Sunday, September 6, 2009

A descentralização cultural


Carolina Martins, Carolina Galvão, Carolina Santos, Bárbara Catarino, Maria Coutinho e Rita Martins são seis jovens que, desde Outubro experimentaram dar os primeiros passo numa oficina de teatro coordenada por Pedro Monteiro. Nessa formação, que as ocupava duas horas por semana, criaram um argumento de uma peça que foi tomando forma ao longo dos vários meses de trabalho. As improvisações criadas nessa oficina de formação permitiram que as jovens formandas, todas com 14 anos, descobrissem as diferentes formas de utilizarem a voz, o corpo, a interacção entre elas. Partindo das próprias vivências e de figuras lendárias conhecidas do universo infantil o grupo Teatro Vilão criaram a história de um grupo de ratos que escapa por pouco ao destino dos laboratórios e das experiências científicas. Ratices, foi o nome deste pequeno trabalho que percorreu três freguesias onde é difícil fazer chegar o teatro.
Ao depararem-se com o pequeno espaço na aldeia de Cachopo, onde iriam actuar, as jovens actrizes julgaram ser uma missão quase impossível fazer o seu trabalho num espaço exíguo. Mas depois de alguma adaptação feita pelo formador Pedro Monteiro, logo perceberam que o teatro pode acontecer com a ajuda de três projectores, do seu corpo e da sua voz. As cerca de 20 pessoas que estavam na assistência deliciaram-se com as aventuras dos ratinhos, do gato e da sua diabólica dona Camila. As jovens actrizes, para além de saberem jogar com as qualidades dos animais que imitavam, tinham um domínio do espaço e do objecto imaginário bastante convincente. A voz, bem colocada, saia sem medo de ser usada e toda a movimentação pressupunha um intenso trabalho de corpo por detrás. Os figurinos eram neutros, não havia bastidores, mas o público conseguia perceber quando é que as actrizes estavam em cena e fora de cena, qual a personagem que interpretavam e qual o objecto que tinham na mão. A actriz que interpretava o ratinho cego dava uma imagem muito nítida da sua bengala, sem que esta existisse fisicamente e todas as outras conseguiam pegar nos objectos, dando-lhes a respectiva forma, sem que eles estivessem de facto nas suas mãos. E o público via uma garrafa, um frasco, um caldeirão.
A cena em que o ratinho cego se escapa do hipnotismo e apela à ajuda das bruxas é hilariante e tem força dramática. Naquela cena há uma interacção entre todas as actrizes que transformam o corpo, a voz e a movimentação em cena num momento teatral muito especial. As luzes baixam e as bruxas evocam as suas forças para poderem libertar os ratinhos que estão no laboratório, prontos para serem cobaias nas experiências científicas. E a movimentação delas é tal que evoca um concílio de feiticeiras de uma forma verosímil.
O final, como é costume neste tipo de processo, foi um pouco abrupto, sucumbindo a cruel Camila ao som de música Pop, transformada em queijo, devorada pelos ratos que, por sua vez, são finalmente presos na armadilha do gato, que deixa de ser falhado. A história aponta para uma visão, segundo a qual não existem vencedores. Todos somos de alguma forma parte de uma longa cadeia alimentar, real ou metafórica e, algum dia, sem estarmos à espera, seremos engolidos pelo sistema.
O saldo foi positivo. Os sorrisos voltaram às faces dos habitantes de Cachopo e, abrindo a agenda do IPJ temos a sensação de que recuámos 10 anos, ao tempo em que aquela Instituição era de facto uma casa viva, que apoiava a Juventude e as Associações.

A tragédia e o entretenimento


Tangos e Tragédias é um divertimento protagonizado por Nico Nicolaewsky e Hique Gomez, dois músicos que, para além de tocarem com algum virtuosismo, sabem conduzir o público durante cerca de duas horas. O espectáculo, que está em cena há 21 aos, começa com o violinista a recriar o tema de Chaplin inserido no filme Tempos Modernos, omitido no programa dentre os compositores que inspiraram o espectáculo. Na folha de sala constam os nomes de compositores brasileiros como Vicente Celestino, Alvarenga & Ranchinho, ou Cláudio Levitan. Chaplin, que foi utilizado pelo violinista mais do que uma vez, não consta nesta homenagem. Nem o compositor do tema White Chistmas, de Irving Berlin, que ocupou quase metade do espectáculo.
Os dois músicos inventaram um país que lhes permitisse ter um comportamento ligeiramente excêntrico para intrigar o público. Sbornia do Sul, dominado pelo anarquismo hiperbólico, foi o país criado para que pudessem apresentar todas as suas fantasias musicais. Começaram por falar numa língua inventada, segundo o mote de Chaplin, quando teve de inventar a letra na sua mítica canção dos Tempos Modernos. O público ia acompanhando as marcações e a comunicação dos músicos, até que se começaram a fazer entender em português. Ouvimos então a história de amores impossíveis que se tornaram trágicos e, para ilustrar melhor a história, começaram a pedir a ajuda do público. O público estava hesitante mas os artistas insistiam. As vítimas mais acessíveis eram as da primeira fila, que se recusaram a colaborar, dizendo mesmo, que se não queriam subir ao palco, estavam no seu direito. Houve mesmo uma simulação de uma vingança através de uma facada, que a vítima inocente da primeira fila não quis socorrer. E ao longo do espectáculo o actor deixava escapar um “Obrigadinho!” ou então, à senhora que estava ao lado perguntava: “Ele é sempre assim tão cooperante lá em casa? Espero que tenha uma melhor sorte!”.
Houve momentos neste espectáculo em que os músicos tocaram e tocaram muito bem. Frente a um cortinado drapeado, com uma iluminação bonita, aqueles momentos sugeriam ao público que iria ter um espectáculo de música interessante e bem conseguido. No momento seguinte, sentiam necessidade de contar mais uma história e de envolver o público, mesmo que este não estivesse muito cooperante. Decidiram começar pelo “Encore”, que era, segundo eles, a parte do espectáculo mais interessante. Depois orquestravam os aplausos, coordenando a plateia a ovacionar com mais ou menos intensidade. Por fim, começaram a tocar o tema de Natal White Christmas, pedindo a ajuda do público, uma vez que toda a gente conhecia aquela melodia. O público entoava o tema com vogais de acordo com as instruções do músico. Um dedo apontado era i, os dedos formando um círculo era um o, a um gesto largo com a mão, o público tinha de dizer Blém. Com esta orquestração conseguiu-se uns vinte minutos de espectáculo. No final os músicos saíram e o público saiu atrás. Os músicos continuaram a tocar no foyer do teatro com o público todo à sua volta. O tema White Christmas continuou mas desta vez a letra era “lá em cima estava o tiroliroliro…”: O tema tradicional da chacota sobre as origens rurais dos portugueses. E assim se passaram duas horas de espectáculo das quais, uma foi gasta a orquestrar um público que se via estar ali mais para apreciar um espectáculo de música do que para cantar ou subir ao palco e dançar com a cabeça.
Como José Luis Louro disse inúmeras vezes aos seus alunos:” Como eu odeio a palavra entretenimento! O Teatro não deve ser para entreter! Tem de ter uma função social!” Guardo em mim essas palavras sempre que vou assistir a um espectáculo. E este espectáculo, apesar de se chamar tangos e tragédias, de tangos, não tinha nada. De tragédia, tinha umas historietas de amores desavindos. E de estruturante, pouco tinha. Divertido? Sim, para grande parte do público. Fez esquecer o stress da vida quotidiana? Tanto quanto um filme para passar o tempo. Estruturante, como o teatro deve ser? Não, de todo. Vazio de conteúdo. Então, mas se eram músicos, e bons, porque razão não tocaram? Porque razão insistiram com o público para subir ao palco expor-se em situações desconfortáveis? Tantas, tantas e tantas comédias, em que o público se diverte satisfeito ao mesmo tempo que aprende alguma coisa! Foi importante recordar que, em Portugal, a seguir a uma seta amarela que diz desvio, nunca mais se encontra o caminho certo! E porquê? Porque José Pedro Gomes, que é um mestre na arte de fazer rir, no espectáculo Coçar onde é Preciso, , diverte o público ao mesmo tempo que faz uma crítica social profunda, fina e acutilante. Aí sim. Saímos divertidos, reconfortados, mais ricos, e com vontade de escrever para as entidades responsáveis no sentido de colocarem todas as placas a que temos direito para não nos perdermos. E mudar o que está errado. É este o sentido do grande mestre brasileiro que escreveu a mensagem do dia Internacional do Teatro, Augusto Boal.

