Friday, March 28, 2008

Stabat Mater Furiosa


Figueira Cid apresentou um trabalho memorável no espaço alternativo eborence da Companhia A Bruxa Teatro. A partir do texto de Jean-Pierre Siméon e da tradução de Filipa Guerreiro, Figueira Cid encenou o espectáculo Stabat Mater Furiosa, ao qual Ana Leitão facultou a sua especial interpretação. Stabat Mater Furiosa é um texto que nos fala da guerra e dos gritos que ecoam em todas as mães que perderam os seus filhos num campo de batalha, ou numa sala de tortura, ou numa invasão feita intempestivamente a sua casa. Como diz a actriz no belíssimo texto inicial, “Eu sou aquela que recusa compreender, a que não quer compreender e implora, e se eu implorar não riam, nada de encolher os ombros ou murmurar, e nada de pretextos e olhos baixos para evitar a minha voz. A minha emoção não é um cão que eu passeie, não é um cãozinho a quem faça festinhas e passeie, a minha emoção é negra e pesada tem o peso do machado e o gume do sílex. E se rezo é sem deuses, se rezo é como quando se pede por favor, é a vida que peço suplico a vida e nem sei a quê ou a quem mas sei que a oração é pesada e negra, que não evoca, não comenta, não apura contas, a minha oração ela é só um momento…”. A oração é de alguém que não se conforma com o Homem da Guerra. Que tinha uma vida pacata e feliz até ao momento em que vê a sua família despedaçada e que insiste em não compreender as razões que os grandes pensadores criam para a justificar. “Eu sou aquela que faz por não compreender, por não te entender, por não entender as tuas razões. Odeio as tuas razões, silencio as tuas razões”.
Stabat Mater é o hino da mãe dolorosa junto ao corpo do seu filho morto, com a consciência de que os filhos de hoje são os guerreiros e os assassinos de amanhã: “Que mamem no seio da mãe o remorso do que ainda não fizeram, porque tão claro como duram os sois no azul eterno, as crianças de hoje são os guerreiros de amanhã, esta é a minha verdade, é mais antiga que a mais antiga estrela nascida na noite das sombras, conceber é já continuar a genealogia do assassínio. Um texto que acaba com um sonho. Um sonho onde os homens são frágeis, mais frágeis do que o junquilho, onde se pode novamente ter esperança.
O texto de Jean-Pierre Siméon é uma oração que põe o dedo na ferida mas que termina com a possibilidade da mudança, se o Homem da Guerra quiser comparar-se ao junquilho. Mas o sonho permanece, porque “é a obstinação da cerejeira que faz transbordar a luz”.
O espectáculo começa com a actriz encostada junto a uma parede, sentada num chão de areia. Descalça, enverga um traje vermelho com uma estola azul, lembrando a habitual veste de Maria junto à cruz, velando o seu filho morto. Quando Ana Leitão começa a falar a sala parece ganhar uma amplificação surpreendente, tal é o efeito que a voz da actriz provoca. Ana Leitão diz a oração aos filhos mortos com a dor e a sobriedade que se espera de uma figura em sofrimento. Um sofrimento que não recusa a esperança, conjugada com a força de uma cerejeira em flor. Todo o desempenho da actriz é irrepreensível. Mesmo quando é acompanhada por alguns momentos de percussão sendo a voz, naturalmente, amplificada, a postura mantém-se com a dignidade esperada. Há um momento em que a mãe dolorosa entra numa espécie de relicário, dentro do qual partilha os horrores vividos e anuncia os cenários sonhados. “Criaremos os nossos filhos, sem vós, apesar de vós e contra vós, o seu vício será a doçura, juro-vos que serão mais ingénuos do que as flores, quando encontrarem uma pedra irão procurar as cores para a pintar, quando encontrarem um pau, irão plantá-lo para que dê laranjas.” Neste cenário branco, despojado, a actriz partilha o seu sofrimento com a dor de todas as mães dolorosas e despoja-se de si, para se fundir nas imagens de dor que são projectadas dentro do relicário. Admirável. Belo como o lamentoso hino que lhe serviu de mote. Uma autêntica oração a uma deusa pagã que gerou os filhos para os ver morrer no campo de batalha. Um trabalho obrigatório a ver nos antigos celeiros da EPAC, em Évora. Neste mês de abundância teatral podemos dar-nos ao luxo de escolher. E se os programadores não primam por trazer ao Algarve este bom teatro que se faz no nosso país, o bom teatro merece que nos desloquemos cerca de 200 quilómetros para o apreciar.

