Thursday, February 21, 2008

Flannery For Ever


Um bom texto é difícil de encontrar. A Associação Música XXI, pela mão da professora Ana Paula Baião, descobriu um texto cru e forte, dentro da literatura norte americana, que transformou num espectáculo de assistência exclusiva.
Um Bom Homem é Difícil de Encontrar, de Flannery O’Connor, foi o projecto a que o núcleo de teatro da Associação Música XXI se dedicou neste ano. Num trabalho experimentalista, Ana Paula Baião e mais três actores transformaram três contos retirados do livro da autora norte americana num trabalho dramatúrgico digno de registo. Os contos em causa foram, em primeiro lugar, o que dá o nome ao livro: “Um bom homem é difícil de encontrar”, depois “A gente sã do campo”, e por último, “A pessoa deslocada”. O trabalho dramatúrgico destes contos fulcrais de Flannery O’Connor iluminou uma escrita cruel, pintada a sépia, que lembra o universo de Dogville.
O primeiro texto retrata o último dia de uma família do interior norte-americano dos anos 50, barbaramente assassinada por um homem a quem chamavam O Inadaptado. Ana Baião optou por focar a acção nas duas personagens fundamentais, a avó e o Inadaptado, defendidas por Ana Oliveira e por Bruno Baptista. A psicologia peculiar das duas personagens confere por si só uma tensão dramatúrgica muito peculiar a esta cena. A avó, personificando o egoísmo, tenta salvar a sua pele ultrapassando a dor de ver os membros da sua família desaparecerem um a um, esforçando-se por converter o homem que constituía a sua obsessão mais profunda: o assassino fugido da prisão federal que, com modos polidos, destrói uma família inteira. É a avó a responsável pela mortandade dos seus, uma vez que reconhece o Inadaptado e o verbaliza. Todo este conto caminha desde o princípio para o seu fim abrupto. Desde a necessidade que a avó tem de se vestir como uma verdadeira senhora, com o chapéu e as luvas a condizer com o vestido azul às pintinhas, para o caso de alguém a encontrar morta na auto-estrada, até a visão de cinco túmulos quando a família vagueava na auto-estrada. No final, a frase brutal proferida pelo Inadaptado: “teria sido uma boa mulher se tivesse encontrado alguém para a matar em cada minuto da sua vida”, encerra o destino cruel de um crime sem castigo.
O segundo conto, “A gente sã do Campo”, interpretado por Rita Justino, Ana Oliveira e Bruno Baptista, é uma metáfora irónica aos subterfúgios da vida. Hope é uma rapariga desencantada que muda o seu nome para Hulga, originando um desgosto profundo na mãe. Com a mudança de nome quer mudar a personalidade e o seu lugar no mundo. Não é o doutoramento em filosofia que lhe confere essa maneira de ver o mundo de forma diferente, é a mudança no nome que opera a diferença de identidade. Como anuncia a mãe, “Hulga faz-me lembrar o porão incaracterístico de um navio de guerra”. O confronto das duas mulheres com o vendedor de bíblias é hilariante, assentando a acção num diálogo com veios absurdos. Mas a acção adensa-se quando Hulga se aproxima do vendedor de bíblias. A jovem mulher, portadora de uma perna de pau, deixa-se seduzir por um vígaro que faz colecção de peças insólitas. De dentro da bíblia surge uma garrafa que uísque e para dentro da mala de vendedor é colocada a perna de pau de Hulga, fazendo companhia a um olho de vidro de outra mulher desencantada. No final, uma vez mais, uma frase do falso vendedor de Bíblias que remata a história: “Eu nunca acreditei em nada desde o dia em que nasci”.
O terceiro conto, “a pessoa deslocada,” é aquele em que a marca da dramaturgia cuidada se fez sentir de uma forma mais intensa. A pessoa deslocada é um emigrante da Europa que vem criar a desordem na paz podre que se tinha instalado numa herdade. Ele é eficiente, educado, polido, e faz o trabalho mais rápido que qualquer um dos trabalhadores anteriores. É, por isso, um alvo a abater. A visão dramatúrgica deste conto levou Ana Paula Baião a depurar o texto em frases chave que as duas mulheres, quais moiras trágicas, iam proferindo, enquanto iam enredando o estrangeiro na sua teia de destruição. No final, já devidamente embalado, é enviado de volta para a Europa, a terra de onde vêm todos os males.
A ligação entre os três contos é feita através de uma mala de viagem, que vai ganhando os despojos de cada personagem. As luvas da avó, a perna de Hulga, o próprio emigrante na pessoa deslocada. É a mala que transporta a densidade dramática de cena para cena e a completa no conto final, quando é enviada para a Europa.
Um trabalho experimental que assentou numa dramaturgia que, apesar de ousada, não descurou o sentido profundo da autora. Uma encenação que se revelou arrojada e séria. Um texto original, descoberto por Ana Baião, que revela o que de mais negro há em cada um de nós.

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