De Antígona a Narciso


O que têm de ter os textos de hoje para comoverem o espectador comum? Com o que é que ainda nos deixamos impressionar? Se fizermos uma pesquisa até ao teatro antigo podemos verificar que os grandes temas que impressionavam os homens daqueles tempos ainda nos impressionam hoje em dia. E que Antígona, Electra, Penélope, Édipo, Jasão, Medeia, são heróis nos quais nos reconhecemos, sofrendo com as suas histórias as vicissitudes das nossas vidas. Hoje os dramas são outros. Os grandes dramas trágicos conseguem permanecer actuais através dos tempos mas a contemporaneidade trouxe consigo outras problemáticas criadas pela chamada “era do vazio”. A negação adoptada de todos os valores que se assumiram como arquétipos da sociedade ocidental é uma das características da era actual. No entanto, essa negação não tem como objectivo a criação de um nova ordem ética que se estabeleceria a partir das cinzas da ordem vigente, mas uma ordem perfeitamente amoral perante os valores estabelecidos. Segundo Lipovetsky, Narciso é a grande figura mitológica do tempo presente. Aliás, viver no presente, apenas no presente e não já em função do passado e do futuro, esta perda de sentido de continuidade histórica caracteriza a sociedade narcísica, na qual vivemos para nós próprios. Longe do niilismo trágico, o narcisismo contemporâneo afirma-se numa apatia frívola face à realidade que o rodeia. O narcisismo abole o trágico e surge como uma nova forma que se instala a despeito de qualquer consciência humanista.
A Comuna escolheu um texto de Ludmilla Razoumovskaia para reflectir sobre este estado quase apocalíptico a que os valores humanistas chegaram. Querida Professora é um texto que nos fala de idealista e de narcisos. De altruístas e de egoístas. De fortes que se transformam em fracos e de fracos que se mostram mortes sabendo que o não são.
Interpretado por Hugo Franco, Marco Paiva, Maria Ana Filipe, Tânia Alves e Rui Neto, o espectáculo Querida Professora abala as estruturas de qualquer espectador, especialmente dos que vivem por dentro o sistema de ensino.
A história é simples: quatro alunos finalistas do liceu visitam a sua professora de matemática, Helena Serguéiévna, uma mulher solitária, que se dedicou ao ensino de alma e coração. É o aniversário de helena e ela está a comemorá-lo sozinha, em sua casa. Os alunos chegam com champanhe, um serviço de copos de cristal, um ramo de flores e os seus melhores sorrisos. Na encenação de João Mota as primeiras falas dos quatro estudantes são proferidas como se de um coro grego se tratasse. Com a gravidade, a sintonia e a neutralidade que lhes são características. Há um prenúncio de tragédia nesta apresentação. A professora fica tocada com este gesto inesperado por parte dos seus alunos e logo se prontifica a preparar-lhes uma pequena ceia. Bebem o champanhe nos copos com as suas iniciais gravadas e dançam ao som dos poucos discos que a professora possui. A partir deste momento, podemos juntar-nos ao coro de Anouilh e dizer: “Ora bem, a mola está tensa, tudo se desenrolará por si. É esta, afinal, a comodidade da tragédia.” E, de facto, o turbilhão de acontecimentos que se sucede é violento e cruel. Os alunos, a despeito de toda a entrega feita pela sua professora, ao longo dos vários anos em que frequentaram o liceu, tentaram fazer com ela a negociação mais suja que se pode pensar. A troco daquela pequena festa ela entregar-lhes-ia a chave do cofre onde estavam guardados os seus exames de matemática para que os pudessem trocar por outros já correctamente preenchidos. Helena resiste. Fica estupefacta de horror. Então, um a um, revelam-lhe a sua verdadeira natureza. O bruto que deve pouco à inteligência e que precisa de passar no exame para poder vir a ser guarda-florestal, a rapariga calculista e fria que está a guardar a sua virgindade para a ocasião que lhe renderá mais créditos, o rapaz fraco que irá herdar a cátedra do seu pai, mas que precisa de passar no exame de matemática e, por fim, o mais perigoso, o frio diplomata que está a estudar para um dia ser político. Todos eles, de uma maneira ou de outra, tecem argumentos para que a chave do cofre lhes seja entregue. O telefone é cortado com violência, a casa é revistada, a professora é insultada. Chamam-lhe Antígona. E idealista. Os jogos de chantagem e violência psicológica sucedem-se e no fim todos perdem. A tragédia cumpre-se porque o público consegue sentir um abalo violento com o desenrolar e o final desta história contemporânea. Porque, mais que verosimilhança, há uma cruel verdade em todo o texto que toma corpo de forma violenta através destes cinco actores. Mais uma vez A Comuna apresentando grandes textos e fazendo jus à tradição, que é a de ser uma companhia de referência que marca os espectadores promovendo espectáculos de excelência. Depois da estreia em Portalegre está marcado o regresso à Comuna dia 20 de Maio. Mas poder assistir a este espectáculo num dos palcos da região seria da mais elementar justiça que os algarvios poderiam esperar dos seus programadores. Mais uma vez, parabéns à Comuna, desta vez por ter completado em Abril 35 anos de intensa actividade cultural e de formação de públicos. E ao seu grande mentor, o encenador João Mota.

A síndrome de Peter Pan


Foi no dia 30 de Maio que o Serviço Educativo do Teatro das Figuras abriu as portas do grande auditório para o espectáculo Peter Pan na Terra das Artes Perdidas. Este espectáculo foi uma criação da associação Oficina Divertida e do Conservatório de Música de Olhão e a bilheteira reverteu a favor da Instituição Particular de Serviço Social de Tavira Uma Porta Amiga.
As coreografias foram da responsabilidade da professora Anabela Silva do Conservatório de Olhão e a composição musical de Anabela Silva, também do Conservatório de Olhão e de Ricardo Carvalho, da Oficina Divertida.
O espectáculo começa com uma sombra projectada na parede. A sombra de Peter Pan, interpretada pelo actor Rui Cabrita, foge da personagem que guarda os meninos que não querem crescer na ilha dos meninos perdidos. Rui cabrita conta o início da história e diz que, para além da terra dos meninos perdidos, existe uma terra das artes perdidas que só as crianças podem encontrar. Convidou o auditório para uma busca a essa terra de aventuras e o pano de boca abriu-se, mostrando uma projecção da janela do quarto de Wendy. Peter Pan chega com a sua atitude de rapaz irreverente e, logo a seguir, a sua sombra perdida. Há uma coreografia com uma classe de meninas a dançar, brincando com a sombra de Peter Pan, há pintores que entram ao colo dos seus pais e que vão pintar as telas do quarto, abertas à imaginação das suas cores, há pequenos músicos percussionistas, pianistas, bebés que entram ao colo das suas mães num tributo ao teatro, crianças carregando letras, tentando articulá-las num bailado de luz e cor. As artes foram homenageadas pelas gentes de palmo e meio através do imaginário de Peter Pan. O público do auditório vibrou e este poderia ter sido um bom espectáculo se parte dos adultos que estavam na assistência não sofressem, também eles da síndrome de Peter Pan. Peter Pan foi para a Terra dos Meninos Perdidos porque se recusava a crescer. Não no bom sentido, mas na recusa infantil e obstinada de obedecer a regras. Ele e os outros meninos perdidos divertiam-se comendo com as mãos, proferindo palavras proibidas, não obedecendo a horas para dormir. Há psicólogos que etiquetam a recusa de alguns homens em assumirem-se como adultos responsáveis como a síndrome de Peter Pan que, em últim instância, tem a ver com a convivência pacífica com um mundo de regras que promove a sã partilha de normas de conduta. No espectáculo Peter Pan houve, do princípio ao fim, um claro desrespeito pelas regras de funcionamento de um teatro, o que incomodou sobremaneira diversos espectadores. Apesar das portas se terem fechado depois do sinal sonoro de início de espectáculo ter soado duas vezes os espectadores continuaram permanentemente a entrar, incomodando quem já se encontrava instalado a tentar concentrar-se no espectáculo. Pelas normas do funcionamento do teatro das figuras sabe-se que, em qualquer espectáculo, depois das portas fecharem, os espectadores que chegam atrasados não podem entrar. Assiste-se a essa situação amiúde ao longo da programação. Será que estes actores de palmo e meio merecem menos respeito do que os actores consagrados que pisam o mesmo palco? E o público que paga tanto para ver um actor consagrado como para ver um espectáculo que homenageia as artes, não tem o mesmo direito à concentração que lhe é devida em ambos os casos? E quando os pais não se sabem comportar, não é dever destas instituições ao serviço da cultura promover a sua educação? Já é tempo destas estruturas deixarem o comportamento provinciano e assumirem-se como estruturas de notoriedade nacional, como afirmou o presidente da câmara de Faro no seu discurso inaugural do pequeno auditório. Quando um representante autárquico diz que “tem procurado que o espaço do Teatro das Figuras tenha uma dimensão nacional e não apenas uma dimensão de província, com parcerias com o Centro Cultural de Belém, com a Casa da Música, com a Gulbenkian´”, é necessário que essa convicção passe das palavras aos actos e se aja em conformidade. Quando se fala em mais de 30 mil crianças e jovens que tiveram a oportunidade de ter o seu primeiro contacto com a oferta cultural, é necessário que o trabalho se faça por inteiro e que percebam o que é respeitar o público e o actor que se desconcentra quando está a actuar. No caso da educação de públicos, agir em conformidade é também começar pelas pequenas coisas, como a de não permitir que o público deseducado importune o público que está a apreciar um espectáculo. Seja ele com a Eunice Muñoz ou com crianças também dão, genuinamente, o melhor de si em cima do palco.

