Wednesday, July 2, 2008

O regresso do Bataclan ao teatro Lethes


Há muito tempo que não se via um espectáculo assim. A produção prometia um espectáculo que convidava a “um mergulho num universo contagiante onde a música, o gesto e a palavra invadem os sentidos. Ao som da música popular brasileira uma homenagem à Mulher nas palavras de Alberto Caeiro, Tom Jobim, Chico Buarque, Luís Gonzaga, Vinícius de Morais, Djavan e Lenine, entre outros. A produção prometeu e nós acreditámos. Mas aquilo que se viu não foi uma homenagem à Mulher, como o tinha feito Cláudia Andrade no belíssimo espectáculo “Ela uma vez”, também apresentado no Teatro Lethes. O que se viu foi uma mulher, Valéria Carvalho, com uma voz bonita mas a precisar de muito trabalho ao nível da afinação, acompanhada por João Ferreira e por Virgílio Gomes, homenageando-se a si própria. Gemendo, abanando as ancas, subido para cima de cubos negros de forma a melhor podermos apreciar as suas pernas e dizendo os poemas com omissões de versos e erros que mudam o sentido por completo ao texto. O ambiente no palco lembrava o de um bar, com cortinas vermelhas e uma cadeira de que Valéria se servia amiúde. Para além da cadeira havia um espaço para a percussão e outro para o guitarrista. Um cabide e dois cubos negros que serviam de plataforma para Valéria subir. Sem nenhuma razão dramatúrgica que o impusesse recitou o poema de Chico Buarque Ana de Amsterdam de cima de uma plataforma elevada. Sempre com microfone. E coloca umas meias de seda preta enquanto recita um outro poema, para logo a seguir as tirar, quando já toda a plateia pôde apreciar com detalhe as suas pernas. Pôs as meias e tirou-as sem nenhuma razão dramatúrgica que o obrigasse. Foi buscar duas colheres de sopa, com as quais brincou, sem qualquer relação com a fala do poema que lhe estava subjacente. O poema Folhetim, de Chico Buarque que foi dado a conhecer por Gal Costa, foi transposto para a voz de Valéria Carvalho de forma grosseira e desafinada, tal como o tema celebrizado por Maria Bethânia Sem Açúcar, igualmente de Chico Buarque, foi cantado sem se dar o devido peso à letra forte, homenageando as mulheres vítimas de violência doméstica. Senão, vejamos: “Todo dia ele faz diferente, não sei se ele volta da rua /Não sei se me traz um presente, não sei se ele fica na sua /Talvez ele chegue sentido, quem sabe me cobre de beijos/ Ou nem me desmancha o vestido, ou nem me adivinha os desejos /Dia ímpar tem chocolate, dia par eu vivo de brisa/ Dia útil ele me bate, dia santo ele me alisa / Longe dele eu tremo de amor, na presença dele me calo / Eu de dia sou sua flor, eu de noite sou seu cavalo/A cerveja dele é sagrada, a vontade dele é a mais justa/ A minha paixão é piada, sua risada me assusta / Sua boca é um cadeado e meu corpo é uma fogueira/ Enquanto ele dorme pesado eu rolo sozinha na esteira /E nem me adivinha os desejos/ Eu de noite sou seu cavalo”. Este poema traduz a vida de uma mulher infeliz, sujeita aos caprichos e às tareias de um homem sem valores e, por si só, não traduz uma homenagem à Mulher, como dizia a produção. Com a encenação do homem vestido de branco e chapéu à Borsalino a entrar, sentar-se, beber uma cerveja e ir-se embora a cambalear, é uma homenagem a todos os malandros que passam incólumes pelo palco da vida abusando das mulheres e prosseguindo, considerados heróis pelos seus congéneres.
O célebre tema de Luís Gonzaga Saia Bastiana serviu para que Valéria partilhasse uma vez mais com os espectadores as suas pernas, ao subir a saia à medida que ia cantando o tema. Em cima de uma plataforma, claro!
O tema “Mania de você”, de Rita Lee fez-nos desejar correr até ao coliseu de Lisboa no próximo dia 1 de Julho para assistir a um concerto da própria Rita, cantando este tema afinado e com os agudos que lhe são próprios.
O heterónimo pessoano Alberto Caeiro foi inserido nesta colectânea de suposta homenagem à Mulher porque é sempre de bom-tom inserir Fernando Pessoa num espectáculo de poesia, mas mesmo assim com erros. Valéria, ao citar um excerto do “Guardador de Rebanhos” disse: “Eu não tenho filosofia, tenho sentido” em vez de empregar a palavra correcta: sentidos. O que faz toda a diferença ao nível do esquema semântico do poema. Também Florbela Espanca, que nem sequer consta da folha de sala, sendo remetida para o confortável “entre outros”, não foi tratada de forma mais dilecta. Antes pelo contrário, pois a única poetisa portuguesa que constou da colectânea foi citada omitindo um verso do seu soneto Amar e baralhando pronomes. É sabido e estudado que o último verso do soneto Amar, “Que me saiba perder para me encontrar”, encerra em si significado pouco evidente, filosófico, do âmbito da ontologia. Florbela precisa de se libertar de si entregando-se a outros para finalmente se encontrar na sua essência de Mulher. Valéria disse: Que me saiba perder para te encontrar, o que suja todo o sentido original do poema.
Não é assim que se homenageia a Mulher. Para se dizer poesia é preciso sabê-lo. Fazer desse acto um ritual sagrado, saboreando as palavras e dizendo-as como o poeta as escreveu. Para se cantar é preciso trabalhar a afinação. Para se homenagear a Mulher e a Língua Portuguesa é preciso respeitar as duas. Talvez este espectáculo fosse adequado para o extinto “Zé das Couves”, espaço sociologicamente interessante para um estudo de uma Lisboa decadente. Não se enquadra para a dignidade do Teatro Lethes e muito menos para a dignidade da Mulher ou da Língua Portuguesa. Maria João dá dignidade à mulher e à Língua Portuguesa. Cláudia Nóvoa presenteou todas as mulheres com “Ela uma vez”: uma autêntica pérola com poesia escrita por sete mulheres, portuguesas e brasileiras. Eugénia de Melo e Castro ganha prémios no Brasil homenageando a Mulher e a Língua Portuguesa. Não precisamos de quem se homenageie a si própria sem sentido dramatúrgico nem cénico. Nem de quem se engana nos textos de referência de poetas de sentido universal, nem de quem desafine. Precisamos de actores honestos.

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