Monday, February 25, 2008

Uma valsa para a morte


As companhias de teatro Al-Masrah e BAAL-17 já tinham dado a conhecer ao público algarvio o dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues através do espectáculo Beijo no Asfalto. Segundo o grupo, a descoberta deste autor “foi uma surpresa, primeiro pela riqueza da sua escrita, e segundo pelo nosso desconhecimento não só da obra mas também da sua importância no teatro brasileiro”. Este ano o grupo do Baixo Alentejo apostou noutro texto do autor, classificado pelo autor como “Peça Psicológica”. Valsa nº 6 é um texto onde o autor viaja até às amarguras da doença mental. O espectáculo consiste num monólogo interpretado por Telma Saião e dirigido por Nelson Rodrigues Filho. A ideia de monólogo surgiu a Nelson Rodrigues, segundo uma entrevista que concedeu em 1951 ao Diário Carioca, por considerar que um dos problemas do teatro era “o excesso de personagens”. “Entendo, no caso, por excesso, mais de uma. Pensei, por isso, há muito tempo, na possibilidade de tal simplificação e depojamento, que o espectáculo se concentrasse num único intérprete. Um intérprete múltiplo, síntese não só da parte humana como do próprio décor e do outros valores da encenação. Uma pessoa individuada – substancialmente ela própria – e ao mesmo tempo uma cidade inteira, nos seus ambientes, sua feição psicológica e humana.”
O espectáculo começa com uma visão onírica, quase gótica, de uma personagem branca sentada a um piano branco. O estado de decrepitude em que se encontram as paredes, assim como o chão áspero, de cimento, ajuda à construção de uma atmosfera teutónica e mórbida. O espectador tem a impressão de ter entrado num jazigo. Depois, a rapariga avança até ao centro e a luz começa a iluminar a sua face lívida. Sabemos então que se trata de Sônia. Uma adolescente de aspecto frágil, que sentimos perturbada com muitas dúvidas e muitas incertezas. Não se lembra do resto do seu nome e não se lembra do que lhe aconteceu. Lembra-se, isso sim, de uma música que costumava tocar ao piano: a valsa nº6 de Chopin, que passa a tocar nos momentos em que a memória é recuperada, como um longo tecido que precisa de ser cerzido. Os remendos vão trazendo aos poucos as lembranças de um passado traumático. Com a iluminação do rosto e do corpo surge uma enorme cortina vermelha na parede em frente aos espectadores. O vermelho de múltiplos sentidos que, aos poucos, os vai desocultando. O vermelho das regras que marcam a passagem de menina a mulher, o vermelho da paixão que marca a visão das adolescentes, o vermelho da tragédia anunciada pela obsessão da rapariga pela morte, o vermelho da sexualidade, ora contida, ora aceite, o vermelho do sofrimento e da aceitação de um destino sinistro. Esse longo delírio, simbolizado no panejamento vermelho anuncia-nos uma história que antecipa um desenrolar trágico. Telma Saião interpreta Sônia. Mas também interpreta o médico, a mãe da jovem, o pai, o coro da intriga, os homens alcoolizados que comentam a história. E interpreta a Sônia que não acredita na Sônia. Mais de 14 personagens! A jovem adolescente sofre de afectações da personalidade que têm a ver com o domínio do super ego sobre a sua assunção da sensualidade. Sônia procura a paixão numa fase em que se encontra no limite entre a menina e a mulher. Apaixona-se por um homem mais velho, casado, com quem assume uma relação. Porém, a moral vigente provoca-lhe um distúrbio