Sunday, September 6, 2009

A descentralização cultural


Carolina Martins, Carolina Galvão, Carolina Santos, Bárbara Catarino, Maria Coutinho e Rita Martins são seis jovens que, desde Outubro experimentaram dar os primeiros passo numa oficina de teatro coordenada por Pedro Monteiro. Nessa formação, que as ocupava duas horas por semana, criaram um argumento de uma peça que foi tomando forma ao longo dos vários meses de trabalho. As improvisações criadas nessa oficina de formação permitiram que as jovens formandas, todas com 14 anos, descobrissem as diferentes formas de utilizarem a voz, o corpo, a interacção entre elas. Partindo das próprias vivências e de figuras lendárias conhecidas do universo infantil o grupo Teatro Vilão criaram a história de um grupo de ratos que escapa por pouco ao destino dos laboratórios e das experiências científicas. Ratices, foi o nome deste pequeno trabalho que percorreu três freguesias onde é difícil fazer chegar o teatro.
Ao depararem-se com o pequeno espaço na aldeia de Cachopo, onde iriam actuar, as jovens actrizes julgaram ser uma missão quase impossível fazer o seu trabalho num espaço exíguo. Mas depois de alguma adaptação feita pelo formador Pedro Monteiro, logo perceberam que o teatro pode acontecer com a ajuda de três projectores, do seu corpo e da sua voz. As cerca de 20 pessoas que estavam na assistência deliciaram-se com as aventuras dos ratinhos, do gato e da sua diabólica dona Camila. As jovens actrizes, para além de saberem jogar com as qualidades dos animais que imitavam, tinham um domínio do espaço e do objecto imaginário bastante convincente. A voz, bem colocada, saia sem medo de ser usada e toda a movimentação pressupunha um intenso trabalho de corpo por detrás. Os figurinos eram neutros, não havia bastidores, mas o público conseguia perceber quando é que as actrizes estavam em cena e fora de cena, qual a personagem que interpretavam e qual o objecto que tinham na mão. A actriz que interpretava o ratinho cego dava uma imagem muito nítida da sua bengala, sem que esta existisse fisicamente e todas as outras conseguiam pegar nos objectos, dando-lhes a respectiva forma, sem que eles estivessem de facto nas suas mãos. E o público via uma garrafa, um frasco, um caldeirão.
A cena em que o ratinho cego se escapa do hipnotismo e apela à ajuda das bruxas é hilariante e tem força dramática. Naquela cena há uma interacção entre todas as actrizes que transformam o corpo, a voz e a movimentação em cena num momento teatral muito especial. As luzes baixam e as bruxas evocam as suas forças para poderem libertar os ratinhos que estão no laboratório, prontos para serem cobaias nas experiências científicas. E a movimentação delas é tal que evoca um concílio de feiticeiras de uma forma verosímil.
O final, como é costume neste tipo de processo, foi um pouco abrupto, sucumbindo a cruel Camila ao som de música Pop, transformada em queijo, devorada pelos ratos que, por sua vez, são finalmente presos na armadilha do gato, que deixa de ser falhado. A história aponta para uma visão, segundo a qual não existem vencedores. Todos somos de alguma forma parte de uma longa cadeia alimentar, real ou metafórica e, algum dia, sem estarmos à espera, seremos engolidos pelo sistema.
O saldo foi positivo. Os sorrisos voltaram às faces dos habitantes de Cachopo e, abrindo a agenda do IPJ temos a sensação de que recuámos 10 anos, ao tempo em que aquela Instituição era de facto uma casa viva, que apoiava a Juventude e as Associações.

A tragédia e o entretenimento


Tangos e Tragédias é um divertimento protagonizado por Nico Nicolaewsky e Hique Gomez, dois músicos que, para além de tocarem com algum virtuosismo, sabem conduzir o público durante cerca de duas horas. O espectáculo, que está em cena há 21 aos, começa com o violinista a recriar o tema de Chaplin inserido no filme Tempos Modernos, omitido no programa dentre os compositores que inspiraram o espectáculo. Na folha de sala constam os nomes de compositores brasileiros como Vicente Celestino, Alvarenga & Ranchinho, ou Cláudio Levitan. Chaplin, que foi utilizado pelo violinista mais do que uma vez, não consta nesta homenagem. Nem o compositor do tema White Chistmas, de Irving Berlin, que ocupou quase metade do espectáculo.
