é obrigado a responder, como personagem, a todas as questões que lhe são colocadas. No final o público decide o desfecho da história e este espectáculo é apenas uma provocação para que a discussão se prolongue nas salas de aula, orientados pelos professores, em debate com os colegas, para que aos poucos a prática se altere e o hábito socialmente aceite de beber um copo de vinho não seja atropelado por comportamentos desajustados que se podem tornar numa sentença de algo muito pior.
Este espectáculo, encenado por Elisabete Martins, conta com a participação de dois actores que concluíram recentemente o Curso Profissional de Artes do Espectáculo variante Interpretação da Escola Secundária Pinheiro e Rosa de Faro, Nádia Gonçalves e Nuno Silvestre. Com um desempenho que não ficou atrás dos outros dois actores, estes elementos mostram que a nova geração de actores está aí pronta para dar cartas e contribuir para o desenvolvimento da cultura ao nível regional. Para bens à estrutura, que decidiu apostar nos novos valores formados no Algarve e parabéns aos novos actores pela força e pela coragem de enfrentar diariamente um público difícil. Depois da escola de actores, a escola da vida.

O marinheiro


O Grupo de Teatro Penedo Grande, de S. Bartolomeu de Messines, levou à cena o espectáculo O Marinheiro, a partir do texto de Fernando Pessoa. Depois de uma digressão pelos Açores o grupo de Messines actuou no Pátio B@r, em Faro. Dirigidas por Rui Cabrita, as três veladoras foram interpretadas por Célia Ginó, Lisete Martins e Martas Vargas. Num ambiente intimista, muito próximas do público, a três actrizes reinventaram a escrita de Pessoa descobrindo-a na emoção dos seus corpos, para depois a devolver ao público carregada de um outro simbolismo. Pessoa escreveu um drama estático, num ambiente de imobilidade e irrealidade no qual se recusa a realidade, lançando a ponte para um universo onírico. Na leitura dramatúrgica de Rui Cabrita a imagem estática das veladoras transfigura-se no desassossego das suas almas, dando corpo à inquietude e à necessidade de partilhar as suas vozes interiores. O caixão com a donzela de branco foi substituído por um manequim suspenso, de vestido branco, que se impõe na cena. A iluminação, própria de um velório, é quase circunscrita a velas e a uma intensidade luminosa muito reduzida, por parte dos projectores. Como recurso que vai provocar um distanciamento Rui Cabrita utilizou uma gravação em filme onde se via um marinheiro sufocando a ansiedade no fundo da sua banheira. Sufocando sob o peso da morte que deixou na ilha perdida. Rui Cabrita, à semelhança do poeta-dramaturgo, é o marinheiro que se perdeu numa ilha longínqua. Uma perda que resulta da fragmentação de uma identidade que, à semelhança da ilha, é perdida. Uma fragmentação que, à semelhança de um espelho partido, reflecte as imagens repartidas dos heterónimos convertidos em veladoras. As veladoras, fiéis ao texto de Pessoa criaram uma autêntica hermenêutica do corpo à medida que o poema dramático ia avançando. À pergunta “Quem é que eu estou falando?... Quem é que está falando com a minha voz?...” o corpo responde envolvendo-se no espaço num bailado singular. A introspecção intensa transmuta-se numa expressão corporal singular que aproxima a palavra ao corpo do espectador. A fuga da palavra desemboca no encontro do corpo. “É belo falar do passado. Porque é inútil e faz tanta pena.” E se a boca cala o presente o corpo avança para o futuro. Principalmente o corpo de Marta Vargas que descobre todos os recantos do pequeno espaço de representação e, à semelhança das ondas do mar que diz ter sonhado, ondeia e irrompe expressivo quando diz: “Há ondas na minha alma... Quando ando embalo-me.”
É sobretudo tocante sentir a emoção destas três mulheres quando partilham o texto e o corpo com os espectadores. No final, quando assumem o vestido branco idêntico ao da jovem donzela que estão a velar mostram o desespero da paralaxe ontológica ao mesmo tempo que gritam: “Estou a ouvir-me gritar dentro de mim mas já não sei o caminho da minha vontade para a minha garganta.”
Lisete Martins está imponente neste trabalho, Marta Vargas impressiona como actriz na alma e no corpo e Célia Ginó é corente no seu trabalho de veladora mais circunspecta mas não menos implacável.
Um momento tocante que desoculta três actrizes algarvias e faz justiça às palavras do poeta. Um trabalho intenso e não menos belo em que Rui Cabrita partilha com o seu público fragmentos da sua alma. Como partilha nas notas de encenação: “Caído o corpo negro a alma aclara-se com igual trajar de branco. Musa tão triste e tão vida charco da memória da água... da vida da árvore afogada de pé sem tempo da morte do passado e do tempo a água só. Induzida na memória pelo som da banheira, o marinheiro na banheira o marinheiro continuando a sua viagem sem porto deixando uma mulher morta vivendo em sua memória de noite uma imagem projectada na água e nos montes do pensamento uma alma consciente da morte do fim de algo, uma mulher que vai descobrindo com o fluir de um sonho a ausência do real uma cabeça que nunca perceberá porque não há relógio nesta noite três corpos dessa mulher que se queda no fim morta num vestido branco suspensa que lhe faz lembrar ela ao marinheiro que sai da saia quando outro dia raia de manhã numa praia de um duche liquidifica-memórias ele parte no ir partindo na procura comum do pão da vida que resta.”
Um espectáculo que merece ser revisto num espaço mais adequado à prática do teatro.

A vertigem Meridional


O espectáculo VLCD é uma fábula sobre o poder que o Tempo detém sobre ser humano. Assente no rigor da técnica da máscara, os quatro actores, Carla Maciel, Fernando Mota, Luciano Amarelo e Miguel Seabra mostram a simultaneidade e a discordância de uma vida a vários tempos. A encenação de Nuno Pino Custódio mostra um espaço delimitado por um círculo vermelho assumindo-se no chão. Os actores estão fora do círculo, sentados, preparando a sua entrada. A um tempo, levantam-se sem haver nenhum sinal exterior que lhes dê a noção de simultaneidade, a não ser a concentração. Entram no círculo e passam a ser personagens controladas pela velocidade (vlcd). Carregam malas de viagem de diferentes tamanhos, prontos a partir para as suas jornadas pessoais, que se cruzam acidentalmente com outros transeuntes. Experimentam a vertigem da velocidade através de uma linguagem inventada que nos conduz para um universo em que as crianças inventam os seus próprios signos e as suas próprias significações.
VCLD mostra-nos a incapacidade que o Homem tem de controlar a sua relação com o Tempo. A páginas tantas as malas de viagem transformam-se num escritório/fábrica, no qual o ritmo é marcado por uma bateria cenografada num dos malões de viagem. Os viajantes são apanhados numa vertigem de velocidade da qual não se conseguem libertar, mostrando o destempero de uma sociedade que exige cada vez mais ao nível do ritmo de produção. O ritmo pára e somos confrontados com as pequenas rotinas quotidianas, executadas descompassadamente. Dentro dessas pequenas rotinas exalta-se o pormenor da fila na qual se tem de esperar para qualquer coisa: para um transporte, para o pão, para um afecto. Uma deslumbrante solução de encenação para a ideia do texto Line, de Israel Horowitz, desta feita levada a cabo com aguçado engenho. Os transeuntes deambulam de fila para fila, sem saberem muito bem qual é o objectivo. Simplesmente, está-se na fila porque todos os outros também estão. Miguel Seabra tem um momento em que evoca o distanciamento brechtiano, explicando em breves segundos o que está a acontecer em palco. Mas a cena continua e as relações entre as pessoas começam e acabam em breves momentos. Com um domínio admirável do corpo os quatro actores brincam com o conceito de velocidade, ora acelerando o ritmo, ora atrasando-o até a um elevado nível de lentidão. Mostram, através do corpo, como o tempo pode espartilhar o homem, desde o seu trabalho até aos seus sentimentos. Pode, enfim, dar-se ao luxo de adquirir produtos de marcas reconhecidas internacionalmente. Mas a que preço! Segundo a produção do teatro Meridional, “Falar em tempo, hoje, significa acima de tudo compreendê-lo em velocidade, impondo-se agora uma nova ordem do mundo: o mais capaz é o mais rápido. Independentemente da qualidade, do valor intrínseco, da beleza, do afecto, o melhor é o que chega primeiro. Mas é assim também que se passa ao superficialmente pelas coisas (senão pela própria vida), sem aprofundamento algum, sem vivência interior, sem a essência imaterial dos objectos que suscitaram algures o nosso interesse. Pouco ou nada se vivencia – nem mesmo a relação com a experiência tida. Anda-se tão apressado que tudo e todos os que possam atrasar essa marcha se transformam no inimigo. E, assim mesmo, nesse pressuposto, se fez toda uma Revolução Industrial, onde o ser humano se tornou ele próprio um bem que tem que circular para que esta grande engrenagem nem sequer sofra a fricção de um pensamento. Comer depressa, dormir depressa, amar depressa... transformou as pessoas em casas com janelas abertas para a rua mas sem alguém a espreitar por elas. Ruas que, afinal, mais não são que perfeitos túneis de “A a B” onde seres humanos se projectam, quais comboios rompendo, rompendo, rompendo furiosos a paisagem e por isso rasgando-a de um possível desenho onde ainda se pudesse sonhar. Mas com o aumento da esperança de vida, nos últimos 150 anos, a questão da felicidade tornou-se presente (e muito premente). Há que ser feliz, aqui e agora, não numa vida depois da morte. Há que ser feliz, agora que por volta dos quarenta anos existe todo um tempo de vida que, do ponto de vista da reprodução da espécie, se tornou redundante.”
Todo este vórtice em direcção à velocidade máxima possível foi acompanhado por um suporte sonoro absolutamente admirável, da responsabilidade de Fernando Mota. Do Lugar onde estou já me fui embora é uma metáfora que ajuda a reflectir no papel do Homem enquanto portador de sentido e, em última instância, sobre o sentido último da vida humana. Mais uma vez o Teatro Meridional não decepcionou o seu público: é sempre um prazer admirar o trabalho de quem arrisca dentro do absurdo, sem a rede de um texto assente na palavra. Foi importante parar para ver. Excelentes interpretações, uma brilhante encenação. É importante parar para reflectir. Sobre a vida e sobre a maneira de fazer Teatro. Mais uma vez. Sempre.