na personalidade, fragmentando-a. A jovem quer lembrar-se da mulher que assumiu a relação com o homem casado mas tudo se torna indefinido, sem rosto, inclusive o seu nome. Aos poucos, a valsa nº 6 vai dando corpo e forma à memória da jovem. A trama adensa-se e o público vai percebendo que nesta história há uma entrega amorosa, ciúme, culpa, obsessão e morte. Estes ingredientes são estruturados numa dramaturgia que foge engenhosamente ao formato de folhetim. Nelson Rodrigues apresenta a trama fragmentada, como a memória da rapariga, trazendo à sua fala as peças desarticuladas de um puzzle. No final, a valsa nº 6 de Chopin encaminha-nos para a morte da rapariga, revelando-nos que todo aquele delírio de adolescente era uma reminiscência de uma personagem que já estava morta. A prestação de Telma Saião impressiona, não só pela fragmentação de personagens que é capaz de encarnar, mas também pela verdade que transmite em cada uma delas. A menina frágil, educada e pura que nos surge no início transforma-se numa criatura perturbada pela paixão, com traços de uma personalidade esquizofrénica que tem ciúmes da própria imagem quando a olha de revés no espelho. Telma Saião consegue conduzir o espectador a emoções fortes e opostas na mesma personagem, como a compaixão por uma menina que sofre, ou a repulsa por uma mulher ciumenta e cruel que pensa em matar o seu amante.
O texto tem aquela poesia que sobrevive no meio da tragédia cruel, a que Nelson Rodrigues nos habituou. No meio do desespero de uma falha a um domingo à missa, símbolo de mácula na pureza de um comportamento intocável, a jovem diz que “quando chove em cima das igrejas, os anjos escorrem pelas paredes”. A simbolização de uma dor causadora de lágrimas, que arrasta consigo uma ordem protectora. No final, o desfecho adivinhado do assassinato da jovem enquanto tocava o seu tema preferido ao piano, alivia a ansiedade e a tensão crescentes, provocadas pelo discurso alterado, ditado pela demência de Sônia. Uma demência provocada por uma adolescente que levou ao extremo as angústias da crise existencial da mudança de pele sofrida naquela fase de transição. Como texto psicológico, Nelson Rodrigues assume explicitamente certas fobias, como o medo da operação à garganta, símbolo do complexo de castração freudiano, ou a vergonha de olhar para os pés nus, como a imposição do sentido do dever sobre a sensualidade que se está a manifestar de uma forma intensa e ávida. A própria necessidade de ver os móveis com panos por cima tem a ver com a procura de cobrir em si a evidência do desejo latente, que teima em tornar-se manifesto.
Com desenho de luz de Marco Ferreira, direcção musical de João Schmid, figurino de Regina Schimtt, o espectáculo Valsa nº6, produzido pela BAAL-17 em parceria com as instituições brasileiras Vulpeculae produções Artísticas do Rio de Janeiro e pela Pedra que Brilha de Minas Gerais, é um objecto artístico que impressiona e provoca um calafrio de uma estranha beleza no espectador.
Este espectáculo teve a sua ante-estreia dia 1 de Outubro na Escola Estadual de Teatro Martins Pena, Rio de Janeiro e seguiu dias 6 e 7 de Outubro para a estreia oficial em S. João D´El Rei (Capital Brasileira da Cultura), seguindo depois em digressão pelo Estado de Minas Gerais. Quando o Algarve quiser dar a conhecer este espectáculo também aos seus habitantes, poderemos vê-lo, ou revê-lo quando for programado numa autarquia perto de nós.