Os dois músicos inventaram um país que lhes permitisse ter um comportamento ligeiramente excêntrico para intrigar o público. Sbornia do Sul, dominado pelo anarquismo hiperbólico, foi o país criado para que pudessem apresentar todas as suas fantasias musicais. Começaram por falar numa língua inventada, segundo o mote de Chaplin, quando teve de inventar a letra na sua mítica canção dos Tempos Modernos. O público ia acompanhando as marcações e a comunicação dos músicos, até que se começaram a fazer entender em português. Ouvimos então a história de amores impossíveis que se tornaram trágicos e, para ilustrar melhor a história, começaram a pedir a ajuda do público. O público estava hesitante mas os artistas insistiam. As vítimas mais acessíveis eram as da primeira fila, que se recusaram a colaborar, dizendo mesmo, que se não queriam subir ao palco, estavam no seu direito. Houve mesmo uma simulação de uma vingança através de uma facada, que a vítima inocente da primeira fila não quis socorrer. E ao longo do espectáculo o actor deixava escapar um “Obrigadinho!” ou então, à senhora que estava ao lado perguntava: “Ele é sempre assim tão cooperante lá em casa? Espero que tenha uma melhor sorte!”.
Houve momentos neste espectáculo em que os músicos tocaram e tocaram muito bem. Frente a um cortinado drapeado, com uma iluminação bonita, aqueles momentos sugeriam ao público que iria ter um espectáculo de música interessante e bem conseguido. No momento seguinte, sentiam necessidade de contar mais uma história e de envolver o público, mesmo que este não estivesse muito cooperante. Decidiram começar pelo “Encore”, que era, segundo eles, a parte do espectáculo mais interessante. Depois orquestravam os aplausos, coordenando a plateia a ovacionar com mais ou menos intensidade. Por fim, começaram a tocar o tema de Natal White Christmas, pedindo a ajuda do público, uma vez que toda a gente conhecia aquela melodia. O público entoava o tema com vogais de acordo com as instruções do músico. Um dedo apontado era i, os dedos formando um círculo era um o, a um gesto largo com a mão, o público tinha de dizer Blém. Com esta orquestração conseguiu-se uns vinte minutos de espectáculo. No final os músicos saíram e o público saiu atrás. Os músicos continuaram a tocar no foyer do teatro com o público todo à sua volta. O tema White Christmas continuou mas desta vez a letra era “lá em cima estava o tiroliroliro…”: O tema tradicional da chacota sobre as origens rurais dos portugueses. E assim se passaram duas horas de espectáculo das quais, uma foi gasta a orquestrar um público que se via estar ali mais para apreciar um espectáculo de música do que para cantar ou subir ao palco e dançar com a cabeça.
Como José Luis Louro disse inúmeras vezes aos seus alunos:” Como eu odeio a palavra entretenimento! O Teatro não deve ser para entreter! Tem de ter uma função social!” Guardo em mim essas palavras sempre que vou assistir a um espectáculo. E este espectáculo, apesar de se chamar tangos e tragédias, de tangos, não tinha nada. De tragédia, tinha umas historietas de amores desavindos. E de estruturante, pouco tinha. Divertido? Sim, para grande parte do público. Fez esquecer o stress da vida quotidiana? Tanto quanto um filme para passar o tempo. Estruturante, como o teatro deve ser? Não, de todo. Vazio de conteúdo. Então, mas se eram músicos, e bons, porque razão não tocaram? Porque razão insistiram com o público para subir ao palco expor-se em situações desconfortáveis? Tantas, tantas e tantas comédias, em que o público se diverte satisfeito ao mesmo tempo que aprende alguma coisa! Foi importante recordar que, em Portugal, a seguir a uma seta amarela que diz desvio, nunca mais se encontra o caminho certo! E porquê? Porque José Pedro Gomes, que é um mestre na arte de fazer rir, no espectáculo Coçar onde é Preciso, , diverte o público ao mesmo tempo que faz uma crítica social profunda, fina e acutilante. Aí sim. Saímos divertidos, reconfortados, mais ricos, e com vontade de escrever para as entidades responsáveis no sentido de colocarem todas as placas a que temos direito para não nos perdermos. E mudar o que está errado. É este o sentido do grande mestre brasileiro que escreveu a mensagem do dia Internacional do Teatro, Augusto Boal.

