Monday, November 24, 2008

A culpa da fantasia


O espectáculo Sonho, produzido pelo “Projecto Novos Actores” teve por base o derradeiro filme de Kubrick, para muitos cinéfilos filme de culto, para grande parte da crítica, uma desilusão enquanto filme. Por ter sido um projecto que despertou amores e ódios tão intensos foi um acto de coragem Renato Godinho ter pegado na visão de Kubrick de Traumnovelle, de Arthur Schnitzler e fazer dela uma adaptação para teatro. O elenco foi constituído por cinco jovens actores, formados na Escola Profissional de Teatro de Cascais, com alguma experiência de palco e com a ousadia necessária para arriscarem num projecto desta complexidade. A Escola Profissional de Teatro de Cascais facultou também os sete figurantes necessários à produção do espectáculo.
Esta produção apresentou-se no magnífico espaço do museu Castro Guimarães, em Cascais. É um espectáculo de itinerância, no qual os espectadores são convidados a seguir os actores desde o claustro do museu até ao seu interior, passando por inúmeras salas de decoração requintada. Os espectadores entram e é-lhes facultado um folheto concebido com apuro, onde são convidado a participar naquele ambiente de emoções que será o espectáculo. No claustro do museu ouvem-se soar acordes jazzísticos, serve-se leite em copos de cocktail e entram personagens vestidas com requinte, que convidam os espectadores a partilhar com o corpo as sonoridades sentidas. Há pares a dançar dentro do claustro. Público que foi convidado a partilhar aquele momento por bonitas raparigas envergando vestidos de noite. De repente chegam as personagens principais. Também participam na festa mas começam a dar-nos conta das suas conversas. Um médico que está a ser insistentemente assediado por duas raparigas encantadoras diverte-se mas não consegue disfarçar o embaraço de não lhes poder dizer educadamente que não está interessado no seu convite. Pelo seu lado, a mulher do médico está também a ser vítima de uma provocação por parte de um homem com quem dança e de quem se despede educadamente. Depois deste episódio o público é conduzido para uma sala no interior, onde se recria o quarto do casal em destaque na festa do claustro, Artur e Sofia, interpretado por Joana Castro e Romeu Vala. Vêm divertidos da festa, contando um ao outro as peripécias vividas. Perguntam-se mutuamente se deveriam ter motivos para ter ciúmes e é aqui que o verdadeiro enredo começa. O ciúme, fruto da imaginação e da construção de fantasias faz-se sentir no médico Artur Fridick a partir do momento em que a sua mulher lhe confessa ter tido uma fantasia erótica com um desconhecido enquanto estavam a passar férias num local distante. Artur fica ferido no seu orgulho e confessa a sua esposa, Sofia, que nessas mesmas férias também ele tinha tido um deslumbramento estético por uma rapariga desconhecida que passeava na praia. Diónisos a quebrar a ordem apolínea, As circunstâncias, tanto para um como para outro, não permitiram que nada de físico acontecesse. Mas ficou instalada a dúvida: será que se eu tivesse oportunidade me manteria fiel à pessoa que realmente amo? A partir da formulação dessa dúvida na consciência de ambos o espírito de festa e alegria modifica-se e começa a pairar uma nuvem negra de dúvida, propícia à destruição da confiança entre os dois. O médico recebe um telefonema informando-o que um colega acabou de falecer e sai abruptamente de casa. O público é convidado a segui-lo através de corredores que vão desocultando o desejo através da apresentação de fotografias a preto e branco de um par amoroso envolvendo-se numa praia deserta. Um trabalho lindíssimo de um erotismo latente que acompanha a escalada de emoção do espectáculo.