Thursday, February 21, 2008

Flannery For Ever


Um bom texto é difícil de encontrar. A Associação Música XXI, pela mão da professora Ana Paula Baião, descobriu um texto cru e forte, dentro da literatura norte americana, que transformou num espectáculo de assistência exclusiva.
Um Bom Homem é Difícil de Encontrar, de Flannery O’Connor, foi o projecto a que o núcleo de teatro da Associação Música XXI se dedicou neste ano. Num trabalho experimentalista, Ana Paula Baião e mais três actores transformaram três contos retirados do livro da autora norte americana num trabalho dramatúrgico digno de registo. Os contos em causa foram, em primeiro lugar, o que dá o nome ao livro: “Um bom homem é difícil de encontrar”, depois “A gente sã do campo”, e por último, “A pessoa deslocada”. O trabalho dramatúrgico destes contos fulcrais de Flannery O’Connor iluminou uma escrita cruel, pintada a sépia, que lembra o universo de Dogville.
O primeiro texto retrata o último dia de uma família do interior norte-americano dos anos 50, barbaramente assassinada por um homem a quem chamavam O Inadaptado. Ana Baião optou por focar a acção nas duas personagens fundamentais, a avó e o Inadaptado, defendidas por Ana Oliveira e por Bruno Baptista. A psicologia peculiar das duas personagens confere por si só uma tensão dramatúrgica muito peculiar a esta cena. A avó, personificando o egoísmo, tenta salvar a sua pele ultrapassando a dor de ver os membros da sua família desaparecerem um a um, esforçando-se por converter o homem que constituía a sua obsessão mais profunda: o assassino fugido da prisão federal que, com modos polidos, destrói uma família inteira. É a avó a responsável pela mortandade dos seus, uma vez que reconhece o Inadaptado e o verbaliza. Todo este conto caminha desde o princípio para o seu fim abrupto. Desde a necessidade que a avó tem de se vestir como uma verdadeira senhora, com o chapéu e as luvas a condizer com o vestido azul às pintinhas, para o caso de alguém a encontrar morta na auto-estrada, até a visão de cinco túmulos quando a família vagueava na auto-estrada. No final, a frase brutal proferida pelo Inadaptado: “teria sido uma boa mulher se tivesse encontrado alguém para a matar em cada minuto da sua vida”, encerra o destino cruel de um crime sem castigo.
O segundo conto, “A gente sã do Campo”, interpretado por Rita Justino, Ana Oliveira e Bruno Baptista, é uma metáfora irónica aos subterfúgios da vida. Hope é uma rapariga desencantada que muda o seu nome para Hulga, originando um desgosto profundo na mãe. Com a mudança de nome quer mudar a personalidade e o seu lugar no mundo. Não é o doutoramento em filosofia que lhe confere essa maneira de ver o mundo de forma diferente, é a mudança no nome que opera a diferença de identidade. Como anuncia a mãe, “Hulga faz-me lembrar o porão incaracterístico de um navio de guerra”. O confronto das duas mulheres com o vendedor de bíblias é hilariante, assentando a acção num diálogo com veios absurdos. Mas a acção adensa-se quando Hulga se aproxima do vendedor de bíblias. A jovem mulher, portadora de uma perna de pau, deixa-se seduzir por um vígaro que faz colecção de peças insólitas. De dentro da bíblia surge uma garrafa que uísque e para dentro da mala de vendedor é colocada a perna de pau de Hulga, fazendo companhia a um olho de vidro de outra mulher desencantada. No final, uma vez mais, uma frase do falso vendedor de Bíblias que remata a história: “Eu nunca acreditei em nada desde o dia em que nasci”.
O terceiro conto, “a pessoa deslocada,” é aquele em que a marca da dramaturgia cuidada se fez sentir de uma forma mais intensa. A pessoa deslocada é um emigrante da Europa que vem criar a desordem na paz podre que se tinha instalado numa herdade. Ele é eficiente, educado, polido, e faz o trabalho mais rápido que qualquer um dos trabalhadores anteriores. É, por isso, um alvo a abater. A visão dramatúrgica deste conto levou Ana Paula Baião a depurar o texto em frases chave que as duas mulheres, quais moiras trágicas, iam proferindo, enquanto iam enredando o estrangeiro na sua teia de destruição. No final, já devidamente embalado, é enviado de volta para a Europa, a terra de onde vêm todos os males.
A ligação entre os três contos é feita através de uma mala de viagem, que vai ganhando os despojos de cada personagem. As luvas da avó, a perna de Hulga, o próprio emigrante na pessoa deslocada. É a mala que transporta a densidade dramática de cena para cena e a completa no conto final, quando é enviada para a Europa.
Um trabalho experimental que assentou numa dramaturgia que, apesar de ousada, não descurou o sentido profundo da autora. Uma encenação que se revelou arrojada e séria. Um texto original, descoberto por Ana Baião, que revela o que de mais negro há em cada um de nós.