De Antígona a Narciso


O que têm de ter os textos de hoje para comoverem o espectador comum? Com o que é que ainda nos deixamos impressionar? Se fizermos uma pesquisa até ao teatro antigo podemos verificar que os grandes temas que impressionavam os homens daqueles tempos ainda nos impressionam hoje em dia. E que Antígona, Electra, Penélope, Édipo, Jasão, Medeia, são heróis nos quais nos reconhecemos, sofrendo com as suas histórias as vicissitudes das nossas vidas. Hoje os dramas são outros. Os grandes dramas trágicos conseguem permanecer actuais através dos tempos mas a contemporaneidade trouxe consigo outras problemáticas criadas pela chamada “era do vazio”. A negação adoptada de todos os valores que se assumiram como arquétipos da sociedade ocidental é uma das características da era actual. No entanto, essa negação não tem como objectivo a criação de um nova ordem ética que se estabeleceria a partir das cinzas da ordem vigente, mas uma ordem perfeitamente amoral perante os valores estabelecidos. Segundo Lipovetsky, Narciso é a grande figura mitológica do tempo presente. Aliás, viver no presente, apenas no presente e não já em função do passado e do futuro, esta perda de sentido de continuidade histórica caracteriza a sociedade narcísica, na qual vivemos para nós próprios. Longe do niilismo trágico, o narcisismo contemporâneo afirma-se numa apatia frívola face à realidade que o rodeia. O narcisismo abole o trágico e surge como uma nova forma que se instala a despeito de qualquer consciência humanista.
A Comuna escolheu um texto de Ludmilla Razoumovskaia para reflectir sobre este estado quase apocalíptico a que os valores humanistas chegaram. Querida Professora é um texto que nos fala de idealista e de narcisos. De altruístas e de egoístas. De fortes que se transformam em fracos e de fracos que se mostram mortes sabendo que o não são.
Interpretado por Hugo Franco, Marco Paiva, Maria Ana Filipe, Tânia Alves e Rui Neto, o espectáculo Querida Professora abala as estruturas de qualquer espectador, especialmente dos que vivem por dentro o sistema de ensino.
A história é simples: quatro alunos finalistas do liceu visitam a sua professora de matemática, Helena Serguéiévna, uma mulher solitária, que se dedicou ao ensino de alma e coração. É o aniversário de helena e ela está a comemorá-lo sozinha, em sua casa. Os alunos chegam com champanhe, um serviço de copos de cristal, um ramo de flores e os seus melhores sorrisos. Na encenação de João Mota as primeiras falas dos quatro estudantes são proferidas como se de um coro grego se tratasse. Com a gravidade, a sintonia e a neutralidade que lhes são características. Há um prenúncio de tragédia nesta apresentação. A professora fica tocada com este gesto inesperado por parte dos seus alunos e logo se prontifica a preparar-lhes uma pequena ceia. Bebem o champanhe nos copos com as suas iniciais gravadas e dançam ao som dos poucos discos que a professora possui. A partir deste momento, podemos juntar-nos ao coro de Anouilh e dizer: “Ora bem, a mola está tensa, tudo se desenrolará por si. É esta, afinal, a comodidade da tragédia.” E, de facto, o turbilhão de acontecimentos que se sucede é violento e cruel. Os alunos, a despeito de toda a entrega feita pela sua professora, ao longo dos vários anos em que frequentaram o liceu, tentaram fazer com ela a negociação mais suja que se pode pensar. A troco daquela pequena festa ela entregar-lhes-ia a chave do cofre onde estavam guardados os seus exames de matemática para que os pudessem trocar por outros já correctamente preenchidos. Helena resiste. Fica estupefacta de horror. Então, um a um, revelam-lhe a sua verdadeira natureza. O bruto que deve pouco à inteligência e que precisa de passar no exame para poder vir a ser guarda-florestal, a rapariga calculista e fria que está a guardar a sua virgindade para a ocasião que lhe renderá mais créditos, o rapaz fraco que irá herdar a cátedra do seu pai, mas que precisa de passar no exame de matemática e, por fim, o mais perigoso, o frio diplomata que está a estudar para um dia ser político. Todos eles, de uma maneira ou de outra, tecem argumentos para que a chave do cofre lhes seja entregue. O telefone é cortado com violência, a casa é revistada, a professora é insultada. Chamam-lhe Antígona. E idealista. Os jogos de chantagem e violência psicológica sucedem-se e no fim todos perdem. A tragédia cumpre-se porque o público consegue sentir um abalo violento com o desenrolar e o final desta história contemporânea. Porque, mais que verosimilhança, há uma cruel verdade em todo o texto que toma corpo de forma violenta através destes cinco actores. Mais uma vez A Comuna apresentando grandes textos e fazendo jus à tradição, que é a de ser uma companhia de referência que marca os espectadores promovendo espectáculos de excelência. Depois da estreia em Portalegre está marcado o regresso à Comuna dia 20 de Maio. Mas poder assistir a este espectáculo num dos palcos da região seria da mais elementar justiça que os algarvios poderiam esperar dos seus programadores. Mais uma vez, parabéns à Comuna, desta vez por ter completado em Abril 35 anos de intensa actividade cultural e de formação de públicos. E ao seu grande mentor, o encenador João Mota.