Artur chega a casa do falecido colega e consola de forma polida e educada a sua filha, Anya, interpretada por Lia Carvalho. Foi um momento intenso, de comoção, no qual, inesperadamente, Anya lhe revela o seu afecto, beijando-o repentinamente. Artur escusa-se com estupor e, quando regressa o noivo de Anya, o ambiente volta aparentemente à normalidade. Artur sente-se perturbado com o encadeamento de todas estas revelações e, quando abordado por uma prostituta, interpretada por Sara Matos, segue-a sem pensar. No quarto conversam. Artur, incapaz de lhe tocar fisicamente, toca-a profundamente na alma. Sai, e incapaz de voltar para casa vai para um bar a fim de tentar pôr as ideias em ordem. O público segue-o até uma sala de jantar com uma mesa posta ricamente adornada com loiça refinada, onde todos os pormenores eram dispostos com esmero. Foi nessa sala que Artur decidiu ter a aventura da sua vida. Reencontrou um antigo colega de medicina, interpretado por Ricardo Alas, que se dedica a tocar piano de olhos vendados em festas onde o ambiente é no mínimo suspeito. As mulheres são deslumbrantes e os participantes, envoltos num imenso secretismo, só podem entrar na festa se usarem máscara e disserem a palavra-passe. A fantasia de Artur começou a trabalhar e encontrou um estratagema para entrar na festa mistério. O público foi convidado a deslocar-se de novo ao claustro onde, para entrar, teve de colocar uma máscara neutra. Tornou-se parte do ritual. Dentro do claustro seis jovens raparigas envergavam, para além de uma máscara veneziana, uma capa de cetim que as cobria da cabeça aos pés. A música que Kúbrick utilizou no filme De Olhos Bem Fechados foi a música utilizada para criar a ambiência de ritual orgiástico que estava prestes a acontecer. A um sinal do líder do ritual as raparigas abrem as capas e revelam os seus corpos num tango coreografado por Natacha Tchitcherova, ao som de uma música utilizada noutro filme protagonizado por Nicole Kidman: Moulin Rouge. Pouco ousado, quer nos figurinos, quer na atitude das jovens dançarinas, à qual faltava o olhar perturbador da sedução. Mas é no meio desta festa que Artur é desmascarado e enxovalhado perante a multidão. É obrigado a retirar a máscara, revelando-se como intruso numa festa só para convidados. Sai da festa vexado e, a partir desse momento, o rumo dos acontecimentos modifica-se e Artur vê-se envolvido num vórtice vertiginoso de eventos que o perturbam: o desaparecimento do seu amigo pianista, o desaparecimento da prostituta com a qual conversou, a morte de uma rapariga que o tinha defendido na festa. Fora de si vai falar com o amigo Henrique Gussman, que o alerta para os perigos de alguém que quer passar a frequentar um mundo ao qual não pertence. Henrique revela a Artur uma série de peripécias, criadas para o proteger, incluindo a prestação de Lena, contratada para dissimulamente o afastar de perigos reais. Artur volta a casa e conversa demoradamente com a sua mulher. Percebe finalmente porque não pertence àquele mundo, conseguindo ultrapassar a fantasia do sonho com a efectiva consumação da carne. O fim do caos é consumado com o regresso a Diónisos, instalando-se finalmente a ordem apolínea.
Esta obra que Renato Godinho adaptou para teatro revelou inteligência na adaptação do espaço do Museu Castro Guimarães, conjugando o interior daquele espaço histórico com o suporte artístico das fotografias a preto e branco do casal na praia. Reconhece-se o trabalho intenso dos jovens actores na manifestação das emoções requeridas a um texto tão complexo. O jovem cicerone Igor Sampaio e Melo cumpriu de forma adequada o seu papel. Sóbrio, elegante e atento aos espectadores com mais dificuldades na deslocação entre as cenas, foi o cicerone ideal. Às raparigas figurantes ainda falta aquela atitude e aquele olhar insinuante que provoca em quem as vê a capacidade de sonhar. Um projecto que cumpre os seus objectivos e convida o espectador a penetrar de forma carnal no mundo do sonho.