A alma de Lorca


O Teatro da Terra, estrutura recém criada em Ponte de Sôr, trouxe a Loulé, por intermédio da DeVIR, a produção A Casa de Bernarda Alba, de Lorca, encenado por Maria João Luis. Este espectáculo foi apresentado no convento de Stº António, em Loulé, espaço privilegiado para devolver ao espectador as emoções que este texto encerra. O interior da antiga capela do convento foi o cenário ideal para apresentar a casa de Bernarda, uma matriarca fria e tirana, que encerra desumanamente as filhas em casa, em pleno desabrochar sexual. Três carrinhos de linhas gigantes, uma poltrona e seis cadeiras de espaldar alto compõem a cenografia. Pôncia, a criada, as cinco filhas, Bernarda e a sua mãe, conviveram com aquele espaço como se de facto fosse a sua casa. Na segunda parte do espectáculo o público foi conduzido para um claustro em ruínas, que serviu na perfeição para o desenlace da cena final. A Casa de Bernarda Alba é a ultima peça de Frederico Garcia Lorca , escrita em Junho de 1936, ano em que o escritor viria a ser assassinado. Para Maria João Luis, esta história é «uma história aparentemente simples, é, no entanto, um autêntico bilro de intenções e mensagens, onde destaco a violência e a agressividade. Tão humanos que nós somos. Tão capazes de tudo. Uma família fechada, uma sociedade fechada, cheia de padrões. Não vou aqui discuti-los, mas sei que é preciso continuar, tal como Lorca, a analisá-los e, se preciso for, a intervir, usando aquilo de que somos feitos. Este texto fala-nos de violência, opressão, medo, humilhação e consequente revolta e poesia. Não estamos assim tão longe desta realidade escrita em 1936, ano em que o seu autor foi fuzilado. Continuamos como podemos, apesar de todos os dias nos chegarem notícias de violência e opressão. Continuamos como podemos, apesar de todos os dias nos chegarem notícias de violência e opressão. Continuamos como podemos. As palavras são pontes. Tudo o que se transforma a realidade do artista».
Nesta encenação a criada começa a lavar o chão ao som de uma canção de Lorca. Lava-o com raiva, com sofrimento, pondo em cada gesto a carga de um povo com fome. Uma cena tocante que prepara o espectador para o ambiente de violência que se vai seguir. Este texto de Lorca fala-nos de abusos de poder, de opressão, de sofrimento, de luta pela liberdade, de amor e de traição. Cada personagem procura, a sua maneira, a felicidade que lhe é negada por um mundo de tabus e por uma sociedade impregnada de regras. Pôncia, a criada velha, simboliza a ligação entre um mundo onde miserável onde se passa fome e o mundo da burguesia rural abastada, que compra rendas sem lhe dar préstimo. Baseada numa história real, esta peça leva-nos a uma viagem ao sufocante mundo das regras e da discriminação dentro da própria família, exercida por uma mãe tirana. Bernarda, que casou duas vezes, proíbe as filhas de saírem de casa após a morte do seu segundo marido. Jovens à procura de um motivo para se libertarem desta tirania, voltam-se contra a irmã mais velha, filha do primeiro marido de Bernarda que, por ter um dote maior, encontrou um pretendente. Angústias vai finalmente casar, aos 38 anos com o rapaz mais cobiçado da região. Esta decisão cria uma explosão de sentimentos que as actrizes souberam mostrar de uma forma verdadeiramente exemplar. A força de Lorca estava bem patente na representação de cada uma das actrizes com particular destaque para a força de Bernarda, interpretada pela actriz Custódia Gallego, para a sobrevivente Pôncia, interpretada pela actriz Ana Brandão e para a irreverência de Adela, a filha mais nova de Bernarda, interpretada pela actriz Diana Costa e Silva. A violência de Bernarda ajusta-se à violência dos sentimentos que estão oprimidos e prestes a explodir à mais pequena faísca. A faísca é a assunção da paixão de Adela por Pepe Romano, o afastamento deste pela matriarca, que leva ao suicídio da filha mais nova. A última frase da peça “A filha de Bernarda Alba morreu virgem”, mostra bem a submissão de uma sociedade hipócrita à aparência.
Lorca definiu assim o teatro: " 0 teatro é a poesia que sai do livro e se faz humana. E ao fazer-se, fala e grita, chora e desespera. 0 Teatro necessita que os personagens que apareçam em cena, levem um traje de poesia e ao mesmo tempo que se lhes vejam os ossos, o sangue. Tem de ser tão humanos, tão horrorosamente trágicos e ligados a vida e ao dia com uma forca tal, que mostrem as suas tradições, que se apreciem os seus cheiros e que salgue os lábios toda a valentia das suas palavras cheias de amor ou de asco. 0 Que não pode continuar é a sobrevivência dos personagens dramáticos que hoje sobem aos cenários levados pelas mãos dos seus autores. São personagens ocos, vazios totalmente, aos que apenas é possível ver através do casaco um relógio parado, um osso falso ou uma caca de gato dessas que há nos devaneios." Nesta produção, Maria João Luis e as actrizes do Teatro da Terra cumpriram em Loulé esta definição.

Vidas de cristal


Jardim Zoológico de Cristal, de Tennessee Williams, encenado por Nuno Cardoso, foi o espectáculo apresentado no dia 30 de Janeiro no Teatro das Figuras. Tennessee Williams admitiu que um dia se apercebeu de que a vida de um escritor iria ser algo de semelhante à defesa de um forte contra um bando de selvagens. Este escritor, que se declarava basicamente um humanista, escreveu com a dureza de alguém que atravessou a grande depressão e cuja vida foi semelhante, segundo as suas palavras, a um “caleidoscópio vertiginoso”. Escrevia continuamente porque não conseguia outro meio de expressar coisas que pareciam exigir expressão. E foi de um homem com uma vivência difícil que surgiu um texto cru que o levou à ribalta, como Jardim Zoológico de Cristal. O texto mostra o quotidiano exíguo de uma família disfuncional, reduzida a uma mãe que foi obrigada a criar dois filhos sozinha. O peso da tradição da América sulista dos anos 40 marca o dia-a-dia daquelas três pessoas que se sufocam mutuamente num emaranhado de culpas, enganos e recriminações. A mãe, uma Sulista assumida e determinada, vive suspensa nas brumas de um passado que teima em fazer presente. Assume para a sua filha Laura o mesmo tipo de comportamentos que havia tido na mocidade, quando a casa se enchia de pretendentes. Laura, vítima de uma pequena deformidade na perna, não tem pretendentes para receber e passa as tardes a divagar pelos museus, fruto da sua fobia ao curso de contabilidade. Tom, o filho, trabalha num armazém para sustentar a família. Mas o seu sonho é correr mundo e seguir as pisadas do pai que fugiu daquele mundo pequeno e demente. Tom assume neste texto o papel de observador que sai da situação e comenta a cena, voltando a entrar quando a família acorda para a sua realidade. A encenação de Nuno Cardoso consegue transmitir ao espectador a sensação de sufoco através da cenografia. Um rectângulo que recria um apartamento no meio de uma cena completamente escura permite a imagem de uma vivência oprimida, não só pelo espaço, mas sobretudo pela pressão das obrigações familiares. Nuno Cardoso coloca os actores na cena numa situação de suspensão, como se de manequins se tratassem. É uma suspensão da vida que se recusam a viver em prol de um destino no qual acreditam ter de obedecer.
A luz de José Álvaro Correia transmite para além da ambiência, os estados de espírito das personagens. Há uma luz na manhã que invade a cena em paralelo com a esperança que a mãe devota ao dia e ao futuro dos seus filhos. Belíssima, acompanha todos os matizes e cambiantes do dia, detendo-se na evocação final de Tom, com a sua figura fora do apartamento sufocante, iluminado e olhando para o seu passado na obscuridade.
Laura, a filha, subjugada por uma mãe dominadora, sofre de ataques de pânico e sucumbe nas ocasiões mais críticas. Desiste de viver a sua própria vida, dedicando-se à sua colecção de peças de cristal. Uma colecção de vários animais que exigem uma atenção meticulosa. Tom vive numa opressão constante, com alma de poeta e mãos de operário. É forçado pela mãe a permanecer em casa enquanto a irmã não conseguir a sua independência. Tom vive infeliz, ansiando por uma vida que seja sua. Num derradeiro favor à mãe leva a sua casa um colega do armazém a fim de o apresentar à sua irmã. A mãe começa a sonhar com a sua própria libertação, enfeitando a casa e a filha. Laura reconhece o amigo do irmão como o único rapaz por quem esteve apaixonada. Fica em pânico e quando tudo se supera – a timidez, o pânico, a vergonha de ser coxa – e Jim a convida para dançar, beijando-a com ternura, revela-lhe que está noivo e que não pode voltar a vê-la. O mundo de Laura desaba e a vida volta ao que era dantes. Mais dura, porque Tom seguiu o seu sonho, saindo de casa. Com mais cor, porque também Laura conseguiu continuar a ver a vida através de cristais.
Nesta encenação os actores Maria do Céu Ribeiro, Micaela Cardoso, Luís Araújo e Romeu Costa entregaram ao trabalho um realismo dramático com uma qualidade que tocou os espectadores. Os momentos de suspensão estavam colocados em pontos estratégicos de tal modo que cada um era um esboço que servia para ornamentar a vida do outro. Tudo se conjugava numa ética de deveres que foi rasgada abruptamente pela fuga de Tom, o narrador da história.
Uma história de uma crueza desconcertante que provoca um sentimento de solidariedade pelo outro e, estranhamente, de simpatia pelo anti-herói que despoletou a tragédia da história. Um espectáculo verdadeiramente brilhante.

