Friday, November 21, 2008

A vida é um Cabaret!


Quando pensamos em Cabaret, a nossa memória abre-nos a janela do filme homónimo, realizado por Bob Fosse e protagonizado por Lizza Minelli. A história de um trio amoroso que viveu plenamente os seus afectos durante a República de Weimar inspirou gerações de cinéfilos e amantes do género musical. Mas o libreto de Chistopher Isherwood, baseado na sua obra Adeus a Berlim, pode considerar-se como um retrato fiel de uma realidade decadente na Alemanha no rescaldo da 1ª Guerra Mundial. O próprio escritor se considera como “uma máquina fotográfica com o obturador aberto, passiva, sem pensar.” No entanto a própria selecção da sua observação do real já implicou uma tomada de posição, que originou o já clássico Cabaret. Diogo Infante revela, no programa distribuído com o ingresso do espectáculo, que é um admirador de musicais. Assume que a construção da sua pessoa se fez com a admiração por filmes como Música no Coração ou Serenata à Chuva. Cabaret não foi excepção no seu currículo de emoções. Para o encenador Diogo Infante “Cabaret é, no limite, uma celebração da vida. Ao colocar-nos como pano de fundo um dos episódios mais negros e marcantes da história da Humanidade, o espectáculo leva-nos a uma reavaliação das nossas prioridades. Foi com esta consciência que Diogo Infante ousou encenar em Portugal uma versão de Cabaret. Dotado de um elenco de luxo, uma orquestra a tocar ao vivo e um corpo de baile dotado de ritmo e de presença em palco, pode dizer-se que Diogo Infante ganhou a aposta. A recriação do ambiente de Berlim nos anos 30 esteve atenta aos pormenores, e nem a orquestra, composta por 10 músicos, com direcção musical de Ruben Alves, escapou ao portentoso guarda-roupa de Maria Gonzaga. A cenografia de Catarina Amaro cativa o espectador logo na primeira cena, na qual os actores passam por uma fronteira inóspita, para aos poucos o ir conquistando e revelar-se em todo o seu esplendor no confronto com o Cabaret. O mobiliário de cena insere o espectador na envolvência dos anos 30 e as mudanças são feitas de forma harmoniosa e dentro de uma cadência adequada. O quarto do escritor Clif Bradshaw é a imagem desse cuidado nos pormenores e na ambiência de uma época específica. a cenografia, a música, o guarda-roupa, suportam de forma notável o brilhante elenco deste musical. Henrique Feist apresenta-se como o mestre-de-cerimónias de um cabaret decadente na Berlim dos anos 30. Canta, dança, interpreta de forma magnífica esta personagem de Isherwood. A assunção da vida mundana e das relações atípicas não constitui nenhum problema para os frequentadores do Cabaret. A assunção da homossexualidade, das relações a três ou das relações fortuitas é clara e aceite sem qualquer tipo de preconceito. Esta é a história de um escritor norte-americano, Clif Bradshaw, interpretado por Pedro Laginha, que vive um romance fortuito com uma cantora de Cabaret, Sally Bowles, interpretada por Ana Lúcia Palminha. O desempenho desta actriz é notável, realçando dentre a interpretação, a capacidade de dançar e a sua admirável voz. Todo o elenco tem uma aptidão exímia para o canto, tornando este espectáculo uma grata dádiva, quanto mais não fosse, apenas pelo seu canto. A envolver a história amorosa do escritor com a cantora de cabaret impõe-se uma outra história, mais tenebrosa, que ensombrou a humanidade: a ascensão do governo nazi. Nesta história de amores e desamores observamos os tais retratos de que Isherwood assumia tirar. Vemos o escritor a negar o seu lado homossexual assim que conhece Sally Bowles, vemos uma relação de conveniência ser transformada num amor sério e profundo, vemos o partido do nacional-socialismo a ter cada vez mais simpatizantes e aderentes, vemos as relações menos ortodoxas assumirem-se sem problemas de discriminação mas vemos também as lojas dos judeus alemães a serem apedrejadas e casamentos com judeus a serem desfeitos em nome da segurança. Vemos uma relação a ser desfeita pela obstinação de dois jovens que, não obstante amarem-se, não conseguem olhar um para o outro e verem um ser humano igual em sentimentos. Clif quer voltar para casa. Sally quer continuar a cantar. O sonho desfaz-se e ele volta para os Estados-Unidos, enquanto ela regressa ao Cabaret. A República de Weimar termina e os profissionais do Cabaret terminam os seus dias juntos, num campo de concentração. Um final fortíssimo que abala as consciências do esquecimento relativo ao pesadelo do holocausto nazi. A primeira parte do espectáculo termina com a festa de noivado de duas personagens que já na idade madura mas que ainda assim, pensam que têm o direito de experimentar ser feliz. Isabel Ruth e Francisco Gomes desempenham de forma comovente estas duas personagens. O hino do nacional-socialismo, cantado por todos os convidados da festa de noivado consegue arrepiar a plateia, ensombrando o olhar que se revela desconfiado na segunda parte do espectáculo. Na segunda parte o castelo de areia desfaz-se por completo. O noivado desfaz-se, os amantes separam-se, o cabaret fecha e o escritor deixa a Alemanha, por discordar com o rumo que a política está a tomar. Clif, escritor esclarecido, lê o Mein Kampf com um sentimento de temor e é o único que parte, consciente da tragédia que irá acontecer. O Mestre-de-cerimónias continua a cantar que a vida é um Cabaret, convidando-nos para sair de casa e experimentar as inúmeras sensações que se podem viver naquele ambiente.
É difícil montar um espectáculo de café-concerto minimamente digno. É preciso encontrar, para além de bons actores, excelentes cantores, virtuosos músicos, exímios bailarinos, e um guarda-roupa com a decência que este tipo de espectáculo pede. Os cenários e os adereços de cena também deverão acompanhar a exigência estética deste tipo de espectáculo. Amiúde, as companhias que se aventuram a trabalhar dentro desta estética são uma desilusão. Ou os cantores desafinam, ou os bailarinos não têm consciência do ritmo, ou o guarda-roupa é decadente e fora de época, ou o cenário é deprimente. Com este espectáculo nada disto aconteceu: tudo estava onde deveria estar. Depois de O Cabaret de Ofélia, de Armando Nascimento Rosa, onde se assiste a uma viagem por algumas margens de Fernando Pessoa, e no qual Cláudio Hochman teve uma preocupação detalhada com todos os pormenores, este espectáculo impõe-se pela qualidade, pela ousadia e pela reflexão que obriga o público a fazer no final. Um excelente espectáculo, no Teatro Maria Matos de 4ª a Domingo até dia 28 de Dezembro.

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