Sunday, March 15, 2009

Bullying - Ponto final

O tema é actual e difícil. A violência física e psicológica que alguns adolescentes exercem sobre os colegas nas escolas tem sido recorrente. No entanto, não é pelo facto de ser um tema transversal, que se refaz a cada ano lectivo, que os educadores vão deixar de o trazer à discussão. A ACTA elegeu o bulliyng como o tema central para espicaçar a discussão entre alunos e professores e, juntos, conseguirem encontrar uma solução para este problema inquietante. Quem não se lembra de ter sido ameaçado na escola ou de se ter sentido desconfortável e até tenso com a perspectiva de voltar a entrar no recinto escolar?
Bullying: O que é?
Mas de que é que estamos a falar quando falamos de bullying? O termo foi criado nos anos 80 nos países do Norte da Europa. Com ele se pretende definir comportamentos de natureza agressiva entre os adolescentes, com a intenção de prejudicar o outro, seja psicológica, seja fisicamente. Actualmente o Bullying é objecto de estudos universitários, tendo os técnicos especializados chegado à conclusão que este fenómeno está a ganhar uma nova dimensão, com a agravante da violência exercida sobre um determinado sujeito ser continuada e não pontual.
De acordo com um estudo da psicóloga Ana Vasconcelos, o que está na base deste tipo de violência gratuita é a necessidade de afirmação perante o grupo. "Há alturas em que a criança, para se sentir segura, precisa de mostrar aos outros que é mais forte. O bullying pode ser encarado como uma forma de exorcizar os medos. Os agressores vão detectando as suas vítimas nos recreios da escola". O bullying baseia-se, por isso, numa luta desigual: há uma vítima e um agressor (também conhecido por bully). As vítimas são, normalmente, "miúdos emocionalmente retraídos e com menos capacidades para encontrarem soluções ou fazerem queixa".
Com texto de Glória Fernandes, Luis Miranda e Paulo Moreira, que também assina a encenação, os actores da ACTA souberam apontar vários aspectos das relações dos bullys com as suas vítimas. Ao longo do espectáculo vemos como as vítimas vão sendo ameaçadas através de mensagens de telemóvel, de abordagens directas nos recreios, ou até mesmo na própria sala de aula. O facto do texto ter sido elaborado por três professores do ensino básico e secundário é um elemento chave que confere verdade à representação. Os actores Elisabete Martins, Mário Spencer, Pedro Mendes e Tânia Silva transportaram-nos para o mundo cruel do bullying. Vemos s bullys minarem a auto-estima dos colegas e as vítimas irem ficando com uma capacidade de reacção cada vez menor. É um factor a ter em conta o facto dos miúdos agressores terem uma auto-estima elevada e uma grande confiança em si próprios. No entanto, a auto-imagem do bully é alimentada pelo sofrimento e domínio que exercem sobre os colegas.

Quem são os bullys?
Um estudo académico da autoria de Susana Carvalhosa, Luísa Lima e Margarida Matos mostra que, numa amostra de cerca de 7000 jovens que frequentam escolas portuguesas, cerca de 21% dos jovens foram vitimados «alguma vez
ou mais» e 10% provocaram outros. Cerca de metade da população em estudo não se envolveram nestes comportamentos e apenas 26% se envolveu duplamente. Mas este dado vem também confirmar que os alunos mais novos são mais frequentemente vitimados do que os alunos mais velhos. Também se mostra que os rapazes envolvem-se mais em comportamentos de provocação, vitimação e envolvimento duplo; também alunos mais novos são mais frequentemente vítimas e a frequência de serem ameaçados diminuiu à medida que aumenta a idade.
No que diz respeito às características dos provocadores, verificou-se que estes têm índices de violência fora da escola maiores que as vítimas, têm piores relações com os pais do que o grupo sem envolvimento. Têm mais sintomas de depressão e maiores queixas de sintomas físicos e psicológicos do que o grupo sem envolvimento. São os maiores consumidores de drogas e de tabaco e álcool. Relativamente ao grupo sem envolvimento praticam mais exercício físico e têm melhor imagem corporal. Têm uma atitude desfavorável em relação à escola quando comparados com as vítimas e menores expectativas de futuro quando comparados com o grupo sem envolvimento, são o grupo dos alunos mais velhos e têm mais escolaridade que as vítimas.
Quanto às características dos jovens com envolvimento duplo, verificou-se que têm índices de violência fora da escola maiores do todos os outros grupos, têm piores relações com os pais do que o grupo sem envolvimento são aqueles que têm piores relações com pares. São os que exibem, de todos os grupos, mais sintomas de depressão e apresentam mais queixas de sintomas físicos e psicológicos. Consomem mais drogas do que as vítimas e do que os sem envolvimento, consomem mais tabaco e álcool do que as vítimas, são aqueles que mais exercício físico praticam e que têm melhor imagem corporal. São os que têm a atitude face à escola mais desfavorável, têm menores expectativas de futuro quando comparados com o grupo das vítimas e com o grupo sem envolvimento, têm um nível socio-económico mais baixo do que o grupo sem envolvimento, são o grupo dos alunos mais novos e têm menos escolaridade. Podemos assim afirmar que o grupo com envolvimento duplo é aquele onde se verifica existirem maiores factores de risco, isto porque se envolvem mais em comportamentos de violência fora da escola, revelam mais queixas de depressão e de sintomas físicos e psicológicos. Este perfil mostra a necessidade de se proporcionar a estes jovens acompanhamento adequado, uma vez que os factores de risco parecem ter um efeito não apenas aditivo, mas multiplicativo, ou seja a probabilidade aumenta consideravelmente quando aumenta o número de factores de risco que afectam o jovem.