Friday, November 21, 2008

Benvindos ao Paraíso


Uma mulher com um vestido elegante e sapatos de salto alto empurra um homem que se encontra acocorado num carrinho de transportar mercadorias. O homem toca um pequeno acordeão e atravessa o palco transportado nesse lento empurrar, lembrando o regresso aos primeiros tempos de ligação quase uterina, em que fazia parte de um outro corpo. Aqui a mulher assume-se como a condutora de decisões e de seres. Seres que se deixam conduzir entoando uma melodia triste. Esta é uma imagem que atravessa todo o espectáculo, uma vez que assumidamente nele se vai brincar com a identidade de género. Paraíso é a referência ao estado que o comum dos mortais persegue quando assiste a um musical norte-americano. O cliché é assumido para se discutir a questão da identidade sexual.
As mulheres de Olga Roriz assumem habitualmente uma identidade marcadamente feminina, trajando vestidos que lhes marcam a figura e calçando sapatos de salto alto que, tal coturnos da antiga Grécia, lhes eleva a personagem. Os três tipos de relação abordados de forma caricatural pelo casal de apresentadores eram: o casal em que ambos olham na mesma direcção, não havendo uma subjugação. O segundo, era o casal em que olham um para o outro, conduzindo-se como um tango. Neste caso a mulher é conduzida, subjugada pelo homem. No terceiro caso, a relação é do tipo que um depende do outro. Neste caso a mulher é altamente dependente do homem. Partindo desta imagem Olga Roriz constrói toda uma teia de relações complexas onde o corpo se alia à voz e ao movimento, resultando desse misto uma leitura que desoculta um significado ambíguo.
Olga Roriz joga com a atitude perante a vida. Metáfora esperada da atitude num palco: a cantora inexperiente, que se sujeita ao julgamento mais impiedoso, e a diva que passa incólume a toda a cena e se assume como detentora de plenos poderes do palco. No palco, tal como na vida, o que conta é a atitude. O movimento procura ilustrar o conteúdo de uma ideia, fugindo ao virtuosismo de um tecnicismo estéril. Assim, Astaire e Rogers dançam em palco exibindo os passos da ilusão, assim como os encalhados da vida esperam no seu confortável maple o par ideal que os puxa para o encontro com o Paraíso. A sátira de Olga Roriz é contundente quando nos recorda a carta de um desertor, da autoria de Boris Vian, interpretado por Maria Cerveira, enquanto Pedro Santiago Cal vai atirando com flores para trás das costas. E esta imagem forte, de uma realidade brutal entra em confronto com a canção de amor My Funny Valentine, interpretada também por Maria Cerveira. Uma canção perante a qual se sente a entrega de um coração apaixonado, esperando uma resposta em conformidade. Às vezes essa resposta é artificial, como o são os paraísos, como o são os fetos disfarçados de palmeiras. Mas a música continua, assim como a esperança. A esperança é a única centelha que faz com que a cantora inexperiente receba uma humilhação desmedida, ao ponto de ficar encharcada e continuar a dançar. Contrastando com a imagem da rapariga humilhada pelo seu par assume-se a ideia de felicidade quando os bailarinos deslizam alegremente nos seus confortáveis sofás, poiso de figuras teatrais que sorriem promovendo o paraíso e de figuras etéreas, mostrando ao mesmo tempo como é fugaz.
Um dos momentos marcantes de todo este Paraíso revela-se na dança sensual entre duas bailarinas, executando um tango assumidamente como mulheres. Ambas de vestido preto e elegante, de saltos altos, rodopiam ao som de um tango, ultrapassando um dos ideais convencionais do relacionamento heterossexual: na dança, como na vida, há um que domina e outro que é dominado. Assim como é tocante o solo que Pedro Santiago Cal desenvolve dançando à volta de um poste, trocando os papéis convencionais.
Porém, a ousadia e a provocação atingem o auge na canção de Ana Carolina Homens e Mulheres, interpretada por Catarina Santana. A atitude da bailarina é provocadora e no palco desenvolve-se um misto de encontros e desencontros pouco convencionais. Quando se ouve “eu gosto de homens e de mulheres. E você o que prefere?” o nosso olhar convencional desliga e começa a perspectivar noutras direcções. Por fim a bailarina abate-se ao cantar o tema Bang-Bang, imortalizado por Nancy Sinatra no filme Kill Bill. E permanece exposta e derrotada no seu vestido lamé até ser expulsa do paraíso.
O final é o fechar de um ciclo. O homem regressa pelo seu próprio pé e senta-se confortavelmente a tocar o pequeno acordeão. Depois de uma passagem pelo Paraíso o regresso à música genuína, à vida. O regresso, enfim, à imortalidade.
Com desenho de luz de Celestino Verdades, arranjos musicais de Renato Júnior e cenário de Olga Roriz e Pedro Santiago Cal, este Paraíso envolve o espectador numa viagem iniciática onde se confronta com o seu próprio desejo e regressa à vida transportando novas emoções. Um tributo à vida. Plena e condimentada de vários aromas.

O Cabaret da Estrada


Nos passados dias 27 e 28 Tavira teve a oportunidade de receber o último espectáculo da digressão inicial da produção Caravan Cabaret. Um espectáculo encenado por Marta Pazos para divertir, dirigido a toda a família, ideal para as noites de Verão.
O espectáculo começa com uma pequena intervenção junto do público: os actores deambulam por entre a assistência, assumindo diversas personagens. Umas um pouco diferentes do cidadão comum, outras adoptando as suas caricaturas mais frequentes. O homem armado, cuja mulher, de cabeça coberta por um lenço, o segue como uma sombra, que olha de forma intimidatória para os espectadores. A rapariga que corre toda a plateia a gritar pelo Chico, a menina pequena que ainda usa o horrendo penso nos óculos para corrigir o estrabismo, o “pintas” de óculos escuros, sempre a morder o esquema. Depois a famosa brasileira, professora de aeróbica, de rádio ao ombro, muito enérgica, a puxar pelo “alto astral” e preocupada com a hidratação. Esta última personagem sobe ao palco e convida dois voluntários, que pertencem ao elenco, para “aquecer” o público. Aquecer os pulsos para treinar as palmas, e aquecer as gargalhadas. Como cenografia, apenas a imagem de uma caravana prateada, com as letras Caravan Cabaret iluminadas por cima. A encenação propõe, então, uma visão teatral