O prazer do Inferno


Qual a leitura que Olga Roriz faz do Inferno? Das suas palavras percebemos que neste espectáculo retrata o Inferno como “um lugar onde se descansa por fim a tristeza e se cansa o corpo dançante pelo puro prazer de o fazer. Um espaço de libertação e tranquilidade incontida que predispõe ao arrebatamento. Contradizendo o título, aqui o pecado não é punido. A maldade não é punida. A fraqueza também não. Inferno é um caminho interior e iniciático, polvilhado de tristezas, ironias e reconciliações. A ideia de musical, como em Paraíso, continua presente mas com um olhar ainda mais distante. Várias são as formas de expressão. As vozes unem-se em hino ou em canções de amores solitárias. Os anjos transformam-se em bobos que dançam e falam sobre alguns de nós.”

O espectáculo apresentado no passado dia 9 de Janeiro no Teatro das Figuras, em Faro, apresenta de uma forma ironia mas muito realista o lugar de todas as tentações. A queda do anjo Gabriel consubstancia-se na assunção de uma eficácia directa do poder do anjo, em oposição à crença na providência divina. O anjo determina no humano a crença absoluta nas suas possibilidades, permitindo-lhe que seduza, que cante, que dance, assumindo-se como corpo dançante perante a realidade. A humanidade aprendeu a precaver-se e o sentimento de pecado é transfigurado, assumindo-se numa vivência liminarmente humana, onde o corpo é o responsável da sua própria transformação.
A forma, ao invés de se tornar espírito, como num musical passado no Paraíso, assume a sua condição mortal e pecadora. Neste Inferno o corpo gosta de ser corpo e o castigo, simbolizado pela rede de campo de concentração é transformado num confortável salão onde as vozes se abrem ao canto e o corpo ao desejo.
Os bailarinos interpretam o desejo dos corpos, dançam e entoam cantos ao amor, à ambiguidade, à vontade obstinada e egoísta, a um universo sem juízos de valor. E é assim que podemos sentir a criação de Olga Roriz: uma entrega do corpo ao plano da liberdade, sem juízos de valor por parte do espírito ou de qualquer outra entidade que ajuíze. No Inferno os bailarinos são privados da noção de espaço, da noção de tempo através da auto-flagelação com vendas nos olhos e nos ouvidos. Mas a dança continua e, apesar da cegueira e surdez exteriores os corpos persistem em prosseguir livres, explorando o espaço que se lhes apresenta.
Olga Roriz evidencia a figura do eterno feminino, realçando o corpo da mulher com vestidos elegantes e saltos altos. No corpo do homem é também desenhada a sua masculinidade, nem mesmo quando se assume como anjo Gabriel, que seria assexuado por natureza. E persiste na sua busca de sensualidade quando dança com um corpo invisível adivinhado pelos sapatos vermelhos que conduz.
O final, em que a ideia de descontracção e preguiça desoculta a sensualidade, coloca a virtude a dançar nos braços do pecado. Quando a liberdade no gesto é assumida, a noção de pecado pode morrer, uma vez que a punição se esvai e se pode assumir alto e bom som, fazendo nossas as palavras de Adriana Calcanhoto: “Eu não gosto do bom gosto, eu não gosto do bom senso”.
A ironia de Olga Roriz esclarece as dúvidas quanto à condição humana. Presos num campo de concentração, os homens e as mulheres fazem por ignorar esses constrangimentos através da esperança de um mundo melhor, anunciada pelo anjo da providência, que lança confetis e promete que “a vida vai melhorar”. Pelo final, e pelo visão de felicidade no Inferno somos levados a acreditar que sim.
Este espectáculo, concebido e coreografado por Olga Roriz, teve um Desenho de Luz de Clemente Cuba, cenografia de Olga Roriz e Pedro Santiago Cal. A interpretar o Inferno estiveram Catarina Câmara, Maria Cerveira, Sylvia Rijmer, Bruno Alexandre e Pedro Santiago Cal.
Um espectáculo onde a fúria dionisíaca conduz a emoção para o plano do meta verbal, ultrapassando a palavra e assumido a riqueza da música e das palavras que dançam em forma de sons. As canções dançam e impõem um movimento ao corpo, por vezes desconcertante, como o momento belíssimo em que Pedro Santiago Cal constrói círculos com a sua cabeça ao som do tema de Brel “On a beu faire”.
Um espectáculo que denuncia a queda dos falsos profetas e anuncia a reconciliação do Homem com a sua essência corpórea, mergulhada no desejo e na busca do prazer. A todos os níveis, admirável.

Cal


Nos dias cinco e seis de Fevereiro o Teatro da Terra trouxe ao Centro de Artes performativas do Algarve o espectáculo Cal, a partir da obra homónima de José Luis Peixoto. Cal é um espectáculo sobre a velhice. A cristalização de um tempo que se assemelha à passagem da cal através dos anos, protegendo o interior do exterior agreste. José Luis Peixoto fala-nos, nesta obra, sobre as revelações que os velhos conseguem transmitir. Com admite o autor, “de certo modo, quis preservar, através da escrita ficcional, a dignidade das pessoas que me fizeram ter consciência de que a velhice não é só uma questão de decadência física. Às vezes é também o exacto contrário disso.”
O espectáculo encenado por Maria João Luis e Gonçalo Amorim apoia-se numa estética simbólica que joga com a imagem dos próprios actores projectada num ecrã gigante. A velha Carlota deixa correr uma lágrima perante a inutilidade da sua vida. Depois de dado o mote, Maria João Luis e Gonçalo Amorim ausentam-se do palco dando lugar às imagens que se vão sucedendo no filme que suporta o espectáculo. Maria João Luis dá corpo e voz a uma velha que teimosamente luta contra o tempo que lhe vai curvando as costas. Vai à vila vender a burra, da qual se despede com carinho, senta-se debaixo da árvore, vendo o tempo passar. O Tempo permite-lhe ver o anjo que a acompanha. Maria João Luis rompe a cena trazendo pedaços do ser da vida de Ana, ou de Carlota. O bonsai, o feixe de lenha, o pequeno banco de madeira que suporta as batatas, o cajado que suporta o peso da vida. Há uma intromissão do actor na projecção e uma invasão do filme na figura do actor. A contaminação passa a fazer parte integrante do espectáculo e o espectador passa a fazer parte integrante dos dois suportes artísticos que dão vida às personagens de José Luis Peixoto. Para o autor, a inspiração para o seu livro “não foi só a identificação com o Alentejo, não foi só a brancura, não foi só a ideia de uma espécie de cristalização das casas, que as conserva e as paralisa no tempo. Foi também a noção de que a cal é uma matéria perigosa, uma pedra que ao colocar-se dentro de água ferve, queima e se cai nos olhos, cega.”
A interpretação de Maria João Luis é consistente, como nos tem habituado ao longo do seu percurso artístico. Em palco podemos recriar as marcas do tempo que a projecção no vídeo nos mostra de uma forma evidente, como se de um mapa se tratasse. Mas quando o público está perante a actriz a sua atitude, o seu modo de mostrar o corpo e a voz ultrapassam qualquer artifício de caracterização porque se apresenta como verosímil. E porque a presença de Maria João Luis é tão consistente, sentiu-se uma saudade ao longo do espectáculo da sua presença física, mesmo quando estávamos perante um grande plano de Ana, a velha solitária que consegue ver o anjo que a acompanha.
O terceiro acto é suportado por um texto pobre, redundante, que não faz jus à escrita autêntica e sensitiva de José Luis Peixoto. “O homem que está sentado à porta” insiste na evocação recorrente do autor enquanto personagem da própria história na memória do velho. Talvez nessa história houvesse a curiosidade de nos confrontarmos com a imagem real do velho Durico, uma das fontes inspiradoras do texto. Para Gonçalo Luz, “a idade traz consigo a revelação da consciência de nós e a dignidade de uma certa sabedoria.” Este trabalho reconduz o olhar do espectador para a consciência da própria vida. Como se pode ler a páginas tantas no livro de José Luis Peixoto, "Havia momentos em que achava que não havia momento nenhum da sua vida fora da prisão em que não tivesse pensado duas vezes desde que entrara na prisão. Passava as noites deitado, a ver um quadrado negro na janela e a esperar. Às vezes, havia uma estrela que brilhava dentro daquele quadrado. Ele acreditava que, se pudesse ver o céu inteiro, conseguiria sempre distinguir aquela estrela. Nascia o dia e depois voltava a noite."
A consciência da perpetuidade. A consciência, também para nós de que, como nos recorda José Luis Peixoto, “quando morre um velho desaparece uma biblioteca”. E leva consigo uma memória branca e carregada. Como a cal.