Quem são as vítimas?

Em relação às características das vítimas, verificou-se que são aquelas que têm piores relações
com pares e com os pais quando comparados com o grupo sem envolvimento. Têm mais sintomas de depressão e maiores sintomas físicos e psicológicos. Consomem menos drogas, praticam mais exercício físico e têm melhor imagem corporal. Têm uma atitude mais desfavorável em relação à escola do que o grupo sem envolvimento, são os que menos tabaco e álcool consomem, apresentam menores expectativas de futuro, são o grupo dos alunos mais novos e têm menos escolaridade que os provocadores.

Os determinantes dos comportamentos de provocação e de vitimação, revelam um mal-estar e uma falta de saúde positiva entre os jovens envolvidos no bullying. Pelo contrário é de realçar que os jovens devem possuir saúde positiva e um bem-estar de modo a não se envolverem nestes tipos de comportamento. Ainda, em relação à análise do padrão de comportamentos dos jovens que se encontram duplamente envolvidos, é de realçar um exagero de mal-estar, como já foi referido.
A violência fora da escola ser um determinante dos comportamentos de provocação e de vitimação, explica que também fora da escola os indivíduos se envolvem em comportamentos anti-sociais. Isto dá-nos a entender a dimensão que este problema pode atingir se não forem tomadas medidas adequadas para o prevenir.

A ACTA através de uma linha de teatro interactivo, iniciada com o espectáculo O Longo Sono da Heroína alerta para todos estes factores e tenta, com a construção de um final sugerido pelos alunos, mostrar caminhos para a resolução deste problema grave que se está a alastrar na sociedade portuguesa. Com encenação de Paulo Moreira, neste espectáculo os alunos participam, entusiasmam-se, tomam partido, defendem os mais fracos. É a diferença entre uma mostra pura e simples do problema e a destruição da quarta parede.