A alma está no cérebro

Falar das patologias que se encerram, inusitadamente, dentro de cada um de nós é, por um lado um desafio e, por outro, um grande risco. A estrutura A Bruxa Teatro agarrou esse desafio e arriscou penetrar na mente doente de um coleccionador de borboletas que começa a sentir uma atracção fora do vulgar por uma rapariga. O texto é de John Fowles e a adaptação dramatúrgica de Mark Healey. Figueira Cid assinou a encenação deste texto a partir da tradução de António Henrique Conde. O tema é desconfortável, tanto mais que, ao longo do desenvolvimento do texto, pelo seu realismo brutal, apercebemo-nos de que a possibilidade daquele caso ocorrer na nossa vida não é um absurdo.
As duas horas sem intervalo passaram num ápice. Num cenário que aponta para um desequilíbrio instalado, Hugo Moreira interpreta o psicopata Frederick Clegg, pacato funcionário público, coleccionador de borboletas, que acaba de ganhar um prémio de lotaria, tornando-se milionário. Marta Inocentes é Miranda, a jovem estudante de Belas-Artes que provocou um fascínio tal no coleccionador, que acabou por ser raptada por Clegg e encarcerada numa cave.
Clegg apetrechou a cave com mobiliário confortável, comprou-lhe livros, roupas de acordo com as cores preferidas de Miranda, e até improvisou um pequeno recanto para a sua higiene. Fartou-se de gastar dinheiro com aquelas remodelações. No andar de cima a sua vida ia-se desenrolando com a normalidade aparente de um coleccionador de borboletas. A decoração da sala, de gosto duvidoso, contrastava com a sobriedade que tinha imposto à cave. Na cave a cor crua dominava perante as sobras de papelão dos caixotes reciclados em mobiliário. Em ambos os mundos o desequilíbrio é apontado pela cenografia que cortou as paredes em oblíquo. Tudo está a afastar-se do seu ponto de equilíbrio, desde o cenário até às próprias emoções e relações entre as personagens.
O espectáculo começa com a partilha do olhar do psicopata sobre a sua vítima. Miranda é seguida e filmada sem se aperceber. Ele encanta-se com o seu ar despreocupado, com a sua jovialidade, com o seu sorriso incomparável. A sua mente de coleccionador leva-o a querer apossar-se daquele ser humano, único no mundo. Para além de exemplares raros de borboletas, começa a sonhar em possuir aquela mulher. Para caçar uma borboleta, tem de se estudar o seu habitat, introduzir-se no seu meio dissimuladamente e atacar quando ela menos está à espera. No caso de Miranda, Clegg estudou meses a fio as suas rotinas, os seus hábitos, filmou-a discretamente e, quando teve condições para o fazer, caçou-a numa armadilha. Um pouco de clorofórmio na escuridão de uma rua e Miranda estava enfim nos seus braços, para viver na cave que ele, amorosamente lhe tinha preparado. Mais uma borboleta? Não. Uma mulher única que ele amava e não queria matar para a poder possuir. Não a queria exibir num catálogo, queria sentir a sua presença no fundo da sua casa. Um tesouro enterrado dentro das suas paredes. Um sentimento de posse que não tem a ver com um desejo erótico mas sim com um prazer estético idêntico ao que se obtém quando se consegue adquirir uma obra de arte.
Miranda acorda numa cave com um estranho ao lado e sufocada pelo efeito do clorofórmio. Habituada a viver segundo as suas regras, de forma hedonista, tenta explicar ao seu sequestrador que o facto dele a manter prisioneira é motivo para ela nunca chegar a pensar sequer em amá-lo. Ela tenta que Frederick entenda que não é como uma das suas borboletas, que estão mortas para que ele as possa apreciar. Mas Frederick não entende esse discurso. Para ele, Miranda não tem que se queixar. Ela respeita-a. Não lhe toca porque isso seria incorrecto. Alimenta-a, compra-lhe livros, discos, tudo o que ela quer. Leva-lhe chocolates, flores, até lhe encheu o guarda-fatos com roupas que sabia serem o seu género. Ela não tem motivos para se sentir como as borboletas que estão mortas. Clegg quer Miranda viva, apesar de ignorar que a está a matar aos poucos por dentro. Miranda tenta chegar a um acordo com Clegg: Ela permanece naquela cave mas ele irá libertá-la dentro de 2 meses. Clegg aceita o compromisso sabendo, de antemão, que não o cumprirá. Miranda também finge acreditar que o acordo será cumprido e faz o possível por manter a lucidez na cave escura com a escrita regular de um diário e o registo de um calendário na parede. Clegg visita-a regularmente para lhe dar as refeições e fazer a manutenção da higiene naquele aposento. Miranda tenta enganá-lo para fugir durante uma distracção. Em vão, pois a mente perversa de Clegg pensou em todos os pormenores. E a brilhante estudante de belas-artes, que amava a vida e o ar puro, vê-se enclausurada numa cave sem poder ver a luz do sol, sem poder viver a vida e as paixões que a fazem ser única e rara. Por diversas vezes faz notar a Clegg que ele não pertence ao mesmo nível cultural que ela domina. Ela emenda a sua maneira de falar, de servir o chá, faz-lhe ver que os livros que lhe comprou não são os adequados, apesar de caros. Encomenda-lhe livros sobre pintores contemporâneos, como Mondrian, e música de Bach. Um cavalete para pintar. Porque fotografar mata a imagem. Pintar faz com que a coisa permaneça viva. E Clegg fotografa-a incessantemente. Miranda fá-lo sentir-se prisioneiro do seu próprio percurso, de ter crescido num meio carenciado e discplicente. Fá-lo sentir culpado por ter ganho a lotaria e não saber fazer nada de construtivo com esse dinheiro. A sua arrogância intelectual cega-a ao ponto de julgar que Clegg se deixará seduzir pelo seu corpo. No dia anterior à sua libertação, não acreditando que Frederick irá cumprir o prometido, Miranda oferece-se ao seu raptor, acto que ele considera repugnante. A partir daquele momento Miranda deixa de ser a rapariga única para ser mais uma rapariga vulgar, sem nada que a torne o objecto raro que se deve manter escondido. Miranda percebe que já não tem salvação e a atitude de Clegg muda radicalmente. Não se aproveita do corpo de Miranda, mas humilha-a e submete-a a um terror psicológico que a leva a sucumbir. Mais do que a pneumonia, foi a falta de esperança que matou Miranda. Marta Inocentes interpretou uma Miranda com a veracidade que a personagem requer. Com a força de viver que se anuncia ao longo de todo o texto, com a revolta, com a sobranceria, com a inteligência de uma estudante brilhante que está a fazer o seu curso porque teve direito a uma bolsa de mérito. Hugo Moreira, um pouco titubeante ao princípio, conseguiu recuperar a personagem a meio do espectáculo, tornando-se no perverso coleccionador. De borboletas e de jovens raparigas, pois, depois de ter perdido o exemplar único, já não lhe interessa a qualidade do que irá coleccionar. Irá procurá-las entre os extractos mais baixos da sociedade, para não se sentir inferior e, quiçá, sentirem-se agradecidas pela oportunidade que ele lhes dá de poderem viver uma vida em função do deslumbramento estético de alguém.
Tal como uma boneca sem rosto enclausurada numa redoma, Miranda viu-se privada de vida. O seu sorriso único foi substituído por uma réplica que será sempre imperfeita. Se o sequestro de Miranda teve como objectivo uma admiração que ia para lá do físico, depois da sua morte Clegg transforma-se no verdadeiro coleccionador. À procura do objecto raro que já não existe. Um espectáculo raro, com uma beleza perturbante, que deixa em suspenso a patologia que pode existir no mais pacato cidadão. Um espectáculo para ver e pensar.

Friday, April 10, 2009

Brecht Revisitado

No dia 3 de Abril o Teatro Municipal de Portimão levou à cena o espectáculo A Mãe, reescrito por Bertolt Brecht a partir do texto de Maximo Gorki. Gonçalo Amorim encenou o espectáculo, recriando o espírito de ruptura que Brecht operou em 1932. A Mãe conta a história de uma viúva cujo filho é operário que tenta esclarecer os seus companheiros distribuindo panfletos clandestinamente. O contexto histórico reporta-se ao período que antecede da revolução russa. Os operários reuniam-se em segredo e a sua luta era a de preservar o magro salário que o patrão tinha acordado. Uma história datada do princípio do séc. XX, apresentada em 1932 e, contudo, actual no séc. XXI. Em Portugal o texto de Brecht foi encenado pela Comuna há mais de 30 anos. Era o tempo de celebrar vitórias lembrando tempos que não se queria que voltassem. Hoje é importante mostrar que as vitórias de outrora estão a ser derrotadas pouco a pouco.
O espectáculo foi interpretado por 10 actores: Bruno Bravo, Carla Galvão, Carla Maciel, Carloto Cotta, David Pereira Bastos, Mónica Garnel, Paula Diogo, Pedro Carmo, Raquel Castro e Romeu Costa. Contou com música de Hanns Eisler tocada ao vivo por João Paulo Esteves da Silva. Neste espectáculo o espectador consegue entrar dentro da linha teatral de Brecht e aperceber-se do contexto político pelo qual aqueles operários e camponeses passaram durante aquele período crítico. Esses homens e mulheres vulgares foram a matéria-prima de onde extraiu o sentido épico, universal da vida. Brecht considerava essencial o desaparecimento da ilusão cénica que, segundo ele, pertencia ao teatro tradicional. Pretendia que o seu teatro, pela sua força poética, suscitasse por parte do espectador a crítica ao acontecimento contado em cena.
No caso do espectáculo A Mãe, a luta é pelo direito a um salário fixo, a direitos inalienáveis dos trabalhadores, ao direito à greve, ao direito à escolaridade mínima que possa proporcionar um olhar lúcido e esclarecido perante a vida. A Mãe fala acerca das batalhar travadas pelos trabalhadores e dos seus custos. Gonçalo Amorim fez questão de manter o efeito de distanciação, criado por Brecht. Segundo Brecht, Para o actor é difícil e cansativo provocar, em si, todas as noites, determinadas emoções ou determinados estados de alma; em contrapartida é-lhe mais fácil revelar os indícios externos que acompanham e denunciam essas emoções. Mas a transmissão de emoções ao espectador – contágio emocional – não é, decerto, uma transmissão pura e simples. Nela surge o efeito de distanciação, que não se apresenta sob uma forma despida de emoções, mas, sim, sob forma de emoções bem determinadas que não precisam de encobrir-se com as da personagem representada. Perante a mágoa, o espectador pode sentir alegria. Perante a raiva, repugnância. Neste espectáculo vimos os actores apresentarem-se depois de terem começado o acto de representação, vimo-los a entoarem belíssimas canções acompanhados ao piano e ao acordeão, apercebemo-nos da ficha técnica a meio do espectáculo, fomos invadidos por imagens, fotografias e dísticos projectados num écran e sofremos com os actores a dor de Pelagea Vlassova: a incansável Mãe que luta por mostrar que ainda há esperança de um mundo melhor. Foram muitas as contaminações de linhas, e estéticas, desde o teatro oriental até ao musical. No final, a imagem bela de uma mãe ainda com o filho no ventre, que estica a corda do sistema, largando-a com um violento som para que a humanidade ouça a voz da razão e possa lutar contra a injustiça.
Uma encenação conseguida, suportada por um excelente colectivo de actores que deslizou ao longo do espectáculo com o ritmo apropriado e com a cumplicidade esperada. Segundo Gonçalo Amorim este foi “um processo colectivo, uma viagem estética e de emancipação.” Todos nós ouvimos a nossa Pelagea Vlassova clamar por um mundo mais justo. Alguns de nós ficaram com vontade de transformar o mundo. Foi cumprido o projecto de Brecht. Quanto mais não seja por isso é justo lembrar as palavras do dramaturgo, escritas em 1934: Hoje, o escritor que deseje combater a mentira e a ignorância tem de lutar, pelo menos, com cinco dificuldades. É-lhe necessária a coragem de dizer a verdade, numa altura em que por toda a parte se empenham em sufocá-la; a inteligência de a reconhecer, quando por toda a parte a ocultam; a arte de a tornar manejável com uma arma; o discernimento suficiente para escolher aqueles em cujas mãos ela se tornará eficaz; finalmente precisa de ter habilidade para difundir entre eles. Estas dificuldades são grandes para os que escrevem sob o jugo do fascismo; aqueles que fugiram ou foram expulsos também sentem o peso delas; e até os que escrevem num regime de liberdade burguesa não estão livres da sua acção.

Vocês sabem o que é o verdadeiro Amor?