A caravana


O Teatro Meridional tem habituado o seu público a um trabalho marcado pelo despojamento cénico e pelo protagonismo do trabalho de interpretação do actor, aliando o jogo dramático a um rigor exemplar. Apostando nas novas dramaturgias, Nuno Pino Custódio construiu um texto baseado na rota da seda, do qual surgiu o espectáculo A Caravana. Interpretado por Carlos Pereira, Catarina Guerreiro, Nuno Nunes, Rui M. Silva e Yolanda Santos, o espectáculo arrasta o espectador para uma viagem fascinante desde a China a Itália. A história de um tecido macio e brilhante é contada através do corpo dos actores que, apoiados por panos e varas, constroem universos de sentido tão diferentes como os que envolvem os trabalhadores da China, os sábios indianos, os pastores sírios ou os mercadores venezianos. O espectáculo começa com uma plataforma longa e estreita, em cima da qual estão dobrados vários panos. A luz, mais do que mostrar, desoculta os contornos e algum colorido daqueles panejamentos que irão ser a cenografia do espectáculo. Os actores entram com roupas de corte largo, lembrando kimonos, onde o laranja é a cor dominante. Dirigem-se à plataforma onde se encontram os panos e no tempo de uma respiração constroem uma oficina, onde um homem começa a contar a história da seda. Tudo começa pelo bicho, que tem de ser sabiamente alimentado com folhas de amoreira. Depois é a construção da oficina, ond os bichos-da-seda são alimentados, onde os casulos são desfiados, onde os fios são tingidos e onde o tecida acaba por ser construído nos imensos teares. Toda esta sequência é apresentada de uma forma surpreendente, com o rigor dos actores que desdobram e dobram panos, tornando-se a um tempo abrigos, casas, coberturas, ou o casulo em que uma mulher se envolve para se transfigurar num dragão. O ritmo é o adequado ao relato da história. Os panos, que abriram o olhar do homem ocidental a outros mundos, são a base do espectáculo. As varas que suportam os panos também se transformam de tear em varanda, em casa, em ponte. E de todas estas paragens o espectador se apercebe, com a evidência do símbolo que contém em si a matriz geradora do jogo cénico. Da China, onde nascem os bichos e se constrói o tecido, começa a viagem em caravanas que seguem para a Índia, onde as histórias de Sheerazade assumem uma crueza desconcertante. Uma mulher, trajando um sahri de seda é assassinada pelo marido, possuído pela loucura do ciúme infundado. O homem passa por uma transformação que o leva a despojar-se de tudo e a devotar-se ao conhecimento, envergando apenas um pano trazido da China. E a caravana continua, passando pela Síria, onde um pastor, que guarda amorosamente as suas ovelhas segue um destino diferente e acaba por fazer parte do deserto harmonioso que o leva ao desejo de encontro consigo próprio. A caravana segue, através do deserto e chega a Veneza, onde os mercadores vendem enfim um tecido magnífico: brilhante, leve, resistente, que fala por si. Todas estas ambiências foram sendo sucessivamente mostradas através de um trabalho exigente e sóbrio, onde o rigor comunica activando no espectador a capacidade de ver para além do aparente. Os figurinos vão-se transfigurando com o simples gesto de enrolar ou desenrolar os panos, dando-nos a dimensão da diferença no trajar ao longo da rota da seda. Para o autor, “A Caravana é um espectáculo sobre a (in) comunicação, a singularidade do indivíduo e a sua identidade colectiva. Relatos de histórias contadas numa representação total onde o corpo do actor assume todos os recursos. De Pequim a Veneza, a maior de todas as rotas é aquela que se faz entre cada ser, preservando a sua essência, fazendo-o existir quando cada um se quis realmente plural.” Uma viagem que traz em si a certeza de um encontro. Entre o actor e o seu público, entre culturas, entre o homem e si próprio, na sua singularidade de indivíduo. Com uma luz belíssima de Pedro Domingos, espaço cénico e figurinos de Marta Carreiras e as vozes potentes de Yolanda Santos e Catarina Guerreiro, o espectáculo A Caravana eleva o espectador acima de si mesmo, viajando através de paisagens, cheiros e sons desconhecidos, tornando-o mais rico e mais aberto a uma visão global. Um espaço vazio preenchido pela harmonia do saber. Um espectáculo a perseguir e a (re)ver.