A síndrome de Peter Pan


Foi no dia 30 de Maio que o Serviço Educativo do Teatro das Figuras abriu as portas do grande auditório para o espectáculo Peter Pan na Terra das Artes Perdidas. Este espectáculo foi uma criação da associação Oficina Divertida e do Conservatório de Música de Olhão e a bilheteira reverteu a favor da Instituição Particular de Serviço Social de Tavira Uma Porta Amiga.
As coreografias foram da responsabilidade da professora Anabela Silva do Conservatório de Olhão e a composição musical de Anabela Silva, também do Conservatório de Olhão e de Ricardo Carvalho, da Oficina Divertida.
O espectáculo começa com uma sombra projectada na parede. A sombra de Peter Pan, interpretada pelo actor Rui Cabrita, foge da personagem que guarda os meninos que não querem crescer na ilha dos meninos perdidos. Rui cabrita conta o início da história e diz que, para além da terra dos meninos perdidos, existe uma terra das artes perdidas que só as crianças podem encontrar. Convidou o auditório para uma busca a essa terra de aventuras e o pano de boca abriu-se, mostrando uma projecção da janela do quarto de Wendy. Peter Pan chega com a sua atitude de rapaz irreverente e, logo a seguir, a sua sombra perdida. Há uma coreografia com uma classe de meninas a dançar, brincando com a sombra de Peter Pan, há pintores que entram ao colo dos seus pais e que vão pintar as telas do quarto, abertas à imaginação das suas cores, há pequenos músicos percussionistas, pianistas, bebés que entram ao colo das suas mães num tributo ao teatro, crianças carregando letras, tentando articulá-las num bailado de luz e cor. As artes foram homenageadas pelas gentes de palmo e meio através do imaginário de Peter Pan. O público do auditório vibrou e este poderia ter sido um bom espectáculo se parte dos adultos que estavam na assistência não sofressem, também eles da síndrome de Peter Pan. Peter Pan foi para a Terra dos Meninos Perdidos porque se recusava a crescer. Não no bom sentido, mas na recusa infantil e obstinada de obedecer a regras. Ele e os outros meninos perdidos divertiam-se comendo com as mãos, proferindo palavras proibidas, não obedecendo a horas para dormir. Há psicólogos que etiquetam a recusa de alguns homens em assumirem-se como adultos responsáveis como a síndrome de Peter Pan que, em últim instância, tem a ver com a convivência pacífica com um mundo de regras que promove a sã partilha de normas de conduta. No espectáculo Peter Pan houve, do princípio ao fim, um claro desrespeito pelas regras de funcionamento de um teatro, o que incomodou sobremaneira diversos espectadores. Apesar das portas se terem fechado depois do sinal sonoro de início de espectáculo ter soado duas vezes os espectadores continuaram permanentemente a entrar, incomodando quem já se encontrava instalado a tentar concentrar-se no espectáculo. Pelas normas do funcionamento do teatro das figuras sabe-se que, em qualquer espectáculo, depois das portas fecharem, os espectadores que chegam atrasados não podem entrar. Assiste-se a essa situação amiúde ao longo da programação. Será que estes actores de palmo e meio merecem menos respeito do que os actores consagrados que pisam o mesmo palco? E o público que paga tanto para ver um actor consagrado como para ver um espectáculo que homenageia as artes, não tem o mesmo direito à concentração que lhe é devida em ambos os casos? E quando os pais não se sabem comportar, não é dever destas instituições ao serviço da cultura promover a sua educação? Já é tempo destas estruturas deixarem o comportamento provinciano e assumirem-se como estruturas de notoriedade nacional, como afirmou o presidente da câmara de Faro no seu discurso inaugural do pequeno auditório. Quando um representante autárquico diz que “tem procurado que o espaço do Teatro das Figuras tenha uma dimensão nacional e não apenas uma dimensão de província, com parcerias com o Centro Cultural de Belém, com a Casa da Música, com a Gulbenkian´”, é necessário que essa convicção passe das palavras aos actos e se aja em conformidade. Quando se fala em mais de 30 mil crianças e jovens que tiveram a oportunidade de ter o seu primeiro contacto com a oferta cultural, é necessário que o trabalho se faça por inteiro e que percebam o que é respeitar o público e o actor que se desconcentra quando está a actuar. No caso da educação de públicos, agir em conformidade é também começar pelas pequenas coisas, como a de não permitir que o público deseducado importune o público que está a apreciar um espectáculo. Seja ele com a Eunice Muñoz ou com crianças também dão, genuinamente, o melhor de si em cima do palco.