Os Maias de António Torrado


António Torrado reescreveu a obra-prima da literatura portuguesa do séc. XIX, Os Maias, adaptando-a ao palco. Depois das opções tomadas assistiu-se a uma morna passagem pela crítica de costumes suportada por um elenco desadequado. Em cena no Teatro da Trindade até dia 26 de Abril.
O Teatro da Trindade, no âmbito das comemorações dos seus 146 anos de existência, propôs-se apresentar uma adaptação do histórico romance de Eça de Queiroz, Os Maias. Com reescrita de António Torrado e encenação de Rui Mendes, o foco da obra foi apontado para a crítica social e de costumes de que Eça de Queiroz era um arguto combatente.
O espectáculo começa com a projecção em filmagem de uma reconstituição histórica. Os espectadores vêem Carlos da Maia e João da Ega a chegarem de tipóia ao Teatro da Trindade para assistirem ao famoso sarau de beneficência, no qual Eça de Queiroz pôs a discursar a nata do ridículo da sociedade intelectual portuguesa. Com a recriação de dois camarotes do Teatro da Trindade em palco, dá-se início a uma série de analepses que ajudam a contar a história a partir de um tempo no qual a tragédia já se tinha instalado. Desse sarau do Trindade abre-se uma janela para o passado onde se vê a aparição da “negreira” Maria Monforte, cobiçada por todos os homens da sociedade lisboeta e a viagem vertiginosa desenvolvida por Pedro da Maia até ao seu suicídio. Os anos de “educação à inglesa” do jovem Carlos Eduardo foram omitidos, aparecendo já homem feito, disposto a cursar medicina. O sub-título da obra “Episódios da Vida Romântica” foi esquecido em detrimento do apontar da galeria de caricaturas dos intelectuais que dominavam a cena intelectual de Lisboa nos finais do séc. XIX. As personagens femininas, qual golpe shakespeareano, foram reduzidas a duas, interpretadas pela mesma actriz, à qual o dramaturgo não teve o cuidado de desenvolver na sua estrutura interessante. As falas que denotam uma maturidade de espírito, a argúcia e a discussão intelectual de igual para igual de Maria Eduarda quando ilustra as pesquisas de Carlos Eduardo são omitidas, remetendo Maria Eduarda a uma posição subalterna de dona de casa bonita. Apenas a registar um rasgo de inteligência quando se defende da acusação maldosa do brasileiro e do próprio Carlos Eduardo. Todas as outras mulheres desaparecem da história, sendo apenas nomeadas de passagem, como seres desinteressantes e fúteis.
A versão de António Torrado condensa-se num grande flasback que se concentra na vida política de Lisboa. É interessante verificar que as mentes decrépitas e medíocres da política continuam em força nos mesmos lugares, dirigindo os destinos do país. No entanto as sucessivas mudanças de tempo, usuais no cinema, não contribuem para a compreensão da leitura de uma obra tão complexa, como Os Maias. Quando um dramaturgo põe em cena uma versão de um clássico não deve partir do pressuposto de que toda a gente já o estudou. Houve muita gente, dentre jovens, cidadãos brasileiros, que saíram do teatro sem terem percebido nada da história. Quando sucedeu a revelação trágica do incesto houve vozes que se perguntavam: “mas como é que eles souberam, quem é que lhes disse?”. A ideia pré-concebida de que o público já é conhecedor de todos os meandros da obra pode ser prejudicial para a compreensão da mensagem principal e não presta serviço nem ao teatro nem ao autor. O percurso queiroseano de Sintra foi omitido, deixando de lado um dos mais belos quadros pintados pelas metáforas do autor sobre a vila das “nascentes de águas vivas”. Esse percurso é um dos motivos de regressos recorrentes a Sintra de centenas de leitores d’Os Maias e, nesse sentido, uma traição ao espírito da obra.
Relativamente ao elenco houve opções incompreensíveis. Por um lado, António Torrado, numa entrevista dada à SIC, defende que apesar de Eça de Queiroz descrever detalhadamente todos os pormenores físicos das personagens, a encenação se preocupou mais em “pôr em cena o espírito das personagens e dos enredos que as envolvem do que propriamente as características físicas de cada uma delas.” Não se compreende então a razão da escolha de um actor como José Fidalgo que apenas cumpre a imagem de Carlos da Maia, quando lhe falta a voz, a presença em palco, a força de interpretação que sustentaria a personagem principal d’Os Maias. É chocante ver Pedro Górgia interpretar o Dâmaso Salcede, pois nem a postura física nem o espírito fazem jus à personagem “chic a valer” criada por Eça de Queiroz.
A questão coimbrã, elemento chave da discussão entre Ega e Alencar, aquando do jantar no Hotel Central passa despercebida no meio de tanta marcação concebida para provocar o riso. Em relação às interpretações, José Airosa está convincente quando brinca com a personagem de João da Ega. No entanto, quando assume o alter-ego do autor, deverá preocupar-se mais com a gestualidade própria do século XIX, pois não é credível colocar o monóculo típico do Eça no olho direito e retirá-lo com a mão esquerda. José Fidalgo não está à altura de um Carlos Eduardo e Sofia Duarte Silva mostrou, tanto quanto lhe foi permitido, a portentosa Maria Eduarda. João Didelet esteve excelente no ridículo discurso que proferiu no teatro da Trindade sobre o Anjo da Caridade. As outras personagens mantiveram-se num registo morno, sem fazerem muita honra à fina sátira social de Eça de Queiroz. Quanto mais não fosse, para dar o toque de comédia apontado pela encenação, faltaram as duas espanholas enroladas com o Eusebiozinho, contraponto a toda a educação de Carlos Eduardo e a cena fulcral, utilizada como exemplo em todos os cursos de escrita para teatro da revelação do incesto. A entrada repetida do criado, impedindo que a revelação brutal se faça dentro do tom pesaroso da tragédia é uma das cenas fulcrais da literatura portuguesa. Foi uma pena não ter sido explorada nesta versão.
Um ponto positivo nesta encenação teve a ver com o suporte musical da responsabilidade de Afonso Malão. O diálogo entre Carlos e o músico, que fala com ele através do piano funciona na justa medida. Os apontamentos musicais estão muito bem justificados e o tom que o músico utiliza ao longo de todo o espectáculo é o ideal para funcionar como complemento às vozes dos actores.
O desenho de luz é adequado, com momentos bonitos, como o do jantar no hotel central, mas faltou a luz que pintasse o idílio de Carlos e Maria Eduarda. O guarda-roupa de época, concebido por Ana Paula Rocha estava adequado podendo, no entanto ter piscado o olho à contemporaneidade quando se faz a comparação dos discursos dos políticos da época com os actuais parlamentares.
Um espectáculo em que os professores devem ter trabalhos redobrados a preparar os seus alunos para aquilo que irão ver. No final o público fica à espera de que os dois amigos irrompam do palco para apanhar “o americano”. No entanto, João da Ega e Carlos Eduardo ficam estáticos, a ver a vida passar por eles, quais meninos mimados de uma existência ociosa. Talvez o final mais bem conseguido para o olhar fino e satírico de Eça de Queiroz sobre os vícios da sociedade portuguesa.