A coragem de ser Medeia


Desde que em 1933 a actriz catalã Margarita Xirgu protagonizou ‘Medeia’ sobre as pedras nuas do Teatro Romano, muitos foram os criadores, encenadores, actores e actrizes, cenógrafos, figurinistas que deixaram a sua marca de fogo nos cerca de 75 mil espectadores através das suas interpretações contemporâneas dos textos que autores como Sófocles, Esquilo, Eurípides e Séneca, entre outros, escreveram há mais de dos mil anos.
Este ano Medeia foi encenada em exclusivo para este Festival pelo esloveno Tomaz Pandur e interpretada pela actriz Blanca Portillo. Dizem que Blanca Portillo, uma figura de destaque do teatro em Espanha, possui o instinto necessário a uma actriz que interpreta tragédias. A sua prestação em Mérida na estreia do espectáculo Medeia confirmou, não só o instinto, mas a maturidade e o saber que uma actriz tem de possuir para poder interpretar Medeia.
O espectáculo começa com uma série de figuras espalhadas pelo anfiteatro, que simbolizam jornalistas com figurinos e a atitude de jornalistas dos anos 50, esperando a chegada de uma mulher. Essa mulher é Medeia que, com um lenço na cabeça e uma mala de viagem regressa à sua terra de origem. Mal a vislumbram os jornalistas descem a correr as escadas do anfiteatro, sufocando-a com as suas perguntas. Medeia responde que decidiu regressar após 3000 anos e que quer repor a verdade da história. Retira-se, fatigada e os jornalistas começam, em várias línguas, a relatar o regresso de tão inusitada personagem. Deixam a cena, não sem antes desocultarem o centauro Quíron, que se escondia por detrás de um painel composto por fardos de palha. Asier Etxeandía, que interpretou o centauro, apesar de se libertado do corpo do cavalo, conservou de tal maneira o porte da figura mitológica que o público reconhecia o centauro de cada vez que o actor falava, andava ou corria pela cena. Uma brilhante prestação neste espectáculo. Entretanto entram oito homens armados de forquilhas para juntar a palha que está espalhada ao longo de toda a cena. Os rapazes, simbolizando os argonautas, estão vestidos como camponeses do princípio do século XX. O seu trabalho na terra é animado pelo canto e pelos acordeões das raparigas da Cólquida. E nesta altura desenha-se uma das cenas mais bonitas do espectáculo: depois de um dia de intenso trabalho físico, os rapazes juntam-se às raparigas e lavam-se, despindo-se completamente do tronco para cima. Medeia entra no meio daquele ritual de purificação e os bailarinos vão criando figuras de estátuas que acompanham o diálogo de Medeia com a ama. As camisas encharcadas de água complementam o efeito da coreografia e, perante uma marcação sincopada e sincronizada, as dezasseis figuras criam um efeito plástico admirável. Medeia entra com os trajes tradicionais da Cólquida para logo os despir, ficando com um simples vestido preto evidenciando as tatuagens que a denunciam como feiticeira. Medeia fica só em cena para logo a seguir ser condenada pelo rei Creonte ao exílio, juntamente com os seus filhos, para que a sua filha possa casar com Jasão sem ter a sombra da mulher traída a pairar sobre si. Os guardas, acompanhados de pastores alemães, cruzam a cena várias vezes, simbolizando marés de violência. Medeia pede mais um dia na sua pátria. Creonte, incauto, condescende. Nesse tempo de espera Medeia vai dedicar-se a conceber o seu plano de vingança. Nesse dia Medeia retoma os passos quotidianos que foi a sua vida com Jasão. No espaço da orquestra Tomaz Pandur recria um labirinto, constituído de fardos de palha, dentro do qual Medeia executa as tarefas de casa. Lava a roupa, estende-a, bate ovos para o jantar, refresca-se numa bacia enquanto Jasão goza a sua última noite em casa ouvindo música e bebendo uma cerveja refastelado num sofá. Medeia discute com Jasão, argumentando que deixou tudo por ele, matando o seu pai e o seu irmão, dando-lhe filhos, dedicando-se inteiramente a ele. Jasão responde que isso está tudo certo mas que ela so o fez por amor a si, Jasão. E em nome desse amor deveria aceitar o sacrifício que ele estava disposto a fazer, casado com a filha do rei, dando oportunidade a que os seus filhos possam ter um futuro promissor. Medeia não aceita esta visão da realidade e torna-se violenta, agredindo Jasão. Jasão continua a afirmar que é dela que continua a gostar mas que tem de se submeter a este casamento. Esta cena é toda feita num ritmo alucinante, dentro do labirinto do quotidiano criado, com a violência e a crueza de um casal que partilha o espaço há vários anos. Uma força e uma verdade memoráveis. Jasão parte e Medeia fica sozinha no barco que antes era navegado pelos dois. Agarra-se à imensa vela preta suspensa de um enorme balão de hélio, simbolizando não só a vela mas também o cordão umbilical que a liga aos filhos. E é nesse núcleo que Medeia congemina a sua vingança. Primeiro irá assassinar a futura esposa de Jasão. Depois, matará com as suas próprias mãos os seus filhos. Desesperada, Medeia corre para a estrada. Intercepta um Peugeot 404 dos anos 50 que entrou no palco. Nele segue o Rei de Atenas. Conta-lhe como foi desprezada por Jasão e pede-lhe auxílio. Numa cena de muito erotismo e ousadia, Medeia obtém o juramento do Rei de Atenas, perante as divindades da Terra e do Sol, que lhe dará asilo em Atenas. O carro sai de cena levando levando consigo o charme escondido do rei de Atenas. Jasão segue para o casamento, aceitando incauto o presente de Medeia como prova de arrependimento pela sua discussão e egoísmo. Mas no meio da coreografia, que recriou as danças tradicionais das Balcãs, a jovem esposa começa manchar o seu fantástico vestido de noiva com o sangue da vingança de Medeia. As danças param e Jasão fica enlouquecido de dor. Na cena seguinte o coro grego é composto por oito raparigas, envergando elegantes vestidos brancos dos anos 50, entram conduzindo carrinhos de bebé. A ama antecipa a desgraça enquanto as jovens mães olham para Medeia que, vestida de vermelho, entra em cena conduzindo os seus filhos. Leva-os para o gineceu e, de uma forma simbólica, vestido-os com peles de ovelha, lança-os para fora de cena, onde estão os animais selvagens. Há uma dança tradicional das Balcãs executada por homens que envergam peles de ovelha quando Jasão é confrontado com a morte dos filhos. Desesperado, abandona-se no meio da estrada. Medeia passa, não no carro do Sol, como diz o texto de Eurípedes, mas no atrelado de uma roulotte conduzida pelo rei de Atenas. O centauro Quíron, educador e transmissor dos grandes valores espirituais do respeito entre os seres, sucumbe perante a notícia da morte da princesa e da profecia da morte dos filhos de Medeia. As notícias, anunciadas ao som de uma máquina de escrever, disparam sobre ele como as flechas envenenadas que o feriram infligindo-lhe sofrimentos perpétuos. Perante tais actos Quíron desiste de viver.
Medeia leva na roulotte os filhos mortos e nega a Jasão uma última despedida. Ri-se dele, ciente do poder da sua vingança. Conseguiu o seu intento e vai erigir um templo em sua honra, onde se entoem cantos, simbolizado na cena final onde Medeia entra com os filhos e, ternamente faz um piquenique com eles, serve-lhes abnegadamente uma refeição e canta-lhes uma canção de embalar. E afinal, onde se esconde a verdade de uma história contada há mais de 3000 anos?
Mais que a história trágica e sangrenta de Medeia Tomaz Pandur trouxe a Mérida o fogo de um espectáculo grandioso onde os cânticos entoados pelas mulheres ao som de acordeão, as coreografias executadas por excelentes bailarinos e o peso do quotidiano destruidor que se impôs entre Medeia e Jasão criaram uma obra-prima. Uma utilização brilhante do som da trovoada que assola a tragédia, ecoando em todo o anfiteatro. Uma obra-prima que lavou em lágrimas o público de Mérida. Um abalo como só as obras dos grandes clássicos conseguem provocar. Uma metáfora em que se discute o papel da liberdade e do poder maternal. Um espectáculo que os amantes da cultura clássica não podem perder. Teve na ficha técnica alguns dos nomes mais sonantes a nível mundial. Para além da encenação de Tomaz Pandur, aclamado várias vezes em festivais internacionais de teatro, contou ainda com a dramaturgia de Tomaz Pandur, Darko Lukic y Livia Pandur, cenografia de Sven Jonke (Numen), figurinos de Angelina Atlagic, coreografia de Ronald Savkovic, música de Boris Benko y Primoz Hladnik (Silence), desenho de luz de Juan Gómez Cornejo e sonoplastia de Mariano García.

O tempo da partilha


Uma tela horizontal marca o palco do Teatro das Figuras. Um pano que corre de um lado ao outro, ocultando, desocultando. Uma projecção de imagens subaquáticas conduz-nos a um universo distante, quase paralelo, no qual os sentidos captam o real de forma diferente. Um coração bate e a voz da Natália Luiza fala-nos sobre o Tempo. A noção de tempo que acelera e desacelera de acordo com o olhar de cada um perante o mundo. O seu mundo. O pano corre e desoculta-nos imagens de pessoas que estão fixas numa posição. O pano volta a fechar, volta a abrir e as posições mudam, como se fossem instantâneos captados num instante em que se segura o Tempo. Num momento todos podemos ser iguais. No instante seguinte há formas diferentes de gerir o Tempo. E foi a partir da gestão dessa diferença que surgiu o espectáculo O Aqui, coreografado por Ana Rita Barata, que teve o apoio de uma excelente equipa de criadores que contém Natália Luíza na dramaturgia, Pedro Sena Nunes na direcção artística e imagem e João Gil na criação da música original.
O projecto da Companhia Integrada Multidisciplinar pretendeu criar um objecto artístico integrador com pessoas que sofrem diariamente do estigma da diferença e não fazer uma espécie de terapia através da dança. O resultado foi um espectáculo surpreendente e comovedor no qual os rimos dos diferentes intervenientes se adaptavam e criavam partituras coreográficas muito interessantes, com assinalável qualidade ao nível do movimento. A música, criada por João Gil, dava conta das mudanças de ritmo entre as situações e as personagens entre si, de forma harmoniosa e singular. O desenho de luz de Cristina Piedade soube criar uma atmosfera intimista que convida à partilha e à alegria de viver. Ao dançar a coreografia de Ana Rita Barata os intervenientes perdem o medo. O medo de não ter tempo, o medo de não conseguir enfrentar uma realidade que se tornou dolorosa. No espectáculo a dor deu lugar ao riso e ao movimento descontraído dos corpos que executaram composições a solo, a dois, em grupo, absolutamente notáveis. As cadeiras de rodas deslizavam pelo palco ou com pessoas a ocuparem um lugar em diversas posições. Todos os corpos se moviam, quer fosse por si, quer fosse por meio de um impulso exterior que lhes provocava uma capacidade motora que por vezes não possuíam de forma autónoma.
No final o espectáculo foi comovente e belo, promovendo uma miríade de sentimentos. Houve uma unidade na imensa diversidade de pessoas, objectos, tempos, ritmos, afectos, diálogos.
Composta por 13 pessoas, quatro bailarinos profissionais, dois técnicos da área da deficiência e sete pessoas portadoras de paralisia cerebral, a companhia tem recebido apoios do Centro de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian (CPRCCG), da Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa (APCL) e do Instituto de Inserção Social. Os bailarinos profissionais são António Cabrita, Carolina Ramos, Catarina Gonçalves e Pedro Ramos, os técnicos são António Paiva e Carolina Santos e os intérpretes da APCL e CRPCCG são Adelaide Oliveira, Jorge Granadas, José Marques, Maria João Pereira, Paulo Benavente, Sílvia Pedroso, Yete Borges e Zaida Pugliese.
Para a criação deste espectáculo, houve uma co-produção com o Teatro Municipal de São Luiz , a Vo´arte e com a co-apresentação do Teatro Camões.
O desafio maior foi conseguido. Neste espectáculo os intérpretes foram sentidos pelo público como artistas que se expressaram através de um suporte artístico, de um corpo, apresentando-o num espectáculo, apagando a imagem do portador de deficiência. Este equilíbrio é fruto de uma capacidade artística e de uma sensibilidade notável. Reflexivo e divertido, comovente e belo. Um prazer que inunda os sentidos e obriga a pensar.

