Sunday, September 6, 2009

De Antígona a Narciso


O que têm de ter os textos de hoje para comoverem o espectador comum? Com o que é que ainda nos deixamos impressionar? Se fizermos uma pesquisa até ao teatro antigo podemos verificar que os grandes temas que impressionavam os homens daqueles tempos ainda nos impressionam hoje em dia. E que Antígona, Electra, Penélope, Édipo, Jasão, Medeia, são heróis nos quais nos reconhecemos, sofrendo com as suas histórias as vicissitudes das nossas vidas. Hoje os dramas são outros. Os grandes dramas trágicos conseguem permanecer actuais através dos tempos mas a contemporaneidade trouxe consigo outras problemáticas criadas pela chamada “era do vazio”. A negação adoptada de todos os valores que se assumiram como arquétipos da sociedade ocidental é uma das características da era actual. No entanto, essa negação não tem como objectivo a criação de um nova ordem ética que se estabeleceria a partir das cinzas da ordem vigente, mas uma ordem perfeitamente amoral perante os valores estabelecidos. Segundo Lipovetsky, Narciso é a grande figura mitológica do tempo presente. Aliás, viver no presente, apenas no presente e não já em função do passado e do futuro, esta perda de sentido de continuidade histórica caracteriza a sociedade narcísica, na qual vivemos para nós próprios. Longe do niilismo trágico, o narcisismo contemporâneo afirma-se numa apatia frívola face à realidade que o rodeia. O narcisismo abole o trágico e surge como uma nova forma que se instala a despeito de qualquer consciência humanista.
A Comuna escolheu um texto de Ludmilla Razoumovskaia para reflectir sobre este estado quase apocalíptico a que os valores humanistas chegaram. Querida Professora é um texto que nos fala de idealista e de narcisos. De altruístas e de egoístas. De fortes que se transformam em fracos e de fracos que se mostram mortes sabendo que o não são.
Interpretado por Hugo Franco, Marco Paiva, Maria Ana Filipe, Tânia Alves e Rui Neto, o espectáculo Querida Professora abala as estruturas de qualquer espectador, especialmente dos que vivem por dentro o sistema de ensino.
A história é simples: quatro alunos finalistas do liceu visitam a sua professora de matemática, Helena Serguéiévna, uma mulher solitária, que se dedicou ao ensino de alma e coração. É o aniversário de helena e ela está a comemorá-lo sozinha, em sua casa. Os alunos chegam com champanhe, um serviço de copos de cristal, um ramo de flores e os seus melhores sorrisos. Na encenação de João Mota as primeiras falas dos quatro estudantes são proferidas como se de um coro grego se tratasse. Com a gravidade, a sintonia e a neutralidade que lhes são características. Há um prenúncio de tragédia nesta apresentação. A professora fica tocada com este gesto inesperado por parte dos seus alunos e logo se prontifica a preparar-lhes uma pequena ceia. Bebem o champanhe nos copos com as suas iniciais gravadas e dançam ao som dos poucos discos que a professora possui. A partir deste momento, podemos juntar-nos ao coro de Anouilh e dizer: “Ora bem, a mola está tensa, tudo se desenrolará por si. É esta, afinal, a comodidade da tragédia.” E, de facto, o turbilhão de acontecimentos que se sucede é violento e cruel. Os alunos, a despeito de toda a entrega feita pela sua professora, ao longo dos vários anos em que frequentaram o liceu, tentaram fazer com ela a negociação mais suja que se pode pensar. A troco daquela pequena festa ela entregar-lhes-ia a chave do cofre onde estavam guardados os seus exames de matemática para que os pudessem trocar por outros já correctamente preenchidos. Helena resiste. Fica estupefacta de horror. Então, um a um, revelam-lhe a sua verdadeira natureza. O bruto que deve pouco à inteligência e que precisa de passar no exame para poder vir a ser guarda-florestal, a rapariga calculista e fria que está a guardar a sua virgindade para a ocasião que lhe renderá mais créditos, o rapaz fraco que irá herdar a cátedra do seu pai, mas que precisa de passar no exame de matemática e, por fim, o mais perigoso, o frio diplomata que está a estudar para um dia ser político. Todos eles, de uma maneira ou de outra, tecem argumentos para que a chave do cofre lhes seja entregue. O telefone é cortado com violência, a casa é revistada, a professora é insultada. Chamam-lhe Antígona. E idealista. Os jogos de chantagem e violência psicológica sucedem-se e no fim todos perdem. A tragédia cumpre-se porque o público consegue sentir um abalo violento com o desenrolar e o final desta história contemporânea. Porque, mais que verosimilhança, há uma cruel verdade em todo o texto que toma corpo de forma violenta através destes cinco actores. Mais uma vez A Comuna apresentando grandes textos e fazendo jus à tradição, que é a de ser uma companhia de referência que marca os espectadores promovendo espectáculos de excelência. Depois da estreia em Portalegre está marcado o regresso à Comuna dia 20 de Maio. Mas poder assistir a este espectáculo num dos palcos da região seria da mais elementar justiça que os algarvios poderiam esperar dos seus programadores. Mais uma vez, parabéns à Comuna, desta vez por ter completado em Abril 35 anos de intensa actividade cultural e de formação de públicos. E ao seu grande mentor, o encenador João Mota.

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