Sunday, March 15, 2009

O Ser, o Devir e o Nada


Mark Ravenhill, dramaturgo contemporâneo, destacou-se pelos temas arrojados e conteúdos explícitos nas suas peças de teatro. Shopping and Fucking foi a sua segunda peça de teatro, responsável pela sua súbita fama. O tema, cada vez mais recorrente, é o da total adesão aos valores da sociedade de consumo. Será que o consumismo desenfreado substitui todos os códigos deontológicos, havendo necessidade de criar um outro? Tudo tem na sua base uma transacção económica, inclusive as relações entre seres humanos. Até aqui, nada de novo. As relações entre as pessoas sempre foram suportadas por transacções comerciais, inclusivamente as de carácter mais íntimo. Há seres humanos que compram outros e se tornam seus donos. Mais um lugar comum que tem as suas raízes na aurora da humanidade e se desenvolveu de forma mais refinada e perversa com a assunção das práticas de bondage. Toda a gente sabe que há seres humanos que se consideram donos de outros e que estes outros têm necessidade de se sentirem dominados pelos seus donos. Na história da literatura este tema foi desenvolvido admiravelmente por Sade, o que mostra que também aqui esta temática não traz nada de novo. O sexo é para ser consumido à maneira de Fast-food, nos tempos em que ninguém se esforça por dar alguma qualidade de vida a si próprio, começando pela sua alimentação. Também aqui o que é que há de novo e interessante para mostrar? O texto foi escrito na época do governo de Margaret Thatcher, período marcado por uma grave crise económica que abalou os valores do Reino Unido. As lutas dos trabalhadores sucediam-se e, perante os números do desemprego surgidos no governo Thatcher, a sociedade esvaia-se renegando as suas crenças, erigindo novos valores. A linha transversal ao espectáculo é o desregramento até ao limite da prática de sexo que vai originar o consumo de drogas, o roubo, a prostituição e o crime.
O espectáculo começa com um homem a regurgitar em cima de uma mesa, numa sala onde todo o mobiliário é feito de cartão. A ideia de descartável é imposta desde o princípio e o homem mais velho regurgita o seu passado, o seu peso perante a responsabilidade do jovem casal que comprou. Vai fazer uma cura e o jovem casal terám, enfim, de procurar subsistir sem a sua fonte de rendimentos. Ficam chocados, ofendidos, tal escravos libertados sem saberem o que fazer. Vão a entrevistas para ocupações medíocres já que, o que está em causa não é a procura de uma profissão da qual se retire prazer, mas a subsistência pura e simples. Na entrevista a que assistimos quando a personagem feminina, Lulu, vai procurar trabalho, há um jogo muito bem desenvolvido, no qual o entrevistador representa a visão da cultura dos detentores do poder económico. Para o dealler, a história do Rei Leão transforma-se na história de Hamlet, contando um desenho animado como se de uma tragédia shakespeareana se tratasse. Um pormenor sarcástico muito forte que, efectivamente, surpreendeu pela positiva. De resto, o costume: obrigou Lulu a recitar um excerto de uma peça só para seu gozo pessoal e, para o completar, ela teve de o dizer despida da cintura para cima.
O seu namorado, incumbido de vender drogas em forma de comprimidos, deslumbra-se esteticamente com os frequentadores da discoteca e oferece-as, perdendo assim uma grande soma de dinheiro. O dealler, ao som de um concerto de Bach, que escuta extasiado, mostra ao jovem casal o que lhes pode acontecer se estes não lhe devolverem o dinheiro no prazo de uma semana. É aqui que se adensa a espiral de consumo. Tornam-se operadores de telefonemas eróticos enquanto o seu antigo protector se encontra com um prostituto. A relação tem de ser meramente económica, pois ele não se permite que haja sentimentos a conspurcar a simplicidade da transacção. O jovem prostituto domina a relação porque o homem mais velho não consegue deixar de se envolver com ele afectivamente. Regressa a casa e a espiral de consumo transforma-se rapidamente numa espiral de violência no vórtice da qual o jovem prostituto pede ao homem mais velho que o mate, pois a vida para ele já não faz sentido. O homem faz o que tem a fazer e no final há o reencontro dos três elementos iniciais de regresso à vida descartável que levavam, onde o sexo se assemelha à comida rápida de degustação fácil.
Este espectáculo, para além das falhas técnicas apresentadas pelos actores, ao nível da dicção e pela projecção de voz, pois metade do texto tinha de ser recuperado na imaginação do espectador, uma vez que não se percebia grande parte do que diziam, ao nível consistência dos gestos, pois numa garfada estavam sob o efeito do deririum tremens e na garfada seguinte já estavam bem, apresenta outro tipo de problemas ao nível da consistência da ideia. Segundo o esquema básico do método dialético, existem três elementos: a tese, a antítese e a síntese. A tese é uma afirmação ou situação inicialmente dada. A antítese é uma oposição à tese. Do conflito entre tese e antítese surge a síntese, que é uma situação nova que carrega dentro de si elementos resultantes desse embate. A síntese, então, torna-se uma nova tese, que contrasta com uma nova antítese gerando uma nova síntese, em um processo em cadeia infinito.
Neste espectáculo há a afirmação de uma tese com a vivência inicial dos três elementos. Há a negação dessa tese com o corte no quotidiano, obrigando os dois elementos a procurar um novo sentido. Dos elementos novos resultantes do embate da tese com a antítese não se originou uma síntese, contrastando com a antítese e originando uma nova visão da realidade, uma vez que os protagonistas voltaram a afundar-se no mar de imundice que os caracterizava. Nem se discute a oportunidade de cenas de sexo explícito que obriga o espectáculo a ser para maiores de 18 anos. Não é por esse pormenor que o espectáculo é mais ou menos forte. O espectáculo deixa de ser forte quando o seu conteúdo deixa de ser credível, esvaziando-se de sentido. a história do jovem prostituto, no final, deixa de funcionar porque o espectador deixa de acreditar. E toda uma ideia forte, suportada por um texto hiper realista sobre a sociedade de consumo é destruída pela inconsistência da acção. A tragédia grega funciona porque o espectador se revê na personagem. Não é menos forte por defender que as cenas de crime e de morte se passem fora da cena: o obsceno. É sabido ao longo dos séculos que a capacidade de contar uma cena possibilita um encontro da palavra com o real através da imaginação, que supera o simples olhar. E os gregos contavam essas cenas de uma forma forte, que era capaz de provocar no espectador sentimentos de terror e de piedade. Sentimentos que o levavam a renovar-se e a repensar-se enquanto pessoa. Este espectáculo não conduz a nada. Nem sequer ao esvaziamento. Uma crítica à sociedade de consumo? Porque não A Caverna, de Saramago? Essa sim, uma visão inteligente.

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