“Vocês Sabem o que é o verdadeiro Amor?” Esta é a pergunta inicial do espectáculo Modigliani, encenado por Luísa Monteiro e levado à cena pela Companhia de Teatro Contemporâneo. A adaptação dramatúrgica segue de perto o guião homónimo de Make Davis, protagonizado por Andy Garcia. No espectáculo da Companhia de Teatro Contemporâneo os espectadores puderam contar com as interpretações de Jorge Cabral, no papel de Modigliani, Luís Marreiros, interpretando Modigliani em adolescente, Mónica Cunha como Jeanne Hébuterne, Nuno Pardal como o agente Zbo e Marco Pedroza, interpretando Picasso. Como vozes off pudemos ouvir Miguel Martinho, Fernando André e Luísa Monteiro.
O espectáculo retrata os últimos tempos do pintor Modigliani. Desde o dia em que conheceu Jeanne Hébuterne até ao dia da sua morte. É uma homenagem à genialidade de um homem que não tendo conseguido a notoriedade de Picasso, promoveu o seu ciúme e caminhou a passos largos para a auto-destruição. Modigliani estudou em Veneza e Florença, antes de se fixar em Paris, em 1906. Instalou-se inicialmente em Montmartre, mudando-se depois para Montparnasse, onde pintaria algumas das suas telas mais conhecidas. Apaixonou-se por uma pintora de 17 anos, Jeanne Hebuterne, com a qual viveu uma paixão avassaladora que a levou ao suicídio, um dia depois da sua morte.
Modigliani é um espectáculo sobre o verdadeiro Amor. Sobre a essência da pintura e o alimento do verdadeiro Amor. Modigliani disse a Jeanne: quando conhecer a tua alma hei-de pintar os teus olhos. Esta promessa foi cumprida quando foi desocultada a tela que pintou para o concurso das artes de Paris, no qual se sagrou vencedor, com o retrato de Jeanne. Segundo a produção, «em Modigliani o espectador viaja até ao ano de 1919, em Paris. É o fim da I Grande Guerra e o período de ouro da arte. O Salão dos Artistas junta a elite artística de então, onde não falta a rivalidade e o ciúme, o que acontece entre Modigliani e Picasso, ambos pintores marcados pela genialidade, pela arrogância e pelas paixões. A paixão de um pelo outro, a paixão da pintura e… a paixão pela bela Jeanne Hébuterne. Jeanne é a heroína de um tempo único. Por amor à arte de Modigliani, a jovem entrega toda a sua vida. Literalmente». No espectáculo assiste-se ao enamoramento entre Jeanne e Modigliani. Jorge Cabral interpretou de forma bastante convincente o génio boémio de Modigliani. A Mónica Cunha já faltou o olhar apaixonado de quem abandona tudo pelo verdadeiro amor. Foi mais convincente na interpretação da loucura, e na tocante cena da despedida. Jeanne partiu com o perdão de quem percebeu que a sua vida tinha acabado com a de Modigliani. A doçura de Jeanne transforma-se em força, lançando-se para o abismo do amor. À dança de acasalamento faltou, contudo, a paixão que se pode observar no encontro de duas almas gémeas. A encenação utilizou como recurso a imagem de Modigliani em adolescente, ajudando-o na criação e aconselhando-o a preservar Jeanne e a sua vida. Esse daimon apresentava-se despojado de tudo, acocorado ao lado do cavalete do pintor. Talvez essa estrutura daimónica tivesse ganho uma dimensão mais estruturante para o espectáculo se tivesse conservado a figura da criança que viu os seus pais serem despojados dos seus bens, aprendendo a lição mais marcante: a sua única riqueza, o seu único bem, será a arte. A criança teve essa premonição, e é a criança que o acompanha na difícil fase da criação. O facto de se ter optado por um adolescente corta esse fio que Modigliani desenrola desde a infância. Quanto às outras personagens, Nuno Pardal apresenta-se com desenvoltura no papel do agente e amigo de Modigliani. Marco Pedroza aparece pouco agressivo como Picasso, sobretudo quando se confronta com Jorge Cabral.
Ao nível da opção de encenação, a ideia de espaço vazio domina a cena. É muito bonita a imagem da tela vazia passar por Jeanne quando Modigliani a retrata. Quase sentimos o arrebatamento de que Poe nos fala no seu conto O Retrato Oval. Quando Modigliani consegue, finalmente, pintar os olhos de Jeanne, ela morre por amor. Também é interessante a projecção no tecto das telas censuradas com os nus, na exposição individual de Modigliani. Mas a alma de Jeanne talvez merecesse ser revelada no final do espectáculo, quando exibem a tela do concurso em que Modigliani se sagrou vencedor no concurso anual dos artistas de Paris, projectando-a na tela em branco. Esse talvez fosse o momento necessário para o confronto entre a arte, o desejo e o amor. Todos os sentimentos que serviram a vida de Modigliani concentrados numa tela.
Os ritmos que os actores utilizavam nas suas contracenas eram os adequados. As pausas, as hesitações, os olhares constituíam, por si só, uma sinfonia latente que se sentia ao longo do espectáculo. Os actores, sobretudo nas interpretações de Modigliani e Jeanne, dialogavam através do silêncio, o que conferiu uma profundidade acrescida ao espectáculo. Mas se o espectáculo fala através dos olhares, dos ritmos, da pintura, dos corpos, sentiu-se a falta do vestido de veludo azul com que Jeanne pousou para Modigliani. Aquele vestido que ele roubou para lhe vestir a alma.
No geral foi um espectáculo tocante, com interpretações consistentes, com um suporte musical adequado às emoções que os actores transmitiam, mas ao qual faltou alguma paixão. Aquela que se tem quando se reconhece o verdadeiro amor.

Os Sobreviventes


O TEMPO encerrou este mês de Março o festival fervor de Buenos Aires, em colaboração com o Centro Cultural de Belém. Esse festival está inserido numa iniciativa mais vasta, dedicada às Cidades Invisíveis, epíteto de Jorge Luis Borges com o intuito de descobrir a magia de uma cidade através da sua literatura, da sua música, do seu teatro. No mês de Março Portimão dançou com o tango argentino, emocionou-se ao ouvir o som do bandoneon, penetrou na língua de Borges através da sua poesia, sentiu vontade de mudar o mundo depois do espectáculo apresentado no Dia Internacional do Teatro A Omissão da família Coleman, de Claudius Tolcachir, e que foi interpretado pelo grupo Timbre 4.
Timbre 4 é um grupo de teatro argentino que começou a trabalhar no seu novo espaço em 1998. Os novos actores, ansiosos para encontrar um lugar no qual pudessem investigar e continuar crescendo como criadores, começaram assim a cumprir seu sonho, decidindo a linha de teatro que queriam fazer. Essa linha assumiu-se como realista, expondo as maleitas que se escondem por detrás de uma ordem aparente e estável.
O espectáculo A Omissão da família Coleman, interpretado por Lobo de Ellen, Miriam Odorico, Hindu de Lavalle, Tamara Kiper, Lautaro Perotti, Diego Faturos, Gonzalo Ruiz, e Jorge Marrom baseia-se num texto realista que descreve o quotidiano de uma família disfuncional. A matriarca é o elo de ligação da família, o suporte inquestionável que todos respeitam. Para além da avó coexistem na mesma casa a mãe e três filhos: dois gémeos e o mais velho, com problemas psíquicos. A família vive numa desarrumação permanente, que faz parte do seu quotidiano. A desarrumação estende-se da casa para as suas vidas, pois a ligação àquele espaço impede-os de se autonomizarem enquanto pessoas. O único membro da família que se quer autonomizar é a rapariga mais nova, Gaby, que compra roupa usada e a transforma para a vender adaptada à moda actual. Trabalha na sua máquina de costura, leva a roupa à lavandaria, faz o possível por manter a casa arrumada, faz o pequeno-almoço para a família e ainda empresta dinheiro ao seu irmão gémeo quando ele precisa. Para além da avó, que é o elo emocional, Gaby é o elo estruturante daquela família.
Memé, a mãe, vive num mundo só dela. Teve duas ligações amorosas, das quais gerou quatro filhos, mas nunca trabalhou para os sustentar. Partilha a cama com o filho mais velho e sonha ainda com a possibilidade de ter um companheiro que a ajuda a gerir uma família. Passa o tempo a pedir dinheiro aos filhos, saltitando pela desarrumação com um sorriso absurdo de quem não tem a consciência do mundo à sua volta.
O filho mais novo, gémeo de Gaby, vive de esquemas, perigosos que não partilha sequer com a sua irmã. O filho mais velho, Mário, é completamente desestruturado. Partilhando ainda a cama com a mãe, é incapaz de sobreviver sozinho. Comporta-se como uma criança pequena provocando lutas com o seu irmão, provocando discussões com a sua irmã, recusando-se a tomar banho ou sequer a tirar as meias, que usa há meses. A filha mais velha, Verónica, foi levada muito pequena daquele contexto familiar pelo seu pai. Sente afecto unicamente pela sua avó, mas é absolutamente indiferente relativamente aos seus irmão e à sua mãe. Apesar de ter dois filhos, a sua família não os conhece e ela não tem a mínima intenção de lhos dar a conhecer. Está bem instalada na vida porque foi a única que se desvinculou daquela unidade orgânica que constitui um todo.
Um dia a avó adoece e vai para o hospital. A família entra em pânico mas todos são solidários no cuidado que a avó precisa para ultrapassar a doença. É internada numa clínica privada, paga pela neta mais velha. Nesse espaço, diferente do habitual, os laços e os afectos vão-se transformando. Memé já há algum tempo que pede à filha mais velha que a leve daquela casa. A filha diz-lhe simplesmente que não, e que nem sequer é sua intenção pensar na proposta de sua mãe. A mãe não tem qualquer problema em cortar a ligação com os outros filhos ou com a avó, querendo apenas sobreviver àquele antro de podridão. A filha mostra-se sempre insensível, como se não tivesse qualquer laço com a sua mãe. Quando a avó está internada pensa levar os seus filhos para que esta os conheça. Mas perante a possibilidade do resto da sua família os conhecer, desiste da ideia.
Com a avó fora de casa, as contas deixam de ser pagas e a família aproveita o internamento da anciã para tomar um banho quente na clínica. Tentam encomendar comida a ser descontada na conta de internamento da avó, mas a irmã mais velha recusa colaborar com esse abuso.
A avó morre no hospital. Esse acontecimento marca a passagem para um novo estado dentro daquele clã. A matriarca morreu e a família dissolveu-se. Gaby encontra um companheiro e vai viver com ele. O seu irmão gémeo pede-lhe dinheiro e desaparece para parte incerta. A mãe convence finalmente Verónica a aceitá-la em sua casa. Não precisa de voltar a casa para ir buscar nada. Vida nova, tudo novo. Mário regressa a casa sozinho, depois de lhe terem diagnosticado no hospital uma leucemia que o condena a um mês de vida. A família dissolveu-se e ele volta a uma casa vazia onde irá morrer sozinho. Todos eram sobreviventes, vivendo no limite da dissolução evidente mas impronunciável. A pergunta imanente é: Quem sou eu fora desta casa e desta família? A resposta seria: Algo mais do que um sobrevivente.
Este espectáculo opera como um doloroso murro no estômago sobre o poder que a estrutura família pode ter em relação à identidade individual dos seus membros. Perante o contexto sócio-económico actual, em que cada vez mais é difícil aos jovens autonomizarem-se e formaram a sua própria família de forma independente, este texto é um aviso sobre os prejuízos que a geração canguru. O facto de a maior parte dos jovens não conseguir assumir as suas responsabilidades está a causar à sociedade em geral, um mal-estar, tornando-a doente e provocando comportamentos disfuncionais no seio das famílias. Como o autor nos mostrou desapiedadamente, os netos, apesar de gostarem muito da avó, já estavam a fazer as partilhas e a sortear o seu quarto, mesmo antes de ela ter morrido.
Isto é um aviso a todos. O facto das políticas sociais não combaterem a especulação imobiliária, os empregos dignos para os jovens contribuem para famílias doentes e, consequentemente, para uma sociedade débil e doente.
Este espectáculo esteve em cena quatro nãos em Buenos Aires e foi nomeado para inúmeros prémios, como o melhor trabalho original de teatro de 2006 da Argentina.