O Ser, o Devir e o Nada


Mark Ravenhill, dramaturgo contemporâneo, destacou-se pelos temas arrojados e conteúdos explícitos nas suas peças de teatro. Shopping and Fucking foi a sua segunda peça de teatro, responsável pela sua súbita fama. O tema, cada vez mais recorrente, é o da total adesão aos valores da sociedade de consumo. Será que o consumismo desenfreado substitui todos os códigos deontológicos, havendo necessidade de criar um outro? Tudo tem na sua base uma transacção económica, inclusive as relações entre seres humanos. Até aqui, nada de novo. As relações entre as pessoas sempre foram suportadas por transacções comerciais, inclusivamente as de carácter mais íntimo. Há seres humanos que compram outros e se tornam seus donos. Mais um lugar comum que tem as suas raízes na aurora da humanidade e se desenvolveu de forma mais refinada e perversa com a assunção das práticas de bondage. Toda a gente sabe que há seres humanos que se consideram donos de outros e que estes outros têm necessidade de se sentirem dominados pelos seus donos. Na história da literatura este tema foi desenvolvido admiravelmente por Sade, o que mostra que também aqui esta temática não traz nada de novo. O sexo é para ser consumido à maneira de Fast-food, nos tempos em que ninguém se esforça por dar alguma qualidade de vida a si próprio, começando pela sua alimentação. Também aqui o que é que há de novo e interessante para mostrar? O texto foi escrito na época do governo de Margaret Thatcher, período marcado por uma grave crise económica que abalou os valores do Reino Unido. As lutas dos trabalhadores sucediam-se e, perante os números do desemprego surgidos no governo Thatcher, a sociedade esvaia-se renegando as suas crenças, erigindo novos valores. A linha transversal ao espectáculo é o desregramento até ao limite da prática de sexo que vai originar o consumo de drogas, o roubo, a prostituição e o crime.
O espectáculo começa com um homem a regurgitar em cima de uma mesa, numa sala onde todo o mobiliário é feito de cartão. A ideia de descartável é imposta desde o princípio e o homem mais velho regurgita o seu passado, o seu peso perante a responsabilidade do jovem casal que comprou. Vai fazer uma cura e o jovem casal terám, enfim, de procurar subsistir sem a sua fonte de rendimentos. Ficam chocados, ofendidos, tal escravos libertados sem saberem o que fazer. Vão a entrevistas para ocupações medíocres já que, o que está em causa não é a procura de uma profissão da qual se retire prazer, mas a subsistência pura e simples. Na entrevista a que assistimos quando a personagem feminina, Lulu, vai procurar trabalho, há um jogo muito bem desenvolvido, no qual o entrevistador representa a visão da cultura dos detentores do poder económico. Para o dealler, a história do Rei Leão transforma-se na história de Hamlet, contando um desenho animado como se de uma tragédia shakespeareana se tratasse. Um pormenor sarcástico muito forte que, efectivamente, surpreendeu pela positiva. De resto, o costume: obrigou Lulu a recitar um excerto de uma peça só para seu gozo pessoal e, para o completar, ela teve de o dizer despida da cintura para cima.
O seu namorado, incumbido de vender drogas em forma de comprimidos, deslumbra-se esteticamente com os frequentadores da discoteca e oferece-as, perdendo assim uma grande soma de dinheiro. O dealler, ao som de um concerto de Bach, que escuta extasiado, mostra ao jovem casal o que lhes pode acontecer se estes não lhe devolverem o dinheiro no prazo de uma semana. É aqui que se adensa a espiral de consumo. Tornam-se operadores de telefonemas eróticos enquanto o seu antigo protector se encontra com um prostituto. A relação tem de ser meramente económica, pois ele não se permite que haja sentimentos a conspurcar a simplicidade da transacção. O jovem prostituto domina a relação porque o homem mais velho não consegue deixar de se envolver com ele afectivamente. Regressa a casa e a espiral de consumo transforma-se rapidamente numa espiral de violência no vórtice da qual o jovem prostituto pede ao homem mais velho que o mate, pois a vida para ele já não faz sentido. O homem faz o que tem a fazer e no final há o reencontro dos três elementos iniciais de regresso à vida descartável que levavam, onde o sexo se assemelha à comida rápida de degustação fácil.
Este espectáculo, para além das falhas técnicas apresentadas pelos actores, ao nível da dicção e pela projecção de voz, pois metade do texto tinha de ser recuperado na imaginação do espectador, uma vez que não se percebia grande parte do que diziam, ao nível consistência dos gestos, pois numa garfada estavam sob o efeito do deririum tremens e na garfada seguinte já estavam bem, apresenta outro tipo de problemas ao nível da consistência da ideia. Segundo o esquema básico do método dialético, existem três elementos: a tese, a antítese e a síntese. A tese é uma afirmação ou situação inicialmente dada. A antítese é uma oposição à tese. Do conflito entre tese e antítese surge a síntese, que é uma situação nova que carrega dentro de si elementos resultantes desse embate. A síntese, então, torna-se uma nova tese, que contrasta com uma nova antítese gerando uma nova síntese, em um processo em cadeia infinito.
Neste espectáculo há a afirmação de uma tese com a vivência inicial dos três elementos. Há a negação dessa tese com o corte no quotidiano, obrigando os dois elementos a procurar um novo sentido. Dos elementos novos resultantes do embate da tese com a antítese não se originou uma síntese, contrastando com a antítese e originando uma nova visão da realidade, uma vez que os protagonistas voltaram a afundar-se no mar de imundice que os caracterizava. Nem se discute a oportunidade de cenas de sexo explícito que obriga o espectáculo a ser para maiores de 18 anos. Não é por esse pormenor que o espectáculo é mais ou menos forte. O espectáculo deixa de ser forte quando o seu conteúdo deixa de ser credível, esvaziando-se de sentido. a história do jovem prostituto, no final, deixa de funcionar porque o espectador deixa de acreditar. E toda uma ideia forte, suportada por um texto hiper realista sobre a sociedade de consumo é destruída pela inconsistência da acção. A tragédia grega funciona porque o espectador se revê na personagem. Não é menos forte por defender que as cenas de crime e de morte se passem fora da cena: o obsceno. É sabido ao longo dos séculos que a capacidade de contar uma cena possibilita um encontro da palavra com o real através da imaginação, que supera o simples olhar. E os gregos contavam essas cenas de uma forma forte, que era capaz de provocar no espectador sentimentos de terror e de piedade. Sentimentos que o levavam a renovar-se e a repensar-se enquanto pessoa. Este espectáculo não conduz a nada. Nem sequer ao esvaziamento. Uma crítica à sociedade de consumo? Porque não A Caverna, de Saramago? Essa sim, uma visão inteligente.