A alma está no cérebro

Falar das patologias que se encerram, inusitadamente, dentro de cada um de nós é, por um lado um desafio e, por outro, um grande risco. A estrutura A Bruxa Teatro agarrou esse desafio e arriscou penetrar na mente doente de um coleccionador de borboletas que começa a sentir uma atracção fora do vulgar por uma rapariga. O texto é de John Fowles e a adaptação dramatúrgica de Mark Healey. Figueira Cid assinou a encenação deste texto a partir da tradução de António Henrique Conde. O tema é desconfortável, tanto mais que, ao longo do desenvolvimento do texto, pelo seu realismo brutal, apercebemo-nos de que a possibilidade daquele caso ocorrer na nossa vida não é um absurdo.
As duas horas sem intervalo passaram num ápice. Num cenário que aponta para um desequilíbrio instalado, Hugo Moreira interpreta o psicopata Frederick Clegg, pacato funcionário público, coleccionador de borboletas, que acaba de ganhar um prémio de lotaria, tornando-se milionário. Marta Inocentes é Miranda, a jovem estudante de Belas-Artes que provocou um fascínio tal no coleccionador, que acabou por ser raptada por Clegg e encarcerada numa cave.
Clegg apetrechou a cave com mobiliário confortável, comprou-lhe livros, roupas de acordo com as cores preferidas de Miranda, e até improvisou um pequeno recanto para a sua higiene. Fartou-se de gastar dinheiro com aquelas remodelações. No andar de cima a sua vida ia-se desenrolando com a normalidade aparente de um coleccionador de borboletas. A decoração da sala, de gosto duvidoso, contrastava com a sobriedade que tinha imposto à cave. Na cave a cor crua dominava perante as sobras de papelão dos caixotes reciclados em mobiliário. Em ambos os mundos o desequilíbrio é apontado pela cenografia que cortou as paredes em oblíquo. Tudo está a afastar-se do seu ponto de equilíbrio, desde o cenário até às próprias emoções e relações entre as personagens.
O espectáculo começa com a partilha do olhar do psicopata sobre a sua vítima. Miranda é seguida e filmada sem se aperceber. Ele encanta-se com o seu ar despreocupado, com a sua jovialidade, com o seu sorriso incomparável. A sua mente de coleccionador leva-o a querer apossar-se daquele ser humano, único no mundo. Para além de exemplares raros de borboletas, começa a sonhar em possuir aquela mulher. Para caçar uma borboleta, tem de se estudar o seu habitat, introduzir-se no seu meio dissimuladamente e atacar quando ela menos está à espera. No caso de Miranda, Clegg estudou meses a fio as suas rotinas, os seus hábitos, filmou-a discretamente e, quando teve condições para o fazer, caçou-a numa armadilha. Um pouco de clorofórmio na escuridão de uma rua e Miranda estava enfim nos seus braços, para viver na cave que ele, amorosamente lhe tinha preparado. Mais uma borboleta? Não. Uma mulher única que ele amava e não queria matar para a poder possuir. Não a queria exibir num catálogo, queria sentir a sua presença no fundo da sua casa. Um tesouro enterrado dentro das suas paredes. Um sentimento de posse que não tem a ver com um desejo erótico mas sim com um prazer estético idêntico ao que se obtém quando se consegue adquirir uma obra de arte.