Sunday, March 15, 2009

Bullying - Ponto final

O tema é actual e difícil. A violência física e psicológica que alguns adolescentes exercem sobre os colegas nas escolas tem sido recorrente. No entanto, não é pelo facto de ser um tema transversal, que se refaz a cada ano lectivo, que os educadores vão deixar de o trazer à discussão. A ACTA elegeu o bulliyng como o tema central para espicaçar a discussão entre alunos e professores e, juntos, conseguirem encontrar uma solução para este problema inquietante. Quem não se lembra de ter sido ameaçado na escola ou de se ter sentido desconfortável e até tenso com a perspectiva de voltar a entrar no recinto escolar?
Bullying: O que é?
Mas de que é que estamos a falar quando falamos de bullying? O termo foi criado nos anos 80 nos países do Norte da Europa. Com ele se pretende definir comportamentos de natureza agressiva entre os adolescentes, com a intenção de prejudicar o outro, seja psicológica, seja fisicamente. Actualmente o Bullying é objecto de estudos universitários, tendo os técnicos especializados chegado à conclusão que este fenómeno está a ganhar uma nova dimensão, com a agravante da violência exercida sobre um determinado sujeito ser continuada e não pontual.
De acordo com um estudo da psicóloga Ana Vasconcelos, o que está na base deste tipo de violência gratuita é a necessidade de afirmação perante o grupo. "Há alturas em que a criança, para se sentir segura, precisa de mostrar aos outros que é mais forte. O bullying pode ser encarado como uma forma de exorcizar os medos. Os agressores vão detectando as suas vítimas nos recreios da escola". O bullying baseia-se, por isso, numa luta desigual: há uma vítima e um agressor (também conhecido por bully). As vítimas são, normalmente, "miúdos emocionalmente retraídos e com menos capacidades para encontrarem soluções ou fazerem queixa".
Com texto de Glória Fernandes, Luis Miranda e Paulo Moreira, que também assina a encenação, os actores da ACTA souberam apontar vários aspectos das relações dos bullys com as suas vítimas. Ao longo do espectáculo vemos como as vítimas vão sendo ameaçadas através de mensagens de telemóvel, de abordagens directas nos recreios, ou até mesmo na própria sala de aula. O facto do texto ter sido elaborado por três professores do ensino básico e secundário é um elemento chave que confere verdade à representação. Os actores Elisabete Martins, Mário Spencer, Pedro Mendes e Tânia Silva transportaram-nos para o mundo cruel do bullying. Vemos s bullys minarem a auto-estima dos colegas e as vítimas irem ficando com uma capacidade de reacção cada vez menor. É um factor a ter em conta o facto dos miúdos agressores terem uma auto-estima elevada e uma grande confiança em si próprios. No entanto, a auto-imagem do bully é alimentada pelo sofrimento e domínio que exercem sobre os colegas.

Quem são os bullys?
Um estudo académico da autoria de Susana Carvalhosa, Luísa Lima e Margarida Matos mostra que, numa amostra de cerca de 7000 jovens que frequentam escolas portuguesas, cerca de 21% dos jovens foram vitimados «alguma vez
ou mais» e 10% provocaram outros. Cerca de metade da população em estudo não se envolveram nestes comportamentos e apenas 26% se envolveu duplamente. Mas este dado vem também confirmar que os alunos mais novos são mais frequentemente vitimados do que os alunos mais velhos. Também se mostra que os rapazes envolvem-se mais em comportamentos de provocação, vitimação e envolvimento duplo; também alunos mais novos são mais frequentemente vítimas e a frequência de serem ameaçados diminuiu à medida que aumenta a idade.
No que diz respeito às características dos provocadores, verificou-se que estes têm índices de violência fora da escola maiores que as vítimas, têm piores relações com os pais do que o grupo sem envolvimento. Têm mais sintomas de depressão e maiores queixas de sintomas físicos e psicológicos do que o grupo sem envolvimento. São os maiores consumidores de drogas e de tabaco e álcool. Relativamente ao grupo sem envolvimento praticam mais exercício físico e têm melhor imagem corporal. Têm uma atitude desfavorável em relação à escola quando comparados com as vítimas e menores expectativas de futuro quando comparados com o grupo sem envolvimento, são o grupo dos alunos mais velhos e têm mais escolaridade que as vítimas.
Quanto às características dos jovens com envolvimento duplo, verificou-se que têm índices de violência fora da escola maiores do todos os outros grupos, têm piores relações com os pais do que o grupo sem envolvimento são aqueles que têm piores relações com pares. São os que exibem, de todos os grupos, mais sintomas de depressão e apresentam mais queixas de sintomas físicos e psicológicos. Consomem mais drogas do que as vítimas e do que os sem envolvimento, consomem mais tabaco e álcool do que as vítimas, são aqueles que mais exercício físico praticam e que têm melhor imagem corporal. São os que têm a atitude face à escola mais desfavorável, têm menores expectativas de futuro quando comparados com o grupo das vítimas e com o grupo sem envolvimento, têm um nível socio-económico mais baixo do que o grupo sem envolvimento, são o grupo dos alunos mais novos e têm menos escolaridade. Podemos assim afirmar que o grupo com envolvimento duplo é aquele onde se verifica existirem maiores factores de risco, isto porque se envolvem mais em comportamentos de violência fora da escola, revelam mais queixas de depressão e de sintomas físicos e psicológicos. Este perfil mostra a necessidade de se proporcionar a estes jovens acompanhamento adequado, uma vez que os factores de risco parecem ter um efeito não apenas aditivo, mas multiplicativo, ou seja a probabilidade aumenta consideravelmente quando aumenta o número de factores de risco que afectam o jovem.

Quem são as vítimas?

Em relação às características das vítimas, verificou-se que são aquelas que têm piores relações
com pares e com os pais quando comparados com o grupo sem envolvimento. Têm mais sintomas de depressão e maiores sintomas físicos e psicológicos. Consomem menos drogas, praticam mais exercício físico e têm melhor imagem corporal. Têm uma atitude mais desfavorável em relação à escola do que o grupo sem envolvimento, são os que menos tabaco e álcool consomem, apresentam menores expectativas de futuro, são o grupo dos alunos mais novos e têm menos escolaridade que os provocadores.

Os determinantes dos comportamentos de provocação e de vitimação, revelam um mal-estar e uma falta de saúde positiva entre os jovens envolvidos no bullying. Pelo contrário é de realçar que os jovens devem possuir saúde positiva e um bem-estar de modo a não se envolverem nestes tipos de comportamento. Ainda, em relação à análise do padrão de comportamentos dos jovens que se encontram duplamente envolvidos, é de realçar um exagero de mal-estar, como já foi referido.
A violência fora da escola ser um determinante dos comportamentos de provocação e de vitimação, explica que também fora da escola os indivíduos se envolvem em comportamentos anti-sociais. Isto dá-nos a entender a dimensão que este problema pode atingir se não forem tomadas medidas adequadas para o prevenir.

A ACTA através de uma linha de teatro interactivo, iniciada com o espectáculo O Longo Sono da Heroína alerta para todos estes factores e tenta, com a construção de um final sugerido pelos alunos, mostrar caminhos para a resolução deste problema grave que se está a alastrar na sociedade portuguesa. Com encenação de Paulo Moreira, neste espectáculo os alunos participam, entusiasmam-se, tomam partido, defendem os mais fracos. É a diferença entre uma mostra pura e simples do problema e a destruição da quarta parede.