A Serra e a Planície


O teatro da Serra de Montemuro desceu à planície mostrando como as agruras da montanha podem guardar uma ternura ilimitada. Amor foi o espectáculo apresentado a partir do texto homónimo do encenador Eduardo Correia que também integra o elenco do grupo.
“O Amor é como uma pequena planta silvestre que se instala atrevidamente no nosso jardim, depois vai crescendo, e levemente contagia todas as outras plantas que se deixam seduzir por todo o seu encanto e levemente vão descansar à sua sombra. Quando o sol raia nas traiçoeiras manhãs primaveris, eis que ela abre as suas pétalas e vê milhares de plantas iguais a ela, até parece que o próprio vento se rendeu ao seu encanto e cada vez que sopra ainda a torna mais bela. Quando chegam as frias chuvas do adiantado Outono ela curva – se sobre o tronco e desliza suavemente até à raiz que já está preparada para a época que se avizinha, sabendo sempre que haverá dias de sol… Quando alguém se aproxima, ela perfuma – se, ficam vaidosa sabendo que ira ser levada com carinho e depois oferecida com muito, muito amor.” No dia 14 de Fevereiro o teatro da Serra de Montemuro apresentou no Teatro Lethes o espectáculo Amor. Com um elenco de seis actores, Abel Duarte, Paulo Duarte, Daniela Vieitas, Carlos Cal, Neusa Fangueiro e Rodrigo Viterbo, o espectáculo recria um universo em que as personagens encontram o melhor de si num contexto de guerra. Com texto Eduardo Correia, que assina também a encenação, o espectáculo assenta num cenário imponente, assinado por Purvin, que tem características quase orgânicas. Transforma-se e transforma o olhar do espectador, à medida que vai evoluindo. Abre-se nas suas reentrâncias, desocultando entradas secretas que escondem casas, gavetas, túmulos, esconderijos, guaritas.
O espectáculo começa com a preparação dos soldados para o acampamento. As conversas de caserna impõem-se na noite que antecede a batalha. Os medos disfarçados, os revoltados, a submissão à autoridade, evidenciam-se nas noites em que os soldados acampam e se preparam para a guerra. A camaradagem estreita laços e o companheirismo entre dois soldados desafia a autoridade, fazendo com que eles trocassem de posição no dia de combate. A morte de um companheiro de batalha que tomou a vez do soldado cria um enorme peso na consciência e leva a que os pais, ao saberem da notícia, se deixem morrer, perdidos na serra.
O soldado sobrevivente parte em busca da família do companheiro que morreu por ele na batalha e descobre os pais do jovem desolados, que se iluminam quando o vêem. No fim da trama descobre-se que os soldados eram gémeos, separados à nascença, e que aqueles pais iriam ter a oportunidade de voltar a viver com aquele filho. Este enredo Shakespeareano um pouco enredado retirou alguma da vivacidade e da frescura do espectáculo. A duplicação de papéis, como a tia / mãe dos soldados, Interpretada por Daniela Vieitas, evidencia um trabalho da actriz empenhado e sério, que dá prazer observar. A entrega dos actores a este trabalho está bem patente e o resultado global é um trabalho equilibrado. As mudanças de cenário ajudam a manter o ritmo do espectáculo e a ultrapassar a extensão excessiva do texto.
A cena final, na qual se utilizou o recurso a máscaras expressivas de Lazarim, foi hilariante e serviu para desanuviar o drama daquela família dividida. Dever-se-ia ter utilizado mais esse recurso, mesmo que não fosse num registo cómico, pois a máscara ajuda a criar a agrura de certas personagens e a construir uma certa ambiência de rudeza que, neste caso, teria surtido um efeito muito positivo. Foi bonita a homenagem que os actores fizeram aos técnicos do Teatro Lethes, apelidando-os de “santos” na procissão que decorreu na terra da família beirã. A relação entre a psicóloga e o soldado foi bonita ao princípio, quando eles ainda só se conheciam pela voz, quando conversavam pelo telefone, antepassado das conversas on-line, mas não conseguiu encontrar sustentação quando se conheceram ao vivo. O texto não tem uma consistência que admita a verosimilhança de que a história precisa. Mas, graças ao trabalho dos actores, da cenografia e da luz, concebida por Paulo Duarte, o espectáculo foi bem conseguido.
O Teatro Regional da Serra de Montemuro inspira-se na cultura popular, de raízes assumidamente no meio rural, tendo o cuidado de criar espectáculos que convidem à reflexão. Neste espectáculo os objectivos foram amplamente alcançados.
Este grupo, que desde 2003 nos habituou a espectáculos de qualidade como A Eira dos Cães, dirigido por Graeme Pulleyn, que nos trouxe uma magnífica recriação de MacBeth, Sucata Sisters, também encenado por Graeme Pulleyn, utiliza o humor negro, cruzando-o com o cinema mudo, desconcertando o espectador até ao último minuto, e, por último Ubelhas, Mutantes e Transumantes, dirigido por Gil Nave, em co-produção com o teatro das Beiras, mostrou-nos, uma vez mais, que o grande teatro também se faz fora das grandes capitais. Na serra e na planície.