Teatro aquece Inverno no Algarve

Hoje, em Tavira, continua o Teatro no Inverno, promovido pela companhia de Teatro Al-Maserah, com o apoio da autarquia tavirense. Assim, pelas 23 horas, no REF Café TIXA, partilhará com a público a história da bela contadora Sherazade, que pelo poder da palavra conseguiu salvar a sua vida e a de centenas de outras jovens casadoiras. Sexta, dia 30, será a vez do Espectáculo Só, com encenação de Marta Inocentes, da companhia Bruxa Teatro, de Évora, no espaço da Corredoura, às 21h30. No Sábado 31, às 16h30, haverá uma Conversa com Mário Barradas, sobre Descentralização Teatral. Às 21h30 repete o espectáculo Só da Companhia A Bruxa Teatro. No Domingo, às 16h00, o espaço da Corredoura passa o documentário de Margarida Cardoso Era Preciso Fazer as Coisas. O Teatro no Inverno também promove Oficinas de Formação. No fim-de-semana de 31 de Janeiro e 1 de Fevereiro o enfoque será dado à Interpretação, Orientada por Isolda Ruiz Barrios. Partindo da exploração de técnicas de trabalho do actor, trabalhar através de exercícios de improvisação a contracena, o texto dramático, as múltiplas formas e estilos de representação, abrindo assim caminhos criativos para criação da personagem. Os participantes têm oportunidade de experimentar, improvisar, construir pequenas cenas e descobrir grandes momentos.
Por outro lado, no extremo do Barlavento, haverá lugar para se juntarem centenas de amantes da arte dramática, que farão parte do III Fórum Permanente de Teatro de Amadores. Este encontro ocorrerá entre 30 de Janeiro a 1 de Fevereiro de 2009, em Lagos, numa organização da ANTA - Associação Nacional de Teatro de Amadores, em parceria com o Teatro Experimental de Lagos, e com o apoio da autarquia local. Ao longo dos três dias, a organização propõe um conjunto de painéis de formação, espectáculos de teatro e actividades paralelas, bem como um espaço dedicado à divulgação da actividade dos diversos grupos presentes.
Sexta, dia 30 de Janeiro pelas 21h30, os participantes assistirão ao espectáculo do grupo anfitrião (TEL) Auto da Vida e da Morte, de António Aleixo. No dia seguinte os participantes poderão usufruir de diversos painéis, como a Formação de Actores em áreas diferentes que vão desde O Jogo Dramático, à criação do eu, até à Iniciação à Morfo-Psicologia Actoral. Para além da formação de actores existem também formações em Iluminação, em Produção, e em Adereços. No Sábado haverá também lugar para a apresentação de um livro com peças de teatro inspiradas no Algarve, assim como uma tertúlia sobre teatro.
Também em Faro a noite é de Teatro. Dia 30, no Centro de Artes Performativas do Algarve (CAPa) a companhia de teatro Te-Atrito irá estrear uma produção. O Babete Real é um projecto que se baseia no texto homónimo de Raul Malaquias Marques, escritor português contemporâneo, texto esse que mereceu uma menção honrosa no Prémio Garrett de Teatro para a Infância e Juventude em 1988. Com encenação de José Carlos Garcia, director artístico e actor da Companhia de teatro Chapitô, e com larga experiência no ensino pela arte, este espectáculo resulta de uma parceria com a DEVIR / cAPA – Centro de Artes Performativas do Algarve, a DREALG, as Câmaras Municipais de Faro e Lagoa, a ARC Músicos de Faro e o Instituto Português da Juventude – Delegação de Faro. São objectivos deste projecto contribuir para um maior conhecimento e divulgação da dramaturgia portuguesa e para o desenvolvimento da reflexão crítica sobre questões relacionadas com as práticas dos poderes instituídos e seu efeito sobre os cidadãos, a liberdade, a responsabilidade política, a intervenção cívica e a reflexão sobre a própria existência e a sociedade em que vivemos. O espectáculo tem a duração de 55 minutos e nele participam três actores, um dos quais músico. A música não só é tocada ao vivo, como também foi composta propositadamente para este trabalho. À apresentação, segue-se um debate sobre o teatro e a sua prática, sobre os temas atrás referidos e sobre a obra de Raul Malaquias Marques, escritor e jornalista, com a presença do encenador. A simplicidade e a economia de meios (nomeadamente de espaço e de equipamento) presentes neste espectáculo servem também como incentivo ao desenvolvimento da prática do teatro na escola.
Por esta amostra de uma agenda parcial se pode ver que o Teatro no Algarve está a ter outro fôlego. Há vontade, há público. Falta o financiamento que a vontade e o público merecem.