Monday, March 10, 2008

A vida da Comédia


Recriando o formato do espectáculo As Obras Completas de Shakespeare, que cumpre o heróico feito de estar em cena há cerca de 12 anos, a Companhia Teatral do Chiado estreou em Setembro o espectáculo A Bíblia: Toda a Palavra de Deus (Sintetizada), de Adam Long, Reed Martin e Austin Tichenor. Esse espectáculo continua em digressão pelo país, divertindo a partir de um tema convencionalmente considerado sério: A Palavra de Deus, exposta nos livros sagrados que compõem a Bíblia. Interpretados por João Craveiro, Paulo Duarte Ribeiro e Tobias Monteiro, a encenação continua a seguir a linha de Juvenal Garcês.
O espectáculo assume-se como um musical divertido que conta com a composição de, pelo menos, 10 temas, da autoria de João Craveiro e Paulo Duarte Ribeiro. As coreografias originais também são da autoria de Paulo Duarte Ribeiro.
O espectáculo baseia-se na sequência dos livros da Bíblia, passando por eles desdramatizando o teor pesado que geralmente se dá ao livro sagrado. Ao invés de se jurar sobre ele, dança-se e ri-se sobre ele. O espectáculo começa com o informe, simulando o caos inicial. Os actores rompem uma espécie de saco vitelino de onde surgem para a luz e para a vida no paraíso. Um órgão de igreja, ao canto, que permite o epíteto da Palavra de Deus “sintetizada” vai assinalando as passagens mais importantes. Até de descobrimos que no primeiro dia Deus criou o Céu e a Terra, no 2º fez bacalhau com batatas, ao 3º dia criou a terra e os céus, no 4º já fez peixe grelhado com batatas e brócolos… É dentro deste espírito provocador que os três actores ousam brincar com uma das religiões do Livro. O texto foi adaptado à realidade portuguesa, e ao contexto actual. É brilhante a forma como se brinca com o Genesis, articulando o grupo de Peter Gabriel com o 1º livro da Bíblia, fazendo de imediato a relação com Kate Bush. Mas se este jogo sintáctico de relações algo absurdas é evidente para quem viveu nos anos 80, o público mais jovem e o público menos atento aos fenómenos musicais tem de ter outro tipo de referências para perceber as relações e activar o dispositivo que provoca o riso. Por isso é feita também a alusão à memórias das feiras para o estado pós-mortem. Segundo a visão da Bíblia contada às crianças, os mortos chacinados, não teriam sido chacinados mas ido para a “Terra do Leitinho com mel”, onde podiam brincar na roda gigante, nos carros de choque, ao som do Eye of The Tiger. O ritmo, enérgico ao princípio, vai perdendo a sua intensidade com alguns quadros mais morosos, como o da Arca de Noé, ou o das Tábuas de Moisés, desvendando os dez mandamentos não editados, dos 20 iniciais. Há piadas bem conseguidas, como a do desporto rei ser a patinagem artística, com o seu público bem educado e culto, apreciando as acrobacias bonitas, até à piada mais regional, como a do mandamento que obriga ao estacionamento livre e acessível em Portimão. Aliás, as piadas adaptadas à realidade nacional nem sempre foram felizes, como as que se brincava jocosamente com colegas de outras companhias de teatro ou mesmo… com Sérgio Godinho.
No global o espectáculo assentou num desempenho muito positivo dos actores, que brincavam consigo próprios, dando gerando por vezes a confusão entre o que é representação e o que é uma discussão entre colegas de trabalho. Talvez se abusasse das piadas acerca dos rapazes “com um piquinho a azedo”, descendo o nível das piadas a uma brejeirice quase rasteiro. No entanto, a boa disposição desceu do palco à plateia e a comédia teve eco nos diversos tipos de público que enchiam o auditório de Lagoa.