Trabalhar para o futuro

A educação de públicos é fundamental para o crescimento estruturado de uma sociedade que se quer moderna e autónoma. A ACTA, mais uma vez, insiste no bom trabalho que tem feito junto das escolas, abordando questões inquietantes como a sexualidade, a toxicodependência. Ao longo do ano, numa escola perto de si.
A ACTA está a retomar a sua função de educadora através da Arte com a reposição dos espectáculos Auto da Frequentada, espectáculo baseado no texto de Gil Vicente Auto da Índia, e O Longo Sono da Heroína, espectáculo baseado no conto A Bela Adormecida, adaptado por Sissel Paulsen e Ana Paula Baião.
Descrevendo um pouco a interacção que se vive nessas intervenções da ACTA, posso referir o efeito que a ACTA operou num grupo turma do 10º ano de Humanidades com o qual trabalhava na disciplina de Introdução à Filosofia. O estímulo era, a partir do espectáculo O Longo Sono da Heroína, encenado por Ana Paula Baião, fazer com que os alunos encontrassem soluções, colocassem questões e mesmo descobrissem um final para a história de uma adolescente que começou a ter problemas com droga. As situações eram várias: uma mulher que foi abandonada por um médico que a engravidou, tornando-se revoltada e alcoólica; a visão da infância de uma criança amada, em paralelo com uma criança desprezada; a entrada em coma da adolescente. Cabia aos alunos a tarefa de decidir se ela iria morrer ou não. A observação que fiz surpreendeu-me, pois alunos que nunca se manifestavam nas aulas cooperaram entusiasticamente nas tarefas propostas pelos actores, discutindo em grupo, apresentando depois os resultados das suas polémicas, sob a forma de uma dramatização, comentando as suas vivências. De uma forma talvez um pouco incipiente, conseguiram ultrapassar o bloqueio da expressão oral, levando-me a crer que a motivação a partir de estímulos propostos pela Expressão Dramática poderá ser mais eficaz que os métodos mais tradicionais e, desta forma, acreditar que esses estímulos devam ser aplicados amiúde, nomeadamente nas aulas de Filosofia.
O espectáculo O Longo sono da heroína, foi buscar inspiração ao imaginário do conto infantil da Bela Adormecida. Começava por mostrar um homem feliz com o nascimento da sua filha. Esse homem, nesse dia, recebeu um telefonema de uma outra mulher, exigindo-lhe as mesmas condições de vida que ele ia dar a essa menina, para o outro filho que havia tido um ano antes, com essa mulher. Ele respondia que tinha sido um erro e que não tinha mais responsabilidades, pois já lhe tinha dado dinheiro para se desembaraçar da criança. A mulher, então, jurava vingança. Os alunos, divididos em grupos, eram então solicitados a ilustrar como seria a reacção dos respectivos pais perante uma e outra criança em situações tais como a primeira doença e o primeiro dia de aulas. Depois de mais uma intervenção dos actores em que se mostrava o cuidado que os pais tinham em relação à rapariga, que se tornava numa super protecção e o desprezo que a mulher abandonada dava ao filho, os alunos eram convidados a fazer perguntas às personagens (à mulher abandonada e ao homem que a abandonou, que era médico) segundo a técnica do hot sit. Aqui surgiram questões interessantes como a contradição ao nível da ética por parte do médico, uma vez que ele, defendendo a vida, tinha pago para se fazer um aborto. Continuando a história e o imaginário da Bela Adormecida, quando a rapariga faz dezasseis anos, o irmão é convidado para a sua festa de aniversário. Este dá-lhe a provar substâncias alucinógenas e ela fica em estado de coma. Os alunos são então convidados a representar o final, decidindo se ela morre ou se sobrevive a esta experiência. Todos os alunos participaram activamente, fazendo questões espontaneamente aos actores e dando o seu contributo de forma séria e conscienciosa.
Esta experiência foi mais um contributo para a minha crença na tese de que um ensino que não só não esqueça mas sobretudo privilegie estratégias baseadas na estética teatral, concorrerá para um maior gosto pela aprendizagem por parte dos alunos e, sobretudo, uma maior consciência dos problemas / questões com que todos nos debatemos no mundo contemporâneo.
O outro espectáculo, O Auto da Frequentada, encenado por Luís Vicente, também tem contribuído para o desenvolvimento da imaginação nos alunos. Depois da apresentação do espectáculo os alunos conversaram com os actores sobre o que sentiram.

Falaram dos figurinos contemporâneos e compreenderam que tinha sido uma escolha deliberada para melhor dar a perceber uma relação directa dos textos com a maneira de sentir e agir dos homens de hoje.
Ao falar de cada um dos figurinos perceberam que a ama vestia um vestido que era a sua cama porque naquela altura as pessoas recebiam as visitas no quarto. Como ela estava sempre a receber visitas, estava sempre na cama. Referiram também o figurino do castelhano, com um cachecol de penas e um chapéu vermelho, lembrando um galo. Essa figura tinha esse aspecto porque simbolicamente era como um galo, vaidoso, cantando para impressionar.
Finalmente falaram da questão ética. Os actores começaram por perguntar por que é que os amigos da Constança entravam sempre pelas traseiras. Os alunos disseram que só o marido podia entrar pela porta de frente. E porquê, porque era contra a moral e os bons costumes receber homens em casa com o marido fora. Quando questionados sobre a questão da legitimidade de se pedir a uma pessoa para esperar por ela quatro anos, as opiniões dividiram-se. Alguns alunos disseram que sim, que se duas pessoas se amavam tinham de esperar uma pela outra. Outros disseram que dependia do que eles tivessem combinado entre si. Outros ainda disseram que perante uma situação dessas deveriam divorciar-se para estarem mais livres para o que pudesse acontecer. No fundo, a moral entre duas pessoas dependia directamente dos acordos e das regras estabelecidas entre elas, desde que não prejudicassem o resto da sociedade.
É minha convicção que os exercícios de expressão dramática levam à assunção de uma maior consciencialização sobre o conceito de cidadania, numa dinâmica de aprendizagem por descoberta. A estética, assume-se assim, desde as origens, como conceito estruturante da maturidade do Homem, concorrendo para a abstracção de uma realidade que se quer representar e descrever.