Já não há herois

No dia 24 de Janeiro o teatro das Figuras trouxe a Faro o último trabalho de Beatriz Batarda. De Homem para Homem é o título de um espectáculo encenado por Carlos Aladro, baseado no texto Jacke wie Hose, do dramaturgo alemão Manfred Karge, que por sua vez se inspirou numa história real. É a história de uma sobrevivente. Numa época em que o trabalho escasseava, Ella Gericke, uma jovem mulher, depois de se ver viúva, tenta vencer a penúria através de sucessivos enganos. Assume a identidade do marido morto, trabalhando na condução de uma grua. Põe uma braçadeira nazi para não lhe fazerem perguntas indiscretas, adopta a postura de um guarda num campo de concentração para fugir à inspecção militar, volta à identidade de mulher para não ser acusada de desertora, prostitui-se por um prato de grão, chora copiosamente a morte de um coelho e obriga os prisioneiros a caminharem sem descanso ao longo da sua cela. No final da sua vida descansa em paz, na pele de uma personagem dos seus contos infantis.
A cenografia de Manuel Aires Mateus, arquitecto que também assinou o cenário do espectáculo Turismo Infinito, é imponente, exibindo uma mão gigante, que ocupa grande parte do palco, cujos dedos caem da boca de cena para a plateia, e ao longo da qual a actriz vai evoluindo, no seu ser frágil, perante o poder simbolizado. Ella Gericke apenas um joguete, um ponto minúsculo no meio de uma engrenagem dominante. Os dedos da mão escondem os diversos adereços que a actriz utiliza ao longo do seu desempenho.
O desenho de luz de Nuno Meira desoculta os vários matizes com que a actriz pinta o seu desempenho. São 26 quadros. 26 retratos de uma mulher que usou de tudo para sobreviver.
A música de Manuel Aires Mateus consegue evocar as sensações adequadas ao momento que o público está a viver.
Beatriz Batarda tem o desempenho esperado de uma actriz com a sua experiência. Uma noção de ritmo adequada, uma presença que se impõe pelas sucessivas metamorfoses do corpo. As transmutações da voz, porém, não fazem justiça ao papel que lhe é exigido. Beatriz Batarda prendeu o público num monólogo de 90 minutos. Mas faltou-lhe o génio de Maria João Luis no espectáculo Stabat Mater. Faltou-lhe a força de Ana Leitão no espectáculo Stabat Mater Furiosa. Faltou-lhe a versatilidade de Telma Saião no espectáculo Valsa nº6. Faltou-lhe a poesia de Cláudia Nóvoa no espectáculo Ela uma vez. Monólogos com textos fortes sobre a coragem de mulheres que não aceitaram ser mais um dedo na grande mão que domina. Textos que apontaram mulheres que, a seu modo, foram mais um grão de areia na engrenagem. Mulheres vulgares que se tornaram heroínas. Tal com dizia Fernado Mora Ramos, “Manfred Karge, que trabalhou no Berliner Ensemble, conhece bem a lição brechtiana, a lição contida na famosa A Boa Alma de Setsuan, que demonstra como os bons neste mundo são considerados tolos. E esta peça é isso, uma manobra global de estranhamento no sentido brechtiano. (…) Ella foi uma criatura que amou, foi desejada, foi solidária, que não optou, mas não quis a guerra, que teve de matar, que foi perseguida, que vendeu o corpo, que se meteu debaixo das mantas com um empresário, que traficou… É a história de uma sobrevivente num mundo que impede a vida, a história de uma vida solitária e clandestina que se multiplicou em identidades forjadas ao sabor dos condicionamentos.” Mas se esta é uma encenação sobre a dignidade humana, faz parte de um estranhamento não só brechtiano interrogarmo-nos como o próprio encenador o fez quando coloca em questão o seguinte dilema: “Às vezes pergunto- me se o autor entende que é melhor morrer dignamente do que viver indignamente”. Esta é a história de uma mulher que não tem a mínima piedade pela pessoa humana. Mantém os seres humanos sob um penoso cárcere e tortura e liberta coelhos da sua prisão. É a história dos que não merecem ficar na história. Para quê então elevá-la à condição de grande dilema universal?