Os Maias de António Torrado


António Torrado reescreveu a obra-prima da literatura portuguesa do séc. XIX, Os Maias, adaptando-a ao palco. Depois das opções tomadas assistiu-se a uma morna passagem pela crítica de costumes suportada por um elenco desadequado. Em cena no Teatro da Trindade até dia 26 de Abril.
O Teatro da Trindade, no âmbito das comemorações dos seus 146 anos de existência, propôs-se apresentar uma adaptação do histórico romance de Eça de Queiroz, Os Maias. Com reescrita de António Torrado e encenação de Rui Mendes, o foco da obra foi apontado para a crítica social e de costumes de que Eça de Queiroz era um arguto combatente.
O espectáculo começa com a projecção em filmagem de uma reconstituição histórica. Os espectadores vêem Carlos da Maia e João da Ega a chegarem de tipóia ao Teatro da Trindade para assistirem ao famoso sarau de beneficência, no qual Eça de Queiroz pôs a discursar a nata do ridículo da sociedade intelectual portuguesa. Com a recriação de dois camarotes do Teatro da Trindade em palco, dá-se início a uma série de analepses que ajudam a contar a história a partir de um tempo no qual a tragédia já se tinha instalado. Desse sarau do Trindade abre-se uma janela para o passado onde se vê a aparição da “negreira” Maria Monforte, cobiçada por todos os homens da sociedade lisboeta e a viagem vertiginosa desenvolvida por Pedro da Maia até ao seu suicídio. Os anos de “educação à inglesa” do jovem Carlos Eduardo foram omitidos, aparecendo já homem feito, disposto a cursar medicina. O sub-título da obra “Episódios da Vida Romântica” foi esquecido em detrimento do apontar da galeria de caricaturas dos intelectuais que dominavam a cena intelectual de Lisboa nos finais do séc. XIX. As personagens femininas, qual golpe shakespeareano, foram reduzidas a duas, interpretadas pela mesma actriz, à qual o dramaturgo não teve o cuidado de desenvolver na sua estrutura interessante. As falas que denotam uma maturidade de espírito, a argúcia e a discussão intelectual de igual para igual de Maria Eduarda quando ilustra as pesquisas de Carlos Eduardo são omitidas, remetendo Maria Eduarda a uma posição subalterna de dona de casa bonita. Apenas a registar um rasgo de inteligência quando se defende da acusação maldosa do brasileiro e do próprio Carlos Eduardo. Todas as outras mulheres desaparecem da história, sendo apenas nomeadas de passagem, como seres desinteressantes e fúteis.
A versão de António Torrado condensa-se num grande flasback que se concentra na vida política de Lisboa. É interessante verificar que as mentes decrépitas e medíocres da política continuam em força nos mesmos lugares, dirigindo os destinos do país. No entanto as sucessivas mudanças de tempo, usuais no cinema, não contribuem para a compreensão da leitura de uma obra tão complexa, como Os Maias. Quando um dramaturgo põe em cena uma versão de um clássico não deve partir do pressuposto de que toda a gente já o estudou. Houve muita gente, dentre jovens, cidadãos brasileiros, que saíram do teatro sem terem percebido nada da história. Quando sucedeu a revelação trágica do incesto houve vozes que se perguntavam: “mas como é que eles souberam, quem é que lhes disse?”. A ideia pré-concebida de que o público já é conhecedor de todos os meandros da obra pode ser prejudicial para a compreensão da mensagem principal e não presta serviço nem ao teatro nem ao autor. O percurso queiroseano de Sintra foi omitido, deixando de lado um dos mais belos quadros pintados pelas metáforas do autor sobre a vila das “nascentes de águas vivas”. Esse percurso é um dos motivos de regressos recorrentes a Sintra de centenas de leitores d’Os Maias e, nesse sentido, uma traição ao espírito da obra.
Relativamente ao elenco houve opções incompreensíveis. Por um lado, António Torrado, numa entrevista dada à SIC, defende que apesar de Eça de Queiroz descrever detalhadamente todos os pormenores físicos das personagens, a encenação se preocupou mais em “pôr em cena o espírito das personagens e dos enredos que as envolvem do que propriamente as características físicas de cada uma delas.” Não se compreende então a razão da escolha de um actor como José Fidalgo que apenas cumpre a imagem de Carlos da Maia, quando lhe falta a voz, a presença em palco, a força de interpretação que sustentaria a personagem principal d’Os Maias. É chocante ver Pedro Górgia interpretar o Dâmaso Salcede, pois nem a postura física nem o espírito fazem jus à personagem “chic a valer” criada por Eça de Queiroz.
A questão coimbrã, elemento chave da discussão entre Ega e Alencar, aquando do jantar no Hotel Central passa despercebida no meio de tanta marcação concebida para provocar o riso. Em relação às interpretações, José Airosa está convincente quando brinca com a personagem de João da Ega. No entanto, quando assume o alter-ego do autor, deverá preocupar-se mais com a gestualidade própria do século XIX, pois não é credível colocar o monóculo típico do Eça no olho direito e retirá-lo com a mão esquerda. José Fidalgo não está à altura de um Carlos Eduardo e Sofia Duarte Silva mostrou, tanto quanto lhe foi permitido, a portentosa Maria Eduarda. João Didelet esteve excelente no ridículo discurso que proferiu no teatro da Trindade sobre o Anjo da Caridade. As outras personagens mantiveram-se num registo morno, sem fazerem muita honra à fina sátira social de Eça de Queiroz. Quanto mais não fosse, para dar o toque de comédia apontado pela encenação, faltaram as duas espanholas enroladas com o Eusebiozinho, contraponto a toda a educação de Carlos Eduardo e a cena fulcral, utilizada como exemplo em todos os cursos de escrita para teatro da revelação do incesto. A entrada repetida do criado, impedindo que a revelação brutal se faça dentro do tom pesaroso da tragédia é uma das cenas fulcrais da literatura portuguesa. Foi uma pena não ter sido explorada nesta versão.
Um ponto positivo nesta encenação teve a ver com o suporte musical da responsabilidade de Afonso Malão. O diálogo entre Carlos e o músico, que fala com ele através do piano funciona na justa medida. Os apontamentos musicais estão muito bem justificados e o tom que o músico utiliza ao longo de todo o espectáculo é o ideal para funcionar como complemento às vozes dos actores.
O desenho de luz é adequado, com momentos bonitos, como o do jantar no hotel central, mas faltou a luz que pintasse o idílio de Carlos e Maria Eduarda. O guarda-roupa de época, concebido por Ana Paula Rocha estava adequado podendo, no entanto ter piscado o olho à contemporaneidade quando se faz a comparação dos discursos dos políticos da época com os actuais parlamentares.
Um espectáculo em que os professores devem ter trabalhos redobrados a preparar os seus alunos para aquilo que irão ver. No final o público fica à espera de que os dois amigos irrompam do palco para apanhar “o americano”. No entanto, João da Ega e Carlos Eduardo ficam estáticos, a ver a vida passar por eles, quais meninos mimados de uma existência ociosa. Talvez o final mais bem conseguido para o olhar fino e satírico de Eça de Queiroz sobre os vícios da sociedade portuguesa.

O Ser, o Devir e o Nada


Mark Ravenhill, dramaturgo contemporâneo, destacou-se pelos temas arrojados e conteúdos explícitos nas suas peças de teatro. Shopping and Fucking foi a sua segunda peça de teatro, responsável pela sua súbita fama. O tema, cada vez mais recorrente, é o da total adesão aos valores da sociedade de consumo. Será que o consumismo desenfreado substitui todos os códigos deontológicos, havendo necessidade de criar um outro? Tudo tem na sua base uma transacção económica, inclusive as relações entre seres humanos. Até aqui, nada de novo. As relações entre as pessoas sempre foram suportadas por transacções comerciais, inclusivamente as de carácter mais íntimo. Há seres humanos que compram outros e se tornam seus donos. Mais um lugar comum que tem as suas raízes na aurora da humanidade e se desenvolveu de forma mais refinada e perversa com a assunção das práticas de bondage. Toda a gente sabe que há seres humanos que se consideram donos de outros e que estes outros têm necessidade de se sentirem dominados pelos seus donos. Na história da literatura este tema foi desenvolvido admiravelmente por Sade, o que mostra que também aqui esta temática não traz nada de novo. O sexo é para ser consumido à maneira de Fast-food, nos tempos em que ninguém se esforça por dar alguma qualidade de vida a si próprio, começando pela sua alimentação. Também aqui o que é que há de novo e interessante para mostrar? O texto foi escrito na época do governo de Margaret Thatcher, período marcado por uma grave crise económica que abalou os valores do Reino Unido. As lutas dos trabalhadores sucediam-se e, perante os números do desemprego surgidos no governo Thatcher, a sociedade esvaia-se renegando as suas crenças, erigindo novos valores. A linha transversal ao espectáculo é o desregramento até ao limite da prática de sexo que vai originar o consumo de drogas, o roubo, a prostituição e o crime.
O espectáculo começa com um homem a regurgitar em cima de uma mesa, numa sala onde todo o mobiliário é feito de cartão. A ideia de descartável é imposta desde o princípio e o homem mais velho regurgita o seu passado, o seu peso perante a responsabilidade do jovem casal que comprou. Vai fazer uma cura e o jovem casal terám, enfim, de procurar subsistir sem a sua fonte de rendimentos. Ficam chocados, ofendidos, tal escravos libertados sem saberem o que fazer. Vão a entrevistas para ocupações medíocres já que, o que está em causa não é a procura de uma profissão da qual se retire prazer, mas a subsistência pura e simples. Na entrevista a que assistimos quando a personagem feminina, Lulu, vai procurar trabalho, há um jogo muito bem desenvolvido, no qual o entrevistador representa a visão da cultura dos detentores do poder económico. Para o dealler, a história do Rei Leão transforma-se na história de Hamlet, contando um desenho animado como se de uma tragédia shakespeareana se tratasse. Um pormenor sarcástico muito forte que, efectivamente, surpreendeu pela positiva. De resto, o costume: obrigou Lulu a recitar um excerto de uma peça só para seu gozo pessoal e, para o completar, ela teve de o dizer despida da cintura para cima.
O seu namorado, incumbido de vender drogas em forma de comprimidos, deslumbra-se esteticamente com os frequentadores da discoteca e oferece-as, perdendo assim uma grande soma de dinheiro. O dealler, ao som de um concerto de Bach, que escuta extasiado, mostra ao jovem casal o que lhes pode acontecer se estes não lhe devolverem o dinheiro no prazo de uma semana. É aqui que se adensa a espiral de consumo. Tornam-se operadores de telefonemas eróticos enquanto o seu antigo protector se encontra com um prostituto. A relação tem de ser meramente económica, pois ele não se permite que haja sentimentos a conspurcar a simplicidade da transacção. O jovem prostituto domina a relação porque o homem mais velho não consegue deixar de se envolver com ele afectivamente. Regressa a casa e a espiral de consumo transforma-se rapidamente numa espiral de violência no vórtice da qual o jovem prostituto pede ao homem mais velho que o mate, pois a vida para ele já não faz sentido. O homem faz o que tem a fazer e no final há o reencontro dos três elementos iniciais de regresso à vida descartável que levavam, onde o sexo se assemelha à comida rápida de degustação fácil.
Este espectáculo, para além das falhas técnicas apresentadas pelos actores, ao nível da dicção e pela projecção de voz, pois metade do texto tinha de ser recuperado na imaginação do espectador, uma vez que não se percebia grande parte do que diziam, ao nível consistência dos gestos, pois numa garfada estavam sob o efeito do deririum tremens e na garfada seguinte já estavam bem, apresenta outro tipo de problemas ao nível da consistência da ideia. Segundo o esquema básico do método dialético, existem três elementos: a tese, a antítese e a síntese. A tese é uma afirmação ou situação inicialmente dada. A antítese é uma oposição à tese. Do conflito entre tese e antítese surge a síntese, que é uma situação nova que carrega dentro de si elementos resultantes desse embate. A síntese, então, torna-se uma nova tese, que contrasta com uma nova antítese gerando uma nova síntese, em um processo em cadeia infinito.
Neste espectáculo há a afirmação de uma tese com a vivência inicial dos três elementos. Há a negação dessa tese com o corte no quotidiano, obrigando os dois elementos a procurar um novo sentido. Dos elementos novos resultantes do embate da tese com a antítese não se originou uma síntese, contrastando com a antítese e originando uma nova visão da realidade, uma vez que os protagonistas voltaram a afundar-se no mar de imundice que os caracterizava. Nem se discute a oportunidade de cenas de sexo explícito que obriga o espectáculo a ser para maiores de 18 anos. Não é por esse pormenor que o espectáculo é mais ou menos forte. O espectáculo deixa de ser forte quando o seu conteúdo deixa de ser credível, esvaziando-se de sentido. a história do jovem prostituto, no final, deixa de funcionar porque o espectador deixa de acreditar. E toda uma ideia forte, suportada por um texto hiper realista sobre a sociedade de consumo é destruída pela inconsistência da acção. A tragédia grega funciona porque o espectador se revê na personagem. Não é menos forte por defender que as cenas de crime e de morte se passem fora da cena: o obsceno. É sabido ao longo dos séculos que a capacidade de contar uma cena possibilita um encontro da palavra com o real através da imaginação, que supera o simples olhar. E os gregos contavam essas cenas de uma forma forte, que era capaz de provocar no espectador sentimentos de terror e de piedade. Sentimentos que o levavam a renovar-se e a repensar-se enquanto pessoa. Este espectáculo não conduz a nada. Nem sequer ao esvaziamento. Uma crítica à sociedade de consumo? Porque não A Caverna, de Saramago? Essa sim, uma visão inteligente.