Turismo Infinito marcou a estreia do Teatro Nacional de S. João no Teatro das Figuras. Uma estreia que se afigura promissora, a avaliar pela dignidade do espectáculo Turismo Infinito, de António M. Feijó, com encenação de Ricardo Pais.
Por vezes o sublime é um sentimento que custa a dissolver-se no universo fragmentado das sensações humanas, custando, por isso, a impor-se ao nível racional. Turismo Infinito, produzido pelo Teatro Nacional de S. João, é o paradigma de um espectáculo que a memória retém como pertencendo à categoria do sublime.
A cenografia de Manuel Aires Mateus, arquitecto cujo trabalho foi muito recentemente distinguido com o prestigiante Contractworld Award, é o que se impõe de forma quase agressiva ao espectador. Duas plataformas enormes, dando a ideia de uma estrada a caminhar para o infinito, anunciam o reflexo uma da outra, ao mesmo tempo que revelam a ideia de desequilíbrio. A plataforma de baixo abre-se em fendas mágicas, desocultando heterónimos pessoanos, que se assumem como entidades autónomas. O desenho de luz de Nuno Meira é de uma sensibilidade extrema, conseguindo captar os diversos matizes do universo pessoano em questão naquele texto. As personagens eram todas interpretadas por actores de primeiríssima água, fazendo justiça a Pessoa. O espectáculo é todo ele uma viagem intensa e profunda ao difícil universo pessoano. A cenografia abriga no seu interior o mundo subterrâneo do guarda-livros Bernardo Soares, do engenheiro naval Álvaro de Campos, da eterna namorada Ofélia Queiroz e do próprio mentor Fernando Pessoa. Alberto Caeiro já surge num plano superior, que paira acima dos outros fragmentos de personalidade e a corcunda Maria José, o único heterónimo pessoano feminino que se conhece, rasteja enquanto lê a carta ao carpinteiro, num registo tocante da actriz Emília Silvestre. Impressionante a forma como modifica o registo da leitura, subserviente e vitimizante, para uma postura de maioridade moral, perante o seu destino. João Reis está assombroso na interpretação de Álvaro de Campos. Com uma voz poderosa, que mostra a essência do excesso dado áquela personagem. Luís Araújo mostra-nos um Alberto Caeiro bucólico e sonhador, que se liberta das sombras e integra o mundo de forma panteísta, misturando-se com o poder da verbalização da beleza.
José Eduardo Silva traz-nos à memória o guarda-livros contra o qual continuamente lutamos. O inconformado que vocifera contra o patrão Vasques mas que tem medo de ousar uma mudança mais radical na sua vida. E o próprio Fernando Pessoa, interpretado por Pedro Almendra, que faz a intersecção de todas as personagens. Em todos eles se sente a beleza de uma dicção perfeita, que não é forçada, mas surge como um veículo natural do pensamento pessoano. Num tempo em que a língua portuguesa está continuamente a ser maltratada por entidades com responsabilidades acrescidas na sua transmissão, como locutores, jornalistas e até professores, é quase uma questão ética a necessidade da manutenção do uso correcto da Língua Portuguesa. Principalmente quando se trata da transmissão de ideias de um poeta que se tornou o maior embaixador da língua portuguesa no mundo.
“Sou a cena viva onde passam vários actores representando várias peças.” A frase que Bernardo Soares escreve pelo punho de Fernando Pessoa é uma das muitas epígrafes possíveis de Turismo Infinito. Porque as personagens navegam no infinito mar de sentidos e sensações do universo pessoano. Porque se encontram todas no “porto infinito” para onde as linhas paralelas se encontram, porque as personagens trocam entre si o sentido de ser, cruzando sombras e interseccionando sensações. O ritmo do espectáculo, lento, é imprescindível ao saborear das palavras e dos sentidos contidos nos textos de Pessoa e dos seus heterónimos.
Também Ofélia Queirós marca a sua presença no universo quase esquizofrénico entre Álvaro de Campos e Fernando Pessoa, quando comenta a carta de despedida do seu namorado, ditada ao engenheiro naval.
O guarda-roupa, cinzento, mostra a indefinição das personagens, fugindo ao contraste habitual do preto e branco, utilizado na poética de pessoa.
Este é um daqueles espectáculos que temos obrigação de ver, por foi superiormente encenada e magistralmente interpretada. É uma oportunidade quase única de ver um espectáculo que agarra o público sem que este tenha oportunidade de respirar, tantos são os estímulos estéticos de que se serve. A sua matéria prima assenta numa conjugação perfeita dos actores, da cenografia, da luz, da articulação das palavras, tudo orquestrado pelo talentoso encenador Ricardo Pais.
Um perfeito tributo a Pessoa. Um espectáculo inesquecível.