Miranda acorda numa cave com um estranho ao lado e sufocada pelo efeito do clorofórmio. Habituada a viver segundo as suas regras, de forma hedonista, tenta explicar ao seu sequestrador que o facto dele a manter prisioneira é motivo para ela nunca chegar a pensar sequer em amá-lo. Ela tenta que Frederick entenda que não é como uma das suas borboletas, que estão mortas para que ele as possa apreciar. Mas Frederick não entende esse discurso. Para ele, Miranda não tem que se queixar. Ela respeita-a. Não lhe toca porque isso seria incorrecto. Alimenta-a, compra-lhe livros, discos, tudo o que ela quer. Leva-lhe chocolates, flores, até lhe encheu o guarda-fatos com roupas que sabia serem o seu género. Ela não tem motivos para se sentir como as borboletas que estão mortas. Clegg quer Miranda viva, apesar de ignorar que a está a matar aos poucos por dentro. Miranda tenta chegar a um acordo com Clegg: Ela permanece naquela cave mas ele irá libertá-la dentro de 2 meses. Clegg aceita o compromisso sabendo, de antemão, que não o cumprirá. Miranda também finge acreditar que o acordo será cumprido e faz o possível por manter a lucidez na cave escura com a escrita regular de um diário e o registo de um calendário na parede. Clegg visita-a regularmente para lhe dar as refeições e fazer a manutenção da higiene naquele aposento. Miranda tenta enganá-lo para fugir durante uma distracção. Em vão, pois a mente perversa de Clegg pensou em todos os pormenores. E a brilhante estudante de belas-artes, que amava a vida e o ar puro, vê-se enclausurada numa cave sem poder ver a luz do sol, sem poder viver a vida e as paixões que a fazem ser única e rara. Por diversas vezes faz notar a Clegg que ele não pertence ao mesmo nível cultural que ela domina. Ela emenda a sua maneira de falar, de servir o chá, faz-lhe ver que os livros que lhe comprou não são os adequados, apesar de caros. Encomenda-lhe livros sobre pintores contemporâneos, como Mondrian, e música de Bach. Um cavalete para pintar. Porque fotografar mata a imagem. Pintar faz com que a coisa permaneça viva. E Clegg fotografa-a incessantemente. Miranda fá-lo sentir-se prisioneiro do seu próprio percurso, de ter crescido num meio carenciado e discplicente. Fá-lo sentir culpado por ter ganho a lotaria e não saber fazer nada de construtivo com esse dinheiro. A sua arrogância intelectual cega-a ao ponto de julgar que Clegg se deixará seduzir pelo seu corpo. No dia anterior à sua libertação, não acreditando que Frederick irá cumprir o prometido, Miranda oferece-se ao seu raptor, acto que ele considera repugnante. A partir daquele momento Miranda deixa de ser a rapariga única para ser mais uma rapariga vulgar, sem nada que a torne o objecto raro que se deve manter escondido. Miranda percebe que já não tem salvação e a atitude de Clegg muda radicalmente. Não se aproveita do corpo de Miranda, mas humilha-a e submete-a a um terror psicológico que a leva a sucumbir. Mais do que a pneumonia, foi a falta de esperança que matou Miranda. Marta Inocentes interpretou uma Miranda com a veracidade que a personagem requer. Com a força de viver que se anuncia ao longo de todo o texto, com a revolta, com a sobranceria, com a inteligência de uma estudante brilhante que está a fazer o seu curso porque teve direito a uma bolsa de mérito. Hugo Moreira, um pouco titubeante ao princípio, conseguiu recuperar a personagem a meio do espectáculo, tornando-se no perverso coleccionador. De borboletas e de jovens raparigas, pois, depois de ter perdido o exemplar único, já não lhe interessa a qualidade do que irá coleccionar. Irá procurá-las entre os extractos mais baixos da sociedade, para não se sentir inferior e, quiçá, sentirem-se agradecidas pela oportunidade que ele lhes dá de poderem viver uma vida em função do deslumbramento estético de alguém.
Tal como uma boneca sem rosto enclausurada numa redoma, Miranda viu-se privada de vida. O seu sorriso único foi substituído por uma réplica que será sempre imperfeita. Se o sequestro de Miranda teve como objectivo uma admiração que ia para lá do físico, depois da sua morte Clegg transforma-se no verdadeiro coleccionador. À procura do objecto raro que já não existe. Um espectáculo raro, com uma beleza perturbante, que deixa em suspenso a patologia que pode existir no mais pacato cidadão. Um espectáculo para ver e pensar.