O bobo, o ministro e o Rei


Foi no dia 30 de Janeiro que a companhia de teatro Te-Atrito estreou a sua última produção. Tratou-se de um espectáculo baseado no texto de Raul Malaquias Marques Um bobo para o Reino e encenado pelo director artístico do Chapitô, José Carlos Garcia.
O texto é uma fábula irónica que discute a legitimidade do poder por governantes que perderam as competências essenciais para o exercer. A perda da voz é a alegoria das sucessivas perdas de capacidades fundamentais para o exercício de uma boa governação. O rei perdeu a voz e entregou o governo do seu país ao bobo. Este aceitou o pesado fardo da governação a contra gosto mantendo, contudo, uma relação de lealdade para com o seu soberano. O Rei tem a clareza de espírito para perceber que a sua incapacidade o impede de governar e foge do seu país, juntando-se a uma trupe de saltimbancos onde imita vozes de animais. O bobo continua a manter o espírito crítico ao serviço da governação e o seu ministro é elevado à categoria de bobo, porém, sem conseguir exercer a sua função de forma correcta. É um bobo sem piada. Teve de ser despromovido e continuar a ser ministro.
Esta história é transmitida através de uma economia de meios que contribui para o ritmo do espectáculo. Os actores Pedro Monteiro, Rita Neves e Igor Martins desdobram-se em várias personagens que a encenação simbólica de José Carlos Garcia redescobre através do adereço, do pormenor no figurino, do suporte musical. Assim, os três actores são indiferenciadamente as empregadas de limpeza, o ministro, o bobo, o rei, o médico. A música assume-se como uma personagem. O babete é o símbolo do poder e passa do pescoço do rei para o do bobo, quando este assume o poder. Mas o babete é também o toucado de uma das empregadas da limpeza. Um carrinho de transporte de bagagem é palanque, veículo de transporte do soberano, mesa de operações, trono real. A operação em que o médico verifica as cordas vocais do rei é hilariante, pois retira da garganta do soberano um molho de cordas embaraçadas ao mesmo tempo que se ouvem uns ruídos distorcidos de guitarra eléctrica. Veredicto: as cordas vocais do soberano estão desafinadas.
Os sons que preenchem o espectáculo, concebidos e transmitidos pelo actor Igor Martins são também elementos que contribuem para penetrar no imaginário do espectador. As vozes do povo chamando pelo Rei, as diferentes sonoridades da guitarra eléctrica, os guizos do bobo são pormenores relevantes para a assunção das várias mensagens que o texto quer transmitir. A consciência do Rei quando percebe que chegou a sua altura de abdicar do trono, entregando-o à pessoa mais arguta do reino: o bobo, que através da observação atenta da realidade aponta os pormenores a serem modificados. O Rei, personagem apolínea, porque racional, coloca sobre os ombros de Diónisos o pesado fardo da ordem. O bobo passa a Rei e o Rei segue, livremente, com a sua vida divertindo as pessoas através dos sons estranhos que solta da sua garganta. Depois dos sons de guitarra eléctrica passou a imitar animais. A contenção no gesto de Rita Neves quando imita o gato, o cão, o porco, é equilibrada, anunciando a parte que faz perceber o todo.
No final o ministro que é especialista no protocolo e dá sentenças com pronúncia francesa só consegue desempenhar o papel de ministro, pois não tem o espírito suficientemente arguto para ser engraçado. Só tem perfil para ministro.
O texto foi adaptado à realidade dos três actores, preservando-se contudo a sua mensagem original. É importante saber acabar e saber o tempo exacto para o fazer. Delegar o poder quando as competências se nos falham enquanto não lesamos a coisa pública com a nossa incapacidade de discernimento.
Este é um projecto de educação pela arte que convida a reflectir sobre valores como o respeito pelo serviço do poder, sobre a cidadania, sobre o exercício da governação. Um trabalho que convida os jovens a voltarem ao teatro e os mais velhos a descobrirem em si a capacidade de brincar. Um trabalho de puro prazer que obriga a pensar com seriedade nos valores ético-políticos a partir dos quais se constrói a sociedade. Este espectáculo resulta de uma parceria com a DEVIR / cAPA – Centro de Artes Performativas do Algarve, a DREALG, as Câmaras Municipais de Faro e Lagoa, a ARC Músicos de Faro e o Instituto Português da Juventude – Delegação de Faro.