Ela uma vez


O Teatro Lethes foi palco de um espectáculo que tocou o sublime. Cláudia Andrade soube transformar a poesia de várias mulheres num espectáculo cujo sentimento poético invadiu de mansinho a emoção do público.
Falar de poesia é falar do indizível que se torna verbo. Falar de um espectáculo de poesia é verbalizar a emoção que deixou de estar contida e extravasou para o corpo, para a pele, até explodir no aplauso final. Falar do espectáculo Ela Uma Vez, de Cláudia Andrade, é tentar dizer o que se sente quando o espectáculo nos faz atingir o êxtase perante uma emoção estética.
Ela uma vez é um espectáculo concebido por cinco criadoras, inspirado na obra de sete poetisas, que dá voz ao universo feminino. Para além de divulgar escritoras pouco conhecidas pelo grande público, o espectáculo reflecte sobre a condição da mulher: os seus medos, os seus anseios, as suas fragilidades, o seu poder.
O espectáculo de Cláudia Andrade, produzido pela associação Próxima Estação, começa com uma pequena animação, de Ana Pesquita, que nos confronta com a imagem de um álbum de emoções que se foram guardando de uma forma cuidada e delicada. Mostra os sonhos de uma menina a elevarem-se, levando-a a voar com as borboletas, com os pássaros, e a voltar, brincando com os seus brinquedos.
No biombo onde foi projectado o pequeno filme de animação surge um vulto. A sombra de uma mulher, que se vai tornando cada vez mais nítida. A sombra torna-se voz e o corpo vai-se desocultando por detrás do biombo. Primeiro uma mão, depois uma cabeça que espreita, como se fosse um nascer para a vida. Por fim assume-se um corpo inteiro cujo rosto ainda está protegido, escondido por uma máscara. A actriz, menina, vai falando de sabores, de arroz doce, e vai ganhando a confiança necessária para substituir a máscara pelo seu rosto. A mulher, finalmente, nasceu e vai fazer com o público um percurso desde a infância até à velhice, passando pelas várias idades da mulher. Do vestido de bibe a mulher ganha novas formas e mostra-as num vestido vermelho e sensual. Calça os seus primeiros sapatos de salto alto e lança-se por inteiro na mágica aventura de ser mulher. Recorta os contornos do seu príncipe encantado e dança com ele, sentindo-se feliz. Essa imagem, em que Cláudia Andrade rasga a x-acto a silhueta de um homem, esculpindo o exterior à sua maneira, dançando de seguida um tango, dá-nos a percepção clara dos sonhos das jovens adolescentes que, na sua maior parte, se deixam deslumbrar pelo lado estético das relações. A rapariga dança e transmite-nos a leveza de uma existência feliz. O peso dessa felicidade entranha-se na pele e concebe uma criança, passando da juventude e da sensualidade pura para a idade madura. Nessa fase a mulher dá-se conta das suas prisões, das suas limitações, e a cenografia, inicialmente um biombo, transforma-se numa casa onde se adivinha o ser feminino e sensual que se cumpre numa relação amorosa. As tiras de tecido que caem do tecto, lembrando um dossel, transformam-se na imagem do cárcere de que muitas vezes se torna a casa. O desencanto transforma a doçura das noites de volúpia na prisão de sentimentos que leva a actriz a arrancar os fragmentos de emoção que a ligam à casa, ao quarto. Vira as costas nuas à sua realidade e solta-se à procura de outros mares. Nas costas as palavras “E os nossos mares?” evidenciam o desejo de se entregar a um universo mais aberto. A libertação vem com a raiva e a necessidade de cortar com o que lhe é imposto. No papel é escrito: “não quero a faca nem o queijo”. Não quer o poder de decidir, mas o de apagar o tempo. Assim, o papel é rasgado com a violência com que as rugas invadem o seu rosto. A velhice, símbolo maior da maturidade, veste a mulher de emoções várias, qual actriz que vai vestindo e despindo as personagens ao sabor do que vida lhe exige. No final, a mulher só exige um “amor feinho”. Um amor que ultrapassa o deslumbramento estético exterior e procura o encontro do companheirismo, do Outro que compreende e está ao lado para o que for preciso. A mulher mais velha fala no legado que sonha deixar à filha: a transmissão de mãe para filha que suporta a memória como um fio ininterrupto, quase umbilical. Contrariando o desvanecer do corpo, a mulher pugna pela permanência da memória.
O desenho de luz de Paulo Neto, operado por Nuno Figueira, é um elemento fundamental que confere o colorido às palavras que Cláudia Andrade, numa dicção irrepreensível, nos diz. A actriz tem, de resto, um modo peculiar de nos fazer saborear as palavras ditas por si numa voz quente, cativante e bela.
Suportada pela poesia de Adélia Prado, Adília Lopes, Ana Hatherly, Ana Luísa Amaral, Elsa Lucinda, Natália Correia e Marina Colassanti, Cláudia Andrade construiu a essência do ser feminino. Escutando a autora deste projecto, dizemos com Cláudia Andrade: “Porque há palavras que dançam em mares de esparguete, mulheres desdobráveis, histórias e viagens que ainda nos apetece fazer… Ela uma vez. E se a chuva oblíqua é um convite à inclinação do teu ombro e há luas com tranças pretas e corpos que se descosturam, inventamos príncipes que não aparecem e morremos compulsivamente. Reinventamos histórias sem finais felizes, olhamo-nos ao espelho e somos lobos, fadas, demónios, monjas. Mudamos de pele, largamos lágrimas no rastilho do corpo e porque acreditamos na ocupação do mundo pelas rosas… Ela uma vez.” A poesia subiu ao palco e foi sofregamente comida pelos espectadores do Teatro Lethes. Irresistível, sensual e colorida, elevou o belo à categoria de sublime.