Teatro aquece Inverno no Algarve

Hoje, em Tavira, continua o Teatro no Inverno, promovido pela companhia de Teatro Al-Maserah, com o apoio da autarquia tavirense. Assim, pelas 23 horas, no REF Café TIXA, partilhará com a público a história da bela contadora Sherazade, que pelo poder da palavra conseguiu salvar a sua vida e a de centenas de outras jovens casadoiras. Sexta, dia 30, será a vez do Espectáculo Só, com encenação de Marta Inocentes, da companhia Bruxa Teatro, de Évora, no espaço da Corredoura, às 21h30. No Sábado 31, às 16h30, haverá uma Conversa com Mário Barradas, sobre Descentralização Teatral. Às 21h30 repete o espectáculo Só da Companhia A Bruxa Teatro. No Domingo, às 16h00, o espaço da Corredoura passa o documentário de Margarida Cardoso Era Preciso Fazer as Coisas. O Teatro no Inverno também promove Oficinas de Formação. No fim-de-semana de 31 de Janeiro e 1 de Fevereiro o enfoque será dado à Interpretação, Orientada por Isolda Ruiz Barrios. Partindo da exploração de técnicas de trabalho do actor, trabalhar através de exercícios de improvisação a contracena, o texto dramático, as múltiplas formas e estilos de representação, abrindo assim caminhos criativos para criação da personagem. Os participantes têm oportunidade de experimentar, improvisar, construir pequenas cenas e descobrir grandes momentos.
Por outro lado, no extremo do Barlavento, haverá lugar para se juntarem centenas de amantes da arte dramática, que farão parte do III Fórum Permanente de Teatro de Amadores. Este encontro ocorrerá entre 30 de Janeiro a 1 de Fevereiro de 2009, em Lagos, numa organização da ANTA - Associação Nacional de Teatro de Amadores, em parceria com o Teatro Experimental de Lagos, e com o apoio da autarquia local. Ao longo dos três dias, a organização propõe um conjunto de painéis de formação, espectáculos de teatro e actividades paralelas, bem como um espaço dedicado à divulgação da actividade dos diversos grupos presentes.
Sexta, dia 30 de Janeiro pelas 21h30, os participantes assistirão ao espectáculo do grupo anfitrião (TEL) Auto da Vida e da Morte, de António Aleixo. No dia seguinte os participantes poderão usufruir de diversos painéis, como a Formação de Actores em áreas diferentes que vão desde O Jogo Dramático, à criação do eu, até à Iniciação à Morfo-Psicologia Actoral. Para além da formação de actores existem também formações em Iluminação, em Produção, e em Adereços. No Sábado haverá também lugar para a apresentação de um livro com peças de teatro inspiradas no Algarve, assim como uma tertúlia sobre teatro.
Também em Faro a noite é de Teatro. Dia 30, no Centro de Artes Performativas do Algarve (CAPa) a companhia de teatro Te-Atrito irá estrear uma produção. O Babete Real é um projecto que se baseia no texto homónimo de Raul Malaquias Marques, escritor português contemporâneo, texto esse que mereceu uma menção honrosa no Prémio Garrett de Teatro para a Infância e Juventude em 1988. Com encenação de José Carlos Garcia, director artístico e actor da Companhia de teatro Chapitô, e com larga experiência no ensino pela arte, este espectáculo resulta de uma parceria com a DEVIR / cAPA – Centro de Artes Performativas do Algarve, a DREALG, as Câmaras Municipais de Faro e Lagoa, a ARC Músicos de Faro e o Instituto Português da Juventude – Delegação de Faro. São objectivos deste projecto contribuir para um maior conhecimento e divulgação da dramaturgia portuguesa e para o desenvolvimento da reflexão crítica sobre questões relacionadas com as práticas dos poderes instituídos e seu efeito sobre os cidadãos, a liberdade, a responsabilidade política, a intervenção cívica e a reflexão sobre a própria existência e a sociedade em que vivemos. O espectáculo tem a duração de 55 minutos e nele participam três actores, um dos quais músico. A música não só é tocada ao vivo, como também foi composta propositadamente para este trabalho. À apresentação, segue-se um debate sobre o teatro e a sua prática, sobre os temas atrás referidos e sobre a obra de Raul Malaquias Marques, escritor e jornalista, com a presença do encenador. A simplicidade e a economia de meios (nomeadamente de espaço e de equipamento) presentes neste espectáculo servem também como incentivo ao desenvolvimento da prática do teatro na escola.
Por esta amostra de uma agenda parcial se pode ver que o Teatro no Algarve está a ter outro fôlego. Há vontade, há público. Falta o financiamento que a vontade e o público merecem.

Já não há herois

No dia 24 de Janeiro o teatro das Figuras trouxe a Faro o último trabalho de Beatriz Batarda. De Homem para Homem é o título de um espectáculo encenado por Carlos Aladro, baseado no texto Jacke wie Hose, do dramaturgo alemão Manfred Karge, que por sua vez se inspirou numa história real. É a história de uma sobrevivente. Numa época em que o trabalho escasseava, Ella Gericke, uma jovem mulher, depois de se ver viúva, tenta vencer a penúria através de sucessivos enganos. Assume a identidade do marido morto, trabalhando na condução de uma grua. Põe uma braçadeira nazi para não lhe fazerem perguntas indiscretas, adopta a postura de um guarda num campo de concentração para fugir à inspecção militar, volta à identidade de mulher para não ser acusada de desertora, prostitui-se por um prato de grão, chora copiosamente a morte de um coelho e obriga os prisioneiros a caminharem sem descanso ao longo da sua cela. No final da sua vida descansa em paz, na pele de uma personagem dos seus contos infantis.
A cenografia de Manuel Aires Mateus, arquitecto que também assinou o cenário do espectáculo Turismo Infinito, é imponente, exibindo uma mão gigante, que ocupa grande parte do palco, cujos dedos caem da boca de cena para a plateia, e ao longo da qual a actriz vai evoluindo, no seu ser frágil, perante o poder simbolizado. Ella Gericke apenas um joguete, um ponto minúsculo no meio de uma engrenagem dominante. Os dedos da mão escondem os diversos adereços que a actriz utiliza ao longo do seu desempenho.
O desenho de luz de Nuno Meira desoculta os vários matizes com que a actriz pinta o seu desempenho. São 26 quadros. 26 retratos de uma mulher que usou de tudo para sobreviver.
A música de Manuel Aires Mateus consegue evocar as sensações adequadas ao momento que o público está a viver.
Beatriz Batarda tem o desempenho esperado de uma actriz com a sua experiência. Uma noção de ritmo adequada, uma presença que se impõe pelas sucessivas metamorfoses do corpo. As transmutações da voz, porém, não fazem justiça ao papel que lhe é exigido. Beatriz Batarda prendeu o público num monólogo de 90 minutos. Mas faltou-lhe o génio de Maria João Luis no espectáculo Stabat Mater. Faltou-lhe a força de Ana Leitão no espectáculo Stabat Mater Furiosa. Faltou-lhe a versatilidade de Telma Saião no espectáculo Valsa nº6. Faltou-lhe a poesia de Cláudia Nóvoa no espectáculo Ela uma vez. Monólogos com textos fortes sobre a coragem de mulheres que não aceitaram ser mais um dedo na grande mão que domina. Textos que apontaram mulheres que, a seu modo, foram mais um grão de areia na engrenagem. Mulheres vulgares que se tornaram heroínas. Tal com dizia Fernado Mora Ramos, “Manfred Karge, que trabalhou no Berliner Ensemble, conhece bem a lição brechtiana, a lição contida na famosa A Boa Alma de Setsuan, que demonstra como os bons neste mundo são considerados tolos. E esta peça é isso, uma manobra global de estranhamento no sentido brechtiano. (…) Ella foi uma criatura que amou, foi desejada, foi solidária, que não optou, mas não quis a guerra, que teve de matar, que foi perseguida, que vendeu o corpo, que se meteu debaixo das mantas com um empresário, que traficou… É a história de uma sobrevivente num mundo que impede a vida, a história de uma vida solitária e clandestina que se multiplicou em identidades forjadas ao sabor dos condicionamentos.” Mas se esta é uma encenação sobre a dignidade humana, faz parte de um estranhamento não só brechtiano interrogarmo-nos como o próprio encenador o fez quando coloca em questão o seguinte dilema: “Às vezes pergunto- me se o autor entende que é melhor morrer dignamente do que viver indignamente”. Esta é a história de uma mulher que não tem a mínima piedade pela pessoa humana. Mantém os seres humanos sob um penoso cárcere e tortura e liberta coelhos da sua prisão. É a história dos que não merecem ficar na história. Para quê então elevá-la à condição de grande dilema universal?

