Sunday, March 15, 2009

O Tempo dos demiurgos


Ponto, linha, plano. Poderia ser o título de uma obra de Kandinski mas aplica-se, neste caso, ao trabalho de um jovem português que se dedicou ao novo circo e à técnica do mastro chinês. Num espectáculo de 40 minutos João Paulo Santos faz o espectador passar por estas três dimensões, assumindo o risco de trabalhar sem rede. Um tempo que corre mais devagar. O tempo do criador de universos.
João Paulo Santos tem um olhar vivo que fala, transmitindo toda a emoção e força de viver. Acrobata em fulgurante ascensão, João Paulo Santos iniciou a formação em Artes Circenses no Chapitô, em Lisboa. Aos 20 anos rumou para França onde se formou ao nível superior na consagrada escola francesa Centre Nacional des Arts du Cirque, em Châlons-en-Champagne. Com a sua companhia “O Último Momento”, criou “Peut-être” com Guillaume Dutrieux, que foi seleccionado para Jeunes Talents Cirque em 2004. Contigo é uma obra criada por dois homens que gostam de inventar novas linguagens para o corpo. João Paulo Santos convidou Rui Horta para entrar nesta aventura de criação, o que constituiu um desafio para os dois. João Paulo teve de se libertar da rigidez da acrobacia, presente na arte do mastro chinês. Rui Horta é o homem que, desde cedo, nos habituámos a ver reinventando a dança contemporânea. Juntos, segundo João Paulo Santos, criaram um espectáculo assemelhando-se a duas crianças a construir um castelo. A música, admirável, foi criada para este espectáculo por Victor Joaquim e Tiago Cerqueira e o figurino esteve a cargo de Pedro Pereira dos Santos.
No espectáculo Contigo há uma dimensão onírica que advém da noção de tempo que o acrobata desenvolve. Há um sentido de alteridade no qual se brinca com o plano vertical, impossível de alcançar para a maior parte dos espectadores. João Paulo observa o mastro, salta e agarra-se à linha vertical, para logo a seguir se separar dela, como se de um jogo de sedução se tratasse. Parte para uma distância maior e de novo se aproxima de um salto do objecto desejado, abraçando-o. Mais uma vez se separa, desta vez para uma distância maior. E o salto é mais convicto, carregado de uma vontade que o faz abraçar-se com mais força. E finalmente desenvolver um diálogo mais próximo com o plano vertical.
João Paulo sobe pelo mastro com uma leveza e uma subtileza desconcertantes. Faz-nos pensar que é fácil o desafio vertical. No entanto, quando chega ao topo, mostra que a queda dos graves é um facto real e que a gravidade é uma lei da física. Quando atira uma pedra para o chão e ela cai ruidosamente o espectador apercebe-se que só ao acrobata é dado o poder de desafiar as leis da física. Só no instante em que a pedra cai, o espectador se confronta com o perigo de se trabalhar sem rede.
João Paulo Santos articula alguns objectos que entram em diálogo com o mastro chinês. A cadeira transforma-se em mochila, transportada até ao topo do mastro, para aí se deter qual posto de vigia e repouso do guerreiro. Para além da cadeira João Paulo leva consigo uma vara que transforma em remo, em monóculo, em pau de chuva, em vara de equilibrista. Os objectos jogam um jogo de diferentes identidades, ajudando o acrobata a assumir também várias personalidades. Assim, João Paulo Santos é um explorador que assume o risco da aventura, desocultando várias faces do humano. Ele é, a um tempo, Galileu estudando a queda dos graves, o Principezinho, explorando o universo do seu pequeno planeta, o aventureiro pronto a gritar “Terra à vista!” depois da proeza de cruzar o oceano. E é apenas a criança que reinventa o sentido dos objectos, alterando a sua essência dentro de um jogo de sentidos e significados.
Com a sua vara, João Paulo Santos cria um elo entre o Céu e a Terra, os dois arquétipos primordiais que unidos, conceberam a multiplicidade do real. Recuando aos mitos mais antigos que criam o imaginário colectivo da humanidade, Mircea Eliade conta que numa tribo nómada da Austrália, os Achilpa, os homens acreditavam que o ser divino Numbakula tinha aberto um buraco no céu, descido por uma vara até à Terra e, depois de ter criado a vida e toda a multiplicidade do real, ungiu a vara com o seu sangue, subiu por ela e desapareceu num buraco no céu. A partir daí a tribo passou a olhar a vara como um objecto sagrado que unia os dois mundos. Neste espectáculo João Paulo Santos devolveu ao espectador o olhar inocente do mito cosmogónico. Em contigo nós fomos a tribo dos Achilpa que assistiu maravilhada à criação do mundo pelo ser divino Numbakula. Nos 40 minutos de terror sagrado o público sentiu o poder do objecto sagrado, dominado por um ser que, não sendo sagrado, tem o dom de chegar aos nossos corações.
João Paulo Santos tem levado este espectáculo a todos os continentes. E, com uma linguagem que ultrapassa a palavra, tem conseguido chegar à emoção daqueles que assistem à verdade e ao risco deste acrobata. João Paulo brinca com as várias potencialidades deste jogo do mastro. Agarra-se, desliza, enrola-se, deixa-se cair. Neste espectáculo a destreza física foi articulada com a leveza de uma coreografia concebida para o espaço. Um espectáculo em que se sustém a respiração e se suspira de alívio, reconciliando o ser consigo mesmo.
Estreado no Festival de Avignon em 2006, onde foi muito bem acolhida pelo público e programadores internacionais, o espectáculo assume o perigo. É que em palco não há rede de segurança nem fios de metal presos à cintura, adivinhando-se ocasiões de fazer suster a respiração. É como se o tempo no topo de tudo corresse mais devagar. O tempo do demiurgo.
O Teatro Municipal de Portimão está a preparar uma residência artística com João Paulo Santos e apresta-se a ser um dos primeiros teatros a programar uma rede internacional de Novo Circo.

1 comment:

Joao-O Ultimo Momento-cie de cirque said...

Ola, chamo-me João Paulo Santos, e sou o acrobata co-criador de "Contigo", de vez enquanto pesquiso na net para ver o que se diz sobre o meu trabalho, e devo dizer-lhe que é a primeira vez que um comentario sobre o meu trabalho e especialmente sobre o espectaculo "contigo" é tão pertinente salientado alguns aspectos que mesmo eu não tinha consciência, mas que fazem todo o sentido, e que me permitem uma nova leitura do meu proprio espectaculo.
"Contigo" continua a sua vida, dia 22 de setembro vou actuar em Sevilha em Espanha, penso que o espectaculo continua a crescer, e graças a pessoas como você ele segue op sue proprio caminho sem que eu possa controlar tudo e isso é muito gratificante.
obrigado,
deixo-lhe o endereço do meu site para poder seguir as actulidades da minha companhia, se lhe interessar é claro.
http://www.scenesdecirque.org/compagnies/o-u-m.html

Joao Paulo Santos