Desassossego


A comuna apresenta Desassossego: Um monólogo interpretado por dois personagens e encenado por João Mota.. Um actor (Carlos Paulo) e um músico (Hugo Franco). Um deleite para a alma, encenado por João Mota.
Fernando Pessoa escreveu, João mota encenou, Carlos Paulo interpretou. A obra nasceu. Bernardo Soares, o heterónimo mais próximo de Pessoa anuncia: “Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje - tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso presumir da minha vida de amanhã senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto."
Inteiramente baseado no “Livro do Desassossego” de Bernardo Soares/Fernando Pessoa, Desassossego é um espectáculo de teatro, interpretado pelo actor Carlos Paulo e pelo músico Hugo Franco, que desperta no espectador emoções díspares.Fernando Pessoa, ele próprio, será o músico, sem palavras, mas que através da execução musical de temas originais e, recorrendo aos mais variados instrumentos, preencherá silêncios, anunciará as mudanças marcará os ritmos - maestro por excelência – dos seus heterónimos. Carlos Paulo interpretou seis personagens que compõem o imenso caleidoscópio de vivências que “O Livro do Desassossego” propõe; O Escriturário, A Criança, O Mendigo, O Palestrante, Homem/Mulher, Revoltado. Dono de uma extraordinária presença em palco, Carlos Paulo convida-nos a fazer uma reflexão sobre um século que acabou e que teve em Fernando Pessoa um dos maiores expoentes, pela clareza, a inteligência, a frieza com que soube interrogar e interrogar-nos: no fundo, o Desassossego Português através da palavra do maior poeta da língua portuguesa do século que findou. Terrivelmente individualista, por vezes dolorosamente individualista, cenário pregado nas paredes de papel, de um homem que sofre e se lamenta poeticamente no escuro da sua sala abandonada de quarto alugado, o LD é em rigor a grande peça de teatro em monólogo sussurrado de uma alma que nunca se dá a conhecer no seu intimo
No cenário, o músico Hugo Franco está sentado dentro do quadro de Almada, escrevendo na mesa da brasileira, lendo em voz alta o que os seus pensamentos vão construindo. E escreve, sempre. E não deixa de dizer: "Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior."
Na personagem do escriturário Carlos Paulo, acompanhado pelas sonoridades criadas ao vivo por Hugo Franco, chama-nos a atenção para a necessidade da banalidade da vida, elemento fundamental que repõe o equilíbrio de todo um mundo de escriturários banais e necessários. Todos com um patrão, também ele simples e banal: "Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora.
E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução."
A cena em que Carlos Paulo interpreta a criança, órfã da vida, balançando-se constantemente, acompanhado por uma canção de embalar, é tocante. A elevação da plataforma que simboliza a cama contribui para a elevação do sentimento de perda perante a imensidão do mundo.
Quando Carlos Paulo interpreta o palestrante, com os seus “Conselhos às mal-casadas”, provoca um corte na acção do espectáculo, essencial para a construção do desassossego que lhe está inerente. Mas uma das cenas chave deste espectáculo é o quadro Homem/Mulher, que provoca a dualidade que existe em cada um de nós. O figurino. Composto por um vestido de cauda rosa-choque, que o actor exibe quando está de costas para o público, transforma-se em fato preto masculino quando este se vira de frente para a audiência. A enquadrar essa personagem ambígua estão dois espelhos que marcam o paradoxo do sentimento masculino/feminino no andrógino que existe em cada um de nós e que nos cria o desassossego inultrapassável perante a vida: “Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer. É todo o peso e toda a mágoa deste universo real e impossível, deste céu estandarte de um exército incógnito, destes tons que vão empalidecendo pelo ar fictício, de onde o crescente imaginário da lua emerge numa brancura eléctrica parada, recortado a longínquo e a insensível.”
Por fim, o revoltado revela o desígnio a que está votado: o de ser o poeta visionário que antecipa a missão incómoda de anunciar o futuro. “Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.” Uma digna e brilhante homenagem ao poeta maior da língua portuguesa.