O bobo, o ministro e o Rei


Foi no dia 30 de Janeiro que a companhia de teatro Te-Atrito estreou a sua última produção. Tratou-se de um espectáculo baseado no texto de Raul Malaquias Marques Um bobo para o Reino e encenado pelo director artístico do Chapitô, José Carlos Garcia.
O texto é uma fábula irónica que discute a legitimidade do poder por governantes que perderam as competências essenciais para o exercer. A perda da voz é a alegoria das sucessivas perdas de capacidades fundamentais para o exercício de uma boa governação. O rei perdeu a voz e entregou o governo do seu país ao bobo. Este aceitou o pesado fardo da governação a contra gosto mantendo, contudo, uma relação de lealdade para com o seu soberano. O Rei tem a clareza de espírito para perceber que a sua incapacidade o impede de governar e foge do seu país, juntando-se a uma trupe de saltimbancos onde imita vozes de animais. O bobo continua a manter o espírito crítico ao serviço da governação e o seu ministro é elevado à categoria de bobo, porém, sem conseguir exercer a sua função de forma correcta. É um bobo sem piada. Teve de ser despromovido e continuar a ser ministro.
Esta história é transmitida através de uma economia de meios que contribui para o ritmo do espectáculo. Os actores Pedro Monteiro, Rita Neves e Igor Martins desdobram-se em várias personagens que a encenação simbólica de José Carlos Garcia redescobre através do adereço, do pormenor no figurino, do suporte musical. Assim, os três actores são indiferenciadamente as empregadas de limpeza, o ministro, o bobo, o rei, o médico. A música assume-se como uma personagem. O babete é o símbolo do poder e passa do pescoço do rei para o do bobo, quando este assume o poder. Mas o babete é também o toucado de uma das empregadas da limpeza. Um carrinho de transporte de bagagem é palanque, veículo de transporte do soberano, mesa de operações, trono real. A operação em que o médico verifica as cordas vocais do rei é hilariante, pois retira da garganta do soberano um molho de cordas embaraçadas ao mesmo tempo que se ouvem uns ruídos distorcidos de guitarra eléctrica. Veredicto: as cordas vocais do soberano estão desafinadas.
Os sons que preenchem o espectáculo, concebidos e transmitidos pelo actor Igor Martins são também elementos que contribuem para penetrar no imaginário do espectador. As vozes do povo chamando pelo Rei, as diferentes sonoridades da guitarra eléctrica, os guizos do bobo são pormenores relevantes para a assunção das várias mensagens que o texto quer transmitir. A consciência do Rei quando percebe que chegou a sua altura de abdicar do trono, entregando-o à pessoa mais arguta do reino: o bobo, que através da observação atenta da realidade aponta os pormenores a serem modificados. O Rei, personagem apolínea, porque racional, coloca sobre os ombros de Diónisos o pesado fardo da ordem. O bobo passa a Rei e o Rei segue, livremente, com a sua vida divertindo as pessoas através dos sons estranhos que solta da sua garganta. Depois dos sons de guitarra eléctrica passou a imitar animais. A contenção no gesto de Rita Neves quando imita o gato, o cão, o porco, é equilibrada, anunciando a parte que faz perceber o todo.
No final o ministro que é especialista no protocolo e dá sentenças com pronúncia francesa só consegue desempenhar o papel de ministro, pois não tem o espírito suficientemente arguto para ser engraçado. Só tem perfil para ministro.
O texto foi adaptado à realidade dos três actores, preservando-se contudo a sua mensagem original. É importante saber acabar e saber o tempo exacto para o fazer. Delegar o poder quando as competências se nos falham enquanto não lesamos a coisa pública com a nossa incapacidade de discernimento.
Este é um projecto de educação pela arte que convida a reflectir sobre valores como o respeito pelo serviço do poder, sobre a cidadania, sobre o exercício da governação. Um trabalho que convida os jovens a voltarem ao teatro e os mais velhos a descobrirem em si a capacidade de brincar. Um trabalho de puro prazer que obriga a pensar com seriedade nos valores ético-políticos a partir dos quais se constrói a sociedade. Este espectáculo resulta de uma parceria com a DEVIR / cAPA – Centro de Artes Performativas do Algarve, a DREALG, as Câmaras Municipais de Faro e Lagoa, a ARC Músicos de Faro e o Instituto Português da Juventude – Delegação de Faro.

O Tempo dos demiurgos


Ponto, linha, plano. Poderia ser o título de uma obra de Kandinski mas aplica-se, neste caso, ao trabalho de um jovem português que se dedicou ao novo circo e à técnica do mastro chinês. Num espectáculo de 40 minutos João Paulo Santos faz o espectador passar por estas três dimensões, assumindo o risco de trabalhar sem rede. Um tempo que corre mais devagar. O tempo do criador de universos.
João Paulo Santos tem um olhar vivo que fala, transmitindo toda a emoção e força de viver. Acrobata em fulgurante ascensão, João Paulo Santos iniciou a formação em Artes Circenses no Chapitô, em Lisboa. Aos 20 anos rumou para França onde se formou ao nível superior na consagrada escola francesa Centre Nacional des Arts du Cirque, em Châlons-en-Champagne. Com a sua companhia “O Último Momento”, criou “Peut-être” com Guillaume Dutrieux, que foi seleccionado para Jeunes Talents Cirque em 2004. Contigo é uma obra criada por dois homens que gostam de inventar novas linguagens para o corpo. João Paulo Santos convidou Rui Horta para entrar nesta aventura de criação, o que constituiu um desafio para os dois. João Paulo teve de se libertar da rigidez da acrobacia, presente na arte do mastro chinês. Rui Horta é o homem que, desde cedo, nos habituámos a ver reinventando a dança contemporânea. Juntos, segundo João Paulo Santos, criaram um espectáculo assemelhando-se a duas crianças a construir um castelo. A música, admirável, foi criada para este espectáculo por Victor Joaquim e Tiago Cerqueira e o figurino esteve a cargo de Pedro Pereira dos Santos.
No espectáculo Contigo há uma dimensão onírica que advém da noção de tempo que o acrobata desenvolve. Há um sentido de alteridade no qual se brinca com o plano vertical, impossível de alcançar para a maior parte dos espectadores. João Paulo observa o mastro, salta e agarra-se à linha vertical, para logo a seguir se separar dela, como se de um jogo de sedução se tratasse. Parte para uma distância maior e de novo se aproxima de um salto do objecto desejado, abraçando-o. Mais uma vez se separa, desta vez para uma distância maior. E o salto é mais convicto, carregado de uma vontade que o faz abraçar-se com mais força. E finalmente desenvolver um diálogo mais próximo com o plano vertical.
João Paulo sobe pelo mastro com uma leveza e uma subtileza desconcertantes. Faz-nos pensar que é fácil o desafio vertical. No entanto, quando chega ao topo, mostra que a queda dos graves é um facto real e que a gravidade é uma lei da física. Quando atira uma pedra para o chão e ela cai ruidosamente o espectador apercebe-se que só ao acrobata é dado o poder de desafiar as leis da física. Só no instante em que a pedra cai, o espectador se confronta com o perigo de se trabalhar sem rede.
João Paulo Santos articula alguns objectos que entram em diálogo com o mastro chinês. A cadeira transforma-se em mochila, transportada até ao topo do mastro, para aí se deter qual posto de vigia e repouso do guerreiro. Para além da cadeira João Paulo leva consigo uma vara que transforma em remo, em monóculo, em pau de chuva, em vara de equilibrista. Os objectos jogam um jogo de diferentes identidades, ajudando o acrobata a assumir também várias personalidades. Assim, João Paulo Santos é um explorador que assume o risco da aventura, desocultando várias faces do humano. Ele é, a um tempo, Galileu estudando a queda dos graves, o Principezinho, explorando o universo do seu pequeno planeta, o aventureiro pronto a gritar “Terra à vista!” depois da proeza de cruzar o oceano. E é apenas a criança que reinventa o sentido dos objectos, alterando a sua essência dentro de um jogo de sentidos e significados.
Com a sua vara, João Paulo Santos cria um elo entre o Céu e a Terra, os dois arquétipos primordiais que unidos, conceberam a multiplicidade do real. Recuando aos mitos mais antigos que criam o imaginário colectivo da humanidade, Mircea Eliade conta que numa tribo nómada da Austrália, os Achilpa, os homens acreditavam que o ser divino Numbakula tinha aberto um buraco no céu, descido por uma vara até à Terra e, depois de ter criado a vida e toda a multiplicidade do real, ungiu a vara com o seu sangue, subiu por ela e desapareceu num buraco no céu. A partir daí a tribo passou a olhar a vara como um objecto sagrado que unia os dois mundos. Neste espectáculo João Paulo Santos devolveu ao espectador o olhar inocente do mito cosmogónico. Em contigo nós fomos a tribo dos Achilpa que assistiu maravilhada à criação do mundo pelo ser divino Numbakula. Nos 40 minutos de terror sagrado o público sentiu o poder do objecto sagrado, dominado por um ser que, não sendo sagrado, tem o dom de chegar aos nossos corações.
João Paulo Santos tem levado este espectáculo a todos os continentes. E, com uma linguagem que ultrapassa a palavra, tem conseguido chegar à emoção daqueles que assistem à verdade e ao risco deste acrobata. João Paulo brinca com as várias potencialidades deste jogo do mastro. Agarra-se, desliza, enrola-se, deixa-se cair. Neste espectáculo a destreza física foi articulada com a leveza de uma coreografia concebida para o espaço. Um espectáculo em que se sustém a respiração e se suspira de alívio, reconciliando o ser consigo mesmo.
Estreado no Festival de Avignon em 2006, onde foi muito bem acolhida pelo público e programadores internacionais, o espectáculo assume o perigo. É que em palco não há rede de segurança nem fios de metal presos à cintura, adivinhando-se ocasiões de fazer suster a respiração. É como se o tempo no topo de tudo corresse mais devagar. O tempo do demiurgo.
O Teatro Municipal de Portimão está a preparar uma residência artística com João Paulo Santos e apresta-se a ser um dos primeiros teatros a programar uma rede internacional de Novo Circo.