O grupo Teatro da Estrada, sedeado em Alte, quis apresentar uma caricatura dos relacionamentos modernos, frutos de uma sociedade cruel que castiga as relações afectivas. Quando pensamos em empresas que estimulam os seus funcionários a adiar o nascimento dos seus filhos em prol dos interesses económicos percebemos que essa visão economicista e desumana se vai, necessariamente, estender às relações familiares, tornando-as superficiais e descartáveis. No actual mundo laboral não há tempo para que os casais façam uma pausa e conversem sobre a sua relação. O espectáculo mostra um casal à beira da ruptura, prestes a deitarem-se para a linha do comboio. As suas visões acerca da vida e do seu sentido acabam por ser idênticas, descurando a entrega total depois do primeiro deslumbramento. O diálogo, que acaba por ser em duplicado, é frio, é calculista e desprovido de qualquer afecto. À proposta de suicídio o outro não tenta demover o companheiro, antes o incentiva a fazê-lo, acusando a sua cobardia, se hesitar em pôr termo à vida. Decidem morrer os dois, juntos, já que não conseguiram viver uma vida harmoniosa e feliz. O comboio passa, mas não os mata, dado que se deitaram horizontalmente e não transversalmente à linha e ao trajecto do comboio. Uma vez que sobreviveram à sua tentativa de suicídio a dois resolveram, não viver felizes para sempre, mas assistir a um outro casamento. O deles permanece adiado, até que chegue um olhar mais humano perante a vida. O casamento dos amigos é celebrado e o espectáculo acaba em festa, convidando o público a dançar no palco e a participar da alegria dos noivos.
A encenação do teatro da estrada vai buscar ao registo de comédia a fonte do tratamento de um texto trágico. Trabalhando o absurdo de uma relação consegue-se expor, se forma mais evidente, o arquétipo da indiferença perante o Outro. No entanto, e se por algumas vezes o registo de comédia, com fortes influências da Commedia D’el Arte foi atingido, quer através do ritmo de representação, quer através da própria coreografia estabelecida entre os dois actores, por outro, o histrionismo exagerado de André MdQueen, insistindo nas máscaras de expressão, sujou completamente o equilíbrio entre os dois actores, uma vez que Célia Martins adoptou um registo mais uniforme e contido ao longo de todo o espectáculo. Os apontamentos Pirandellianos, para além de já serem muito recorrentes, não tiveram o impacto no espectáculo que deveriam ter, tendo-se reduzido a umas “bocas” de bastidores. O texto estava escorreito, sem hesitações, com uma dicção correcta e um ritmo adequado. As investidas de André McQueen em relação ao músico, se bem que da primeira vez poderiam ter tido algum humor, depois várias vezes repetido, o apontamento deixa de ser surpreendente e torna-se fastidioso. De qualquer forma, o jogo das sonoridades com as marcações dos actores estava muito bem conseguido.
A cenografia, da autoria de Daniel Vieira e de Ekkehard Wocke, apresenta uma linha de comboio ao longo do palco. Uma linha, que tal como a da vida, pode ser interrompida e tomar vários sentidos, dependendo da mudança da agulha. Uma linha que transporta emoções e, quer no início, quer no fim, é palco de diversas sensações originadas por encontros e desencontros. A linha de comboio sempre foi uma boa metáfora da vida, pois segue contínua e indiferente, apesar das convulsões exteriores a si. Por isso as intervenções do músico na primeira parte foram completamente desnecessárias e escusadas, já que ele não iria ter nenhuma intervenção no decurso da história.
A pausa para mudança de cenário, assumindo os carregadores deveria ter sido mais evidente, com um diálogo construído, como no texto A encenação, de Lauro António, no qual os carpinteiros de cena têm um belíssimo diálogo sobre o sentido do teatro. Neste caso, a devolução do carácter humanista aos técnicos do teatro diluiu-se numa troca de palavras quase inaudíveis.
Na segunda parte do espectáculo o grande achado cénico foi a descoberta da marcha nupcial é a marcha fúnebre, o que pode ser encarado como uma alegoria muito interessante. Relativamente aos adereços que coloriram os figurinos neutros dos actores, a gravata preta, para um casamento que não é o seu próprio e não tem então o sentido de enforcamento, não é adequada. A cor deveria seguir a dramaturgia e “entre-laçar” com a cor vermelha dos sapatos da sua companheira.
Nesta parte do espectáculo este grupo recorre a uma estratégia discutível de interacção com o público. O público não é apenas convidado a participar na cena de forma pacífica, como amiúde se observa em inúmeros espectáculos. O público é invadido no seu direito de estar a assistir a um espectáculo e entra em tensão ao pensar que lhe podem pegar na mão e conduzi-lo para o palco. Foi isso que aconteceu. A encenação, que cremos ter sido colectiva, decidiu não duplicar os papéis dos noivos, o que até poderia ser uma solução interessante para o trabalho de actor, mas ir à plateia buscar uma rapariga e um homem para interpretar os noivos que iriam casar. O ar de constrangimento e desconforto nos “actores à força” era visível. No final, depois do insólito casamento, os actores voltaram a chamar o público para o palco, convidando-os a dançar a valsa com os noivos. O público subia as escadas um pouco constrangido e a valsa lenta foi dançada sem o vigor que é suposto existir num casamento. No final as danças de roda resultaram mas a história do atribulado casal esvaiu-se naquele final não menos atribulado.
É sempre complicado decidir acerca do tipo de intervenção que é suposto haver por parte do público. Num tipo de espectáculo de rua, é natural, pelas características próprias do espectáculo, que o público é convidado a intervir de forma activa no processo. Num outro tipo de espectáculo, com palco à italiana, em que a personagem é exposta em evidência de uma forma que não foi natural, pode ser um motivo para que essa pessoa não volte ao teatro e engrosse as estatísticas do cinema. Se 9 em cada 10 espectadores escolhem o cinema em vez do teatro quando saem à noite, tratemos bem essa percentagem mínima que ainda resiste e arrisca numa ida ao teatro. Se em vez do baile a seco tivessem convidado o público para beber um copo à saúde dos noivos, comendo uns petiscos colocados no palco a preceito, o público sentir-se-ia acarinhado e até ia de boa vontade dar um pezinho de dança. É assim, com carinho e humanidade, que se entrelaçam as almas.

A moura de Salir

Salir convidou os visitantes a privarem, tanto uma realidade rural pouco íntima, como um tempo afastado que ficou no nosso imaginário colectivo como a época da magia: a Idade Média. Época obscura quanto à razão e à ciência, tornou-se luminosa pela literatura que chegou até aos nossos dias. Com as lendas do Rei Artur vieram os feitos maravilhosos de Merlin e Morgana. Com os feitos históricos de Afonso III chegaram as histórias das mouras encantadas. Segundo a lenda, ameaçado pelas tropas de D. Afonso III, o alcaide fugiu do castelo, tendo antes enterrado o seu tesouro, tendo em vista voltar mais tarde, quando conseguissem expulsar os cristãos usurpadores, para o resgatar. Quando os cristãos abordaram o castelo, encontraram-no abandonado, ocupado apenas pela jovem filha do alcaide, que rezava com fervor. Interpelada, explicou aos seus captores que havia preferido ficar no castelo a “salir”. Do alto de um monte vizinho, Aben-Fabilla avistou a filha cativa dos cristãos e, com a mão direita, traçou no ar o signo de Salomão, enquanto proferia uma fórmula mágica. Nesse momento, o cavaleiro D. Gonçalo Peres, que falava com a moura, viu-a transformar-se numa estátua de pedra. A notícia da moura encantada espalhou-se e, um dia, a estátua desapareceu. Em memória desse estranho sucesso ficou aquela terra conhecida por Salir, em homenagem à coragem da jovem moura. Ainda hoje se acredita que, em certas noites, a moura encantada aparece no Castelo de Salir. Dia 5 de Setembro foi uma dessas noites encantadas, nas quais a moura se desocultou perante a multidão. Às 23h30, conforme anunciado, surgem três imagens da moura, em sítios inesperados, acompanhadas de fumos coloridos com uma luz rosa. A moura explica que sempre viveu feliz naquelas terras, onde não havia fome e a terra era generosa, oferecendo figos, amêndoas, e outros frutos com que o mais comum dos mortais se podia deleitar. Conta o ataque dos cristãos e o encantamento feito pelo pai. Desaparece do cimo do torreão maior do Castelo, deixando no ar um fumo de saudade. Esta intervenção juntou genuinamente centenas de populares que quiseram confrontar-se com a bela ilusão da moura. Ouvir, uma vez mais, a história que sabem de cor, verem uma vez mais a imagem quem adivinham, mas passarem pela experiência do imaginário mágico que marca o prazer de fingir que se acredita.
Esta aparição da moura foi precedida por uma pequena animação teatral para manter atento o público que entretanto se tinha juntado ao torreão do castelo de Salir. No final a euforia da aparição conduziu os visitantes a uma festa em que todos os grupos intervenientes na animação deste evento se juntaram, tocando um tema para pular e saudar a despedida.
É sempre tocante quando, com poucos meios, se consegue mobilizar uma multidão a visitar um local recôndito e a acreditar numa ilusão. A entrada foi livre e o espírito saiu mais preenchido.