Friday, March 7, 2008

A vida do teatro


Interpretar a vida de um reconhecido dramaturgo pode ser um projecto tão interessante quanto ambicioso. Como foi a sua vida antes de se tornar imortal? Como terão vivido mestres como Shakespeare, Camões, Moliére, Gil Vicente? E terão sido reconhecidos em vida, apesar do seu génio? Estas incursões pela intimidade dos autores trazem amiúde um cunho de Pirandelleano aos textos e aos espectáculos deles resultantes.
A Companhia de Teatro das Beiras, convidada pela companhia Al-Mashrah para participar no Teatro do Inverno, em Tavira, trouxe ao público um excerto da vida de Moliére, contado pelo seu admirador e dramaturgo Goldoni. Carlo Goldoni, veneziano, nasceu há 300 anos (1707) e operou no seu tempo uma profunda reforma do teatro, contribuindo definitivamente para o estabelecimento de regras e conceitos que viriam a abrir as portas do teatro moderno. A obra apresenta bastantes detalhes da vida do autor francês, trazendo-se à cena as suas virtudes e desencantos, e revelando Goldoni o seu olhar arguto sobre o mundo em mudança. “Moliére” é uma comédia biográfica, onde Goldoni mistura temas do TARTUFO com os amores de Molière e da actriz Bejart. É uma homenagem a um dos seus mestres declarados, para além de um ataque a hipócritas e maldizentes, de que tanto sofria o próprio Goldoni. A obra apresenta bastantes detalhes da vida de Molière. Algumas personagens correspondem a sujeitos reais: Valério não é outro que o comediante, Baron; Leandro é La Chapelle. Goldoni manifesta nesta obra a sua profunda admiração pelo genial autor francês e homenageia-o trazendo a cena as suas virtudes e desencantos, revelando o seu olhar arguto sobre o mundo em mudança, que é também o reino do engano onde “todos somos comediantes, já que o mundo é uma comédia”.“Moliére” tem encenação de Gil Salgueiro Nave, os cenários e figurinos são de Luís Mouro e a interpretação esteve a cargo de Fernando Landeira, António Saraiva, Sónia Botelho, Teresa Baguinho, Sara Silva, Paulo Miranda, Rafael Freire.
Goldoni escreveu uma comédia sem máscaras, em versos Martelliani, assumindo, contudo uma proximidade com os temas e as personagens da Commedia del’Arte. Valério e Foresta desempenham o papel destinado aos Zanni, Isabella e Moliére os apaixonados, a Béjart e o senhor Pirlone os pólos da intriga que querem separar os dois amantes. O final é feliz, com o casamento, o arrependimento e o perdão. Porém, se a intriga está escrita com os condimentos da dramaturgia que deu fama ao autor, a encenação fugiu ao estereótipo da Commédia del’Arte, o que foi pena. Vimos uma criada, interpretada por Teresa Braguinho muito próxima daquilo que se pode esperar de uma criada de Goldoni mas Valério, interpretado por Paulo Miranda, sóbrio e contido, esteve muito longe da inspiração de arlequim. Moliére, defendido por Fernando Landeira, mostrou-nos um Moliére ansioso, preocupado com a censura da sua peça Tartufo, deixando transparecer o egoísmo face à lealdade devida à actriz que o ajudou a conquistar a fama. Quando Béjard, interpretada por Sónia Botelho, depois de uma cena comovente, na qual se sente ultrapassada pela própria filha, diz que vai deixar a companhia de Moliére, este responde-lhe com a frieza que caracteriza alguns encenadores: actrizes há muitas. Aqui Goldoni põe a nu o paradigma da ética dentro do meio teatral: a que devemos dar maior cuidado? À lealdade para com um colega fiel que contribuiu ao longo dos anos para o crescimento do colectivo, ou a um delírio estético de um encenador que se quer consumar naquele momento? A mãe acaba por perdoar à filha e a Moliére, pondo, como qualquer actriz que ama a sua arte, o teatro acima de si própria. Moliére casa com a bela jovem e Béjard, acabada, é uma sombra da própria máscara que se habituou a usar em cena.
Ao nível da interpretação vemos um Moliére pejado de tiques supérfluos, sentado na cadeira do realizador, mas fora de cena. Vemos uma Béjard com a força exigida a uma actriz da sua natureza, um impressionante Pirlone, interpretado por António Saraiva, que para além da máscara sabe expressar todo o artifício de um hipócrita, um Valério contido, e o resto do elenco cumprindo adequadamente os seus papéis. O destaque vai, naturalmente, para Sónia Botelho, que desde a sua entrada em cena, perturba positivamente com a sua presença.O Teatro das Beiras assume-se como um projecto de descentralização para a região da Beira Interior. Tem sido preocupação presente nas escolhas do Teatro das Beiras o percurso pelos grandes momentos da história do teatro, através dos mais destacados autores: Gil Vicente, Antón Tchekhov, Strindberg, Sean Ó Casey, Goldoni, Bertolt Brecht, Tennessee Williams, entre outros. Da mesma maneira, a companhia acompanha a reflexão pedagógica sobre os currículos escolares. Daí a produção regular de teatro endereçado ao público jovem onde, a par da divulgação de textos contemporâneos, houve a preocupação de apresentar os autores nacionais que são objecto de estudo académico (Gil Vicente, Anrique da Mota, Raúl Brandão).