O Tempo dos demiurgos


Ponto, linha, plano. Poderia ser o título de uma obra de Kandinski mas aplica-se, neste caso, ao trabalho de um jovem português que se dedicou ao novo circo e à técnica do mastro chinês. Num espectáculo de 40 minutos João Paulo Santos faz o espectador passar por estas três dimensões, assumindo o risco de trabalhar sem rede. Um tempo que corre mais devagar. O tempo do criador de universos.
João Paulo Santos tem um olhar vivo que fala, transmitindo toda a emoção e força de viver. Acrobata em fulgurante ascensão, João Paulo Santos iniciou a formação em Artes Circenses no Chapitô, em Lisboa. Aos 20 anos rumou para França onde se formou ao nível superior na consagrada escola francesa Centre Nacional des Arts du Cirque, em Châlons-en-Champagne. Com a sua companhia “O Último Momento”, criou “Peut-être” com Guillaume Dutrieux, que foi seleccionado para Jeunes Talents Cirque em 2004. Contigo é uma obra criada por dois homens que gostam de inventar novas linguagens para o corpo. João Paulo Santos convidou Rui Horta para entrar nesta aventura de criação, o que constituiu um desafio para os dois. João Paulo teve de se libertar da rigidez da acrobacia, presente na arte do mastro chinês. Rui Horta é o homem que, desde cedo, nos habituámos a ver reinventando a dança contemporânea. Juntos, segundo João Paulo Santos, criaram um espectáculo assemelhando-se a duas crianças a construir um castelo. A música, admirável, foi criada para este espectáculo por Victor Joaquim e Tiago Cerqueira e o figurino esteve a cargo de Pedro Pereira dos Santos.
No espectáculo Contigo há uma dimensão onírica que advém da noção de tempo que o acrobata desenvolve. Há um sentido de alteridade no qual se brinca com o plano vertical, impossível de alcançar para a maior parte dos espectadores. João Paulo observa o mastro, salta e agarra-se à linha vertical, para logo a seguir se separar dela, como se de um jogo de sedução se tratasse. Parte para uma distância maior e de novo se aproxima de um salto do objecto desejado, abraçando-o. Mais uma vez se separa, desta vez para uma distância maior. E o salto é mais convicto, carregado de uma vontade que o faz abraçar-se com mais força. E finalmente desenvolver um diálogo mais próximo com o plano vertical.
João Paulo sobe pelo mastro com uma leveza e uma subtileza desconcertantes. Faz-nos pensar que é fácil o desafio vertical. No entanto, quando chega ao topo, mostra que a queda dos graves é um facto real e que a gravidade é uma lei da física. Quando atira uma pedra para o chão e ela cai ruidosamente o espectador apercebe-se que só ao acrobata é dado o poder de desafiar as leis da física. Só no instante em que a pedra cai, o espectador se confronta com o perigo de se trabalhar sem rede.
João Paulo Santos articula alguns objectos que entram em diálogo com o mastro chinês. A cadeira transforma-se em mochila, transportada até ao topo do mastro, para aí se deter qual posto de vigia e repouso do guerreiro. Para além da cadeira João Paulo leva consigo uma vara que transforma em remo, em monóculo, em pau de chuva, em vara de equilibrista. Os objectos jogam um jogo de diferentes identidades, ajudando o acrobata a assumir também várias personalidades. Assim, João Paulo Santos é um explorador que assume o risco da aventura, desocultando várias faces do humano. Ele é, a um tempo, Galileu estudando a queda dos graves, o Principezinho, explorando o universo do seu pequeno planeta, o aventureiro pronto a gritar “Terra à vista!” depois da proeza de cruzar o oceano. E é apenas a criança que reinventa o sentido dos objectos, alterando a sua essência dentro de um jogo de sentidos e significados.
Com a sua vara, João Paulo Santos cria um elo entre o Céu e a Terra, os dois arquétipos primordiais que unidos, conceberam a multiplicidade do real. Recuando aos mitos mais antigos que criam o imaginário colectivo da humanidade, Mircea Eliade conta que numa tribo nómada da Austrália, os Achilpa, os homens acreditavam que o ser divino Numbakula tinha aberto um buraco no céu, descido por uma vara até à Terra e, depois de ter criado a vida e toda a multiplicidade do real, ungiu a vara com o seu sangue, subiu por ela e desapareceu num buraco no céu. A partir daí a tribo passou a olhar a vara como um objecto sagrado que unia os dois mundos. Neste espectáculo João Paulo Santos devolveu ao espectador o olhar inocente do mito cosmogónico. Em contigo nós fomos a tribo dos Achilpa que assistiu maravilhada à criação do mundo pelo ser divino Numbakula. Nos 40 minutos de terror sagrado o público sentiu o poder do objecto sagrado, dominado por um ser que, não sendo sagrado, tem o dom de chegar aos nossos corações.
João Paulo Santos tem levado este espectáculo a todos os continentes. E, com uma linguagem que ultrapassa a palavra, tem conseguido chegar à emoção daqueles que assistem à verdade e ao risco deste acrobata. João Paulo brinca com as várias potencialidades deste jogo do mastro. Agarra-se, desliza, enrola-se, deixa-se cair. Neste espectáculo a destreza física foi articulada com a leveza de uma coreografia concebida para o espaço. Um espectáculo em que se sustém a respiração e se suspira de alívio, reconciliando o ser consigo mesmo.
Estreado no Festival de Avignon em 2006, onde foi muito bem acolhida pelo público e programadores internacionais, o espectáculo assume o perigo. É que em palco não há rede de segurança nem fios de metal presos à cintura, adivinhando-se ocasiões de fazer suster a respiração. É como se o tempo no topo de tudo corresse mais devagar. O tempo do demiurgo.
O Teatro Municipal de Portimão está a preparar uma residência artística com João Paulo Santos e apresta-se a ser um dos primeiros teatros a programar uma rede internacional de Novo Circo.