Uma república singular

Manuel Teixeira Gomes foi o autor homenageado pela ACTA por ocasião do aniversário do centenário da República. O primeiro presidente da República algarvio, homem de cultura acima da média, desempenhou um papel determinante na criação de um Estado de Direito no que se convencionou chamar a Primeira República. Alexandre Honrado, a convite da ACTA, tentou fazer um cruzamento de alguns dos momentos singulares da vida deste homem com excertos da sua obra literária. Momentos em forma de instantâneos que decoraram a vida e a obra do presidente literato. Procurando no livro das Actas do teatro, fornecido pela companhia, não encontramos a referência exacta das obras de que se socorreu Alexandre Honrado para construir o alinhamento dos textos de Teixeira Gomes. Mas a memória das descrições inesquecíveis remetem-nos para páginas do Inventário de Junho, Gente Singular, Novelas Eróticas, Maria Adelaide, Cartas Sem Moral Nenhuma, entre outros. Porém, para quem ainda não despertou para a beleza dos textos de Teixeira Gomes, uma referência directa aos textos incluídos no acerto dramatúrgico de Alexandre Honrado, seria certamente pedagógico, tal como a descrição do processo de descoberta que o dramaturgista fez acerca do autor. Alexandre Honrado focou o seu olhar em instantâneos de um Algarve grotesco, pontuando-o com outras de cariz mais sensual ou outras ainda de feição mais politizada como a referência directa ao discurso de Brito Camacho. Poder-se-ia perguntar porquê a escolha da conversa entre o jovem comerciante de frutos secos na Holanda e o judeu, em detrimento das descrições, ora de uma sensualidade estonteante, ora de uma graça fantástica, retirada do conto “Deus Ex-Machina”, integrado nas Novelas Eróticas, esquecendo a jovem Camila, patinando como criança e descobrindo-se como mulher nos braços do escritor. Ou a descrição do seu desesperado amor com a noiva sevilhana, ameaçado logo desde o início pelo pai desta que o achava indigno da filha por ele não ter “eira, nem beira, nem folha de figueira”. Uma descrição do capricho da menina em detrimento daqueloutra pesada e arrepiante, quando Teixeira Gomes a adivinha num cinema, acompanhada pelo então marido, incapaz de se voltar para trás para a ver, tal era ainda o peso da sua paixão… Poderíamos discutir até ao infinito quais os excertos que nos tirariam o melhor instantâneo deste homem singular.
Uma relação discutível ao nível do trabalho dramatúrgico foi a da assunção textual da personagem Maria Adelaide com a figura real de Belmira das Neves, bem como a evidência da figura de Teixeira Gomes no vilão Ramiro d’Arge. Quem leu o romance Maria Adelaide decerto encontra traços comuns nas suas personagens com Teixeira Gomes e aquela que foi a mãe de suas filhas. No entanto, uma ligação tão directa é abusiva, sobretudo quando no final do romance Ramiro d’Arge confessa ter recebido a notícia da morte de Maria Adelaide com euforia, chegando a saltar de alegria. Para além de não corresponder à verdade, não abona em favor da sensibilidade e da humanidade reconhecidas no escritor. Os romances são construídos com base em vivências, mas por serem uma construção que o escritor faz da realidade, não são a sua realidade enquanto vida mas a sua realidade enquanto criação poética. E retirar o fio que liga Maria Adelaide a Belmira das Neves é retirar a poesia à obra de Teixeira Gomes. E porquê modificar a imagem da despedida do mar, confundindo-a com as cores do rio, desvirtuando desta forma uma das imagens mais tocantes do romance, pois é no momento em que Maria Adelaide pede a Ramiro d’Arge para se despedirem “do nosso mar” que o protagonista do romance começa a olhar para a sua jovem amigada com um deslumbramento que vai para além do desejo puramente carnal, transformando-se nessa altura numa admiração estética. As cores com as quais gostaria de andar vestida são as do rio, pelo sol postinho, mas a ânsia da despedida antes da “viagem” é pelo mar.
Mas se o texto fica aquém de um olhar mais abrangente sobre a figura acutilante e deslumbrante de Teixeira Gomes, a encenação preencheu, de alguma forma, os hiatos deixados pelo texto. Como se estivessem no interior de uma câmara fotográfica gigante, as personagens sucedem-se umas às outras, mostrando a beleza captada do momento num tempo que é efémero. Foi pena não termos sido surpreendidos pelo clarão da explosão das lâmpadas de magnésio, essenciais ao ritual do retrato.
No princípio a República, nua, é adornada com a sua saia vermelha por Teixeira Gomes, como se fosse este presidente o primeiro a descobrir a sua força, a sua beleza, a sua sensualidade. De seguida o passar de testemunho da bandeira do Presidente à jovem República. Mas, se raciocinarmos de forma inversa, é a República que investe o Presidente com a sua bandeira e as suas cores para que ele possa governar o país. É de facto singular a jovem república, que já tinha nascido treze anos antes, receber das mãos de um presidente, a sua bandeira.
Os quadros sucedem-se com a qualidade a que os actores da ACTA já nos habituaram e confluem para um dos momentos altos em que, no silêncio, o corpo da bailarina Ana Filipa Antunes, coreografada por Evgeni Beliaev, irrompe do escuro lançando à multidão a luz da esperança, a luz que o povo faminto e iletrado do primeiro quartel do século XX precisava.
No quadro com Belmira das Neves, o discurso da sofrida mulher foi ilustrado pela imagem em vídeo da deambulação da República pelas arribas da costa algarvia. Este cruzamento leva-nos à questão: terá sido a República para Teixeira Gomes como o deslumbramento que se tem naturalmente por uma jovem que a rotina e o hábito vão destruindo aos poucos? Teixeira Gomes saiu de Portugal após dois anos de mandato na Presidência da República. Dois anos foi o tempo que durou a relação descrita no romance Maria Adelaide, que se iniciou nos segredos do amor aos dezasseis anos. Trocada dois anos mais tarde por uma rapariga de 14 anos, a jovem mulher sucumbiu de amor. Teixeira Gomes pode ter trocado a sua jovem república por um país onde tudo era novo e livre. Saiu de Portugal sem um apontamento ou livro. Nada que o fizesse lembrar o antigo literato ou político. Mas a jovem República não sucumbiu. Quase morreu de desgosto, teve uma crise de 48 anos, mas conseguiu renascer pela vontade de um povo que a amou e a fez sentir de novo jovem e bonita.
O convite feito a um aluno das escolas secundárias por onde o espectáculo irá passar no sentido de ler o texto inicial do espectáculo constitui uma boa estratégia de aproximação com os mais jovens, despertando-os para esta realidade tão próxima mas já tão longínqua da sua memória histórica.

A origem da tragédia


Património da Humanidade, classificada pela Unesco, a cidade de Mérida é o palco para o Festival de Teatro Clássico, o maior evento cultural da cidade e de Espanha, entre Julho e Agosto. Ano após ano vemos obras de autores clássicos serem revestidas por encenadores contemporâneos, dando uma nova roupagem aos problemas que com que a humanidade sempre se deparou. A questão académica que se coloca à partida, quando se começa a estudar uma obra de teatro clássico é se a tragédia poderá, em si mesma, conter a essência do pensamento contemporâneo. Quando nos deparamos com as obras de Sófocles, nas quais nos deparamos com uma construção dramatúrgica perfeita, percebemos que as questões essenciais da humanidade estão abordadas nesses textos. Édipo Rei desoculta inúmeros problemas relacionados com a questão da liberdade do Homem, com a sua capacidade de escolher ou não o seu destino, e com a capacidade de se perdoar a si próprio por um crime que cometeu sem uma deliberação intencional. Este tema foi retomado ao longo da história da humanidade, contudo sem a poderosa escrita original que colocou Sófocles na galeria dos imortais. Graças ao seu prestígio, foi tesoureiro da Liga de Delos e estratega ao lado de Péricles. O herói de Sófocles era dotado de uma humanidade irrepreensível e, por isso mesmo, incompreendida pelos outros homens. Os deuses, apesar de serem referidos, pouco interferem na acção da tragédia. A tragédia do rei Édipo confronta o homem com a sua incapacidade perante a força mais poderosa que os gregos acreditavam existir: o destino. Nem os deuses poderiam alterar a força do destino. Édipo tentou lutar contra o seu destino e acabou enredado nas suas malhas, de forma inconsciente, contra a sua própria vontade.
A versão apresentada no Festival Internacional de Mérida é de Jorge Lavelli e de José Ramón Fernandes. Uma visão que segue o texto original pontuando-o com um coro surpreendente, dirigido por Guilhermo González e com figurinos arrojados de Maria Luisa Engel. A encenação não restringe a cena ao espaço do palco. As personagens também desenvolvem o seu trabalho na orquestra, na própria plateia e nas colunas que ornamentam o antiteatro romano. O espectáculo começa com a inquietação do povo, prestando sacrifícios ao deus Apolo pelos tempos de devastação que a cidade está a sofrer: há pestilência, a terra está estéril, os animais não conseguem procriar e aos poucos a cidade está a morrer. Édipo é um rei amado pelo seu povo e este pede-lhe que salve pela segunda vez a cidade. Édipo diz que tudo fará para que a cidade volte a ser próspera e consulta um adivinho para que este lhe diga qual é a razão daquela devastação conjunta. O adivinho permanece diante do soberano e diz-lhe que a cidade está a sofrer porque está por vingar a morte do seu anterior rei: Laio, o primeiro marido de Jocasta. Édipo envida então todos os esforços para encontrar o assassino de Laio e proceder ao seu castigo, pois assim os deuses o exigem. Em confronto com um vidente cego, Tirésias, Édipo é acusado de ter sido ele próprio a assassinar Laio, facto de que não tem consciência. Depois desta terrível revelação o resto da tragédia é um contínuo caminhar para a verdade brutal: Édipo foi abandonado pelos seus próprios pais por causa de um oráculo terrível. Foi encontrado por um pastor que o levou aos seus soberanos de um reino distante, que o criaram como sendo seu filho. Quando quis saber o seu destino, Édipo consultou um oráculo. Confrontado com o seu terrível destino, fugiu para o mais longe que pôde, a fim de se libertar dessa maldição. Anos mais tarde confrontou-se com a consumação do seu destino profetizado mal nascera: tinha de facto matado o seu pai e casado com a sua própria mãe, de quem tinha tido uma descendência amaldiçoada. Laio era o seu pai e Jocasta a sua mãe. O destino estava cumprido. Para não ver mais a realidade que o tinha castigado daquela maneira Édipo vazou os olhou numa atitude de auto-mutilação, banindo-se a si próprio da cidade que o amava. O actor Ernesto Alterio interpreta um Édipo que vive de uma movimentação corporal muito especial. A sua movimentação leva-nos a pensar que se desloca constantemente no arame, procurando um equilíbrio que não tem. Creonte, interpretado por Paco Lahoz e Tirésias, interpretado por Juan Luis Galiardo são os dois sustentáculos deste espectáculo, oferencendo ao público uma belíssima visão de representação clássica. Creonte aparece como um general fiel, que detém o poder mesmo não exercendo o cargo de rei. Tirésias surge na cena preso numa camisa-de-forças, simbolizando o medo que os homens têm de ouvir a verdade, acusando-os amiúde de loucura. Curiosamente, desde a antiguidade clássica que os detentores da verdade são cegos, pois estes conseguem ver a essência do real para além das aparências. O coro, constituído por 15 elementos, é o elemento de destaque deste espectáculo. Aparece amarrado, conduzido pelo corifeu, simbolizando o senso comum. Este conjunto produz sonoridades surpreendentes, perfeitamente harmónicas, contrastando com o caos que acontece em cena. A sua movimentação em cena também é coreografada de forma harmónica, constituindo assim momentos essenciais para o equilíbrio da tragédia. Jocasta, interpretada por Carme Elias, tem uma movimentação estranha, condicente com a negação da realidade que está a antecipar. Ela mantém uma relação de cumplicidade muito próxima com o marido, recusando-se a aceitá-lo como seu filho. A aceitação desta verdade coincide com a sua recusa, obrigando-a ao suicídio.
Este espectáculo tem, ainda no século XXI, um efeito devastador. Apesar de já sabermos a história, estamos ali até ao último minuto na esperança de que Édipo siga o conselho de Jocasta e não procure escavar nas entranhas da verdade, ou que os pastores que trocaram a criança abandonada entre si já não estejam vivos, ou que Tirésias se cale e não revele o que sabe. Esperamos até ao último minuto que a verdade não se revele cruel e sofremos com Édipo e com Jocasta o castigo da revelação. É o momento da expiação e apiedamo-nos das personagens que sofreram tão cruel destino. Está cumprido o objectivo da tragédia: a nossa própria purificação.

ACTA - Trabalhar para o futuro


A ACTA está a retomar a sua função de educadora através da Arte com a reposição dos espectáculos Auto da Frequentada, espectáculo baseado no texto de Gil Vicente Auto da Índia, e O Longo Sono da Heroína, espectáculo baseado no conto A Bela Adormecida, adaptado por Sissel Paulsen e Ana Paula Baião.
Descrevendo um pouco a interacção que se vive nessas intervenções da ACTA, posso referir o efeito que a ACTA operou num grupo turma do 10º ano de Humanidades com o qual trabalhava na disciplina de Introdução à Filosofia. O estímulo era, a partir do espectáculo O Longo Sono da Heroína, encenado por Ana Paula Baião, fazer com que os alunos encontrassem soluções, colocassem questões e mesmo descobrissem um final para a história de uma adolescente que começou a ter problemas com droga. As situações eram várias: uma mulher que foi abandonada por um médico que a engravidou, tornando-se revoltada e alcoólica; a visão da infância de uma criança amada, em paralelo com uma criança desprezada; a entrada em coma da adolescente. Cabia aos alunos a tarefa de decidir se ela iria morrer ou não. A observação que fiz surpreendeu-me, pois alunos que nunca se manifestavam nas aulas cooperaram entusiasticamente nas tarefas propostas pelos actores, discutindo em grupo, apresentando depois os resultados das suas polémicas, sob a forma de uma dramatização, comentando as suas vivências. De uma forma talvez um pouco incipiente, conseguiram ultrapassar o bloqueio da expressão oral, levando-me a crer que a motivação a partir de estímulos propostos pela Expressão Dramática poderá ser mais eficaz que os métodos mais tradicionais e, desta forma, acreditar que esses estímulos devam ser aplicados amiúde, nomeadamente nas aulas de Filosofia.
O espectáculo O Longo sono da heroína, foi buscar inspiração ao imaginário do conto infantil da Bela Adormecida. Começava por mostrar um homem feliz com o nascimento da sua filha. Esse homem, nesse dia, recebeu um telefonema de uma outra mulher, exigindo-lhe as mesmas condições de vida que ele ia dar a essa menina, para o outro filho que havia tido um ano antes, com essa mulher. Ele respondia que tinha sido um erro e que não tinha mais responsabilidades, pois já lhe tinha dado dinheiro para se desembaraçar da criança. A mulher, então, jurava vingança. Os alunos, divididos em grupos, eram então solicitados a ilustrar como seria a reacção dos respectivos pais perante uma e outra criança em situações tais como a primeira doença e o primeiro dia de aulas. Depois de mais uma intervenção dos actores em que se mostrava o cuidado que os pais tinham em relação à rapariga, que se tornava numa super protecção e o desprezo que a mulher abandonada dava ao filho, os alunos eram convidados a fazer perguntas às personagens (à mulher abandonada e ao homem que a abandonou, que era médico) segundo a técnica do hot sit. Aqui surgiram questões interessantes como a contradição ao nível da ética por parte do médico, uma vez que ele, defendendo a vida, tinha pago para se fazer um aborto. Continuando a história e o imaginário da Bela Adormecida, quando a rapariga faz dezasseis anos, o irmão é convidado para a sua festa de aniversário. Este dá-lhe a provar substâncias alucinógenas e ela fica em estado de coma. Os alunos são então convidados a representar o final, decidindo se ela morre ou se sobrevive a esta experiência. Todos os alunos participaram activamente, fazendo questões espontaneamente aos actores e dando o seu contributo de forma séria e conscienciosa.
Esta experiência foi mais um contributo para a minha crença na tese de que um ensino que não só não esqueça mas sobretudo privilegie estratégias baseadas na estética teatral, concorrerá para um maior gosto pela aprendizagem por parte dos alunos e, sobretudo, uma maior consciência dos problemas / questões com que todos nos debatemos no mundo contemporâneo.
O outro espectáculo, O Auto da Frequentada, encenado por Luís Vicente, também tem contribuído para o desenvolvimento da imaginação nos alunos. Depois da apresentação do espectáculo os alunos conversaram com os actores sobre o que sentiram.

Falaram dos figurinos contemporâneos e compreenderam que tinha sido uma escolha deliberada para melhor dar a perceber uma relação directa dos textos com a maneira de sentir e agir dos homens de hoje.
Ao falar de cada um dos figurinos perceberam que a ama vestia um vestido que era a sua cama porque naquela altura as pessoas recebiam as visitas no quarto. Como ela estava sempre a receber visitas, estava sempre na cama. Referiram também o figurino do castelhano, com um cachecol de penas e um chapéu vermelho, lembrando um galo. Essa figura tinha esse aspecto porque simbolicamente era como um galo, vaidoso, cantando para impressionar.
Finalmente falaram da questão ética. Os actores começaram por perguntar por que é que os amigos da Constança entravam sempre pelas traseiras. Os alunos disseram que só o marido podia entrar pela porta de frente. E porquê, porque era contra a moral e os bons costumes receber homens em casa com o marido fora. Quando questionados sobre a questão da legitimidade de se pedir a uma pessoa para esperar por ela quatro anos, as opiniões dividiram-se. Alguns alunos disseram que sim, que se duas pessoas se amavam tinham de esperar uma pela outra. Outros disseram que dependia do que eles tivessem combinado entre si. Outros ainda disseram que perante uma situação dessas deveriam divorciar-se para estarem mais livres para o que pudesse acontecer. No fundo, a moral entre duas pessoas dependia directamente dos acordos e das regras estabelecidas entre elas, desde que não prejudicassem o resto da sociedade.
É minha convicção que os exercícios de expressão dramática levam à assunção de uma maior consciencialização sobre o conceito de cidadania, numa dinâmica de aprendizagem por descoberta. A estética, assume-se assim, desde as origens, como conceito estruturante da maturidade do Homem, concorrendo para a abstracção de uma realidade que se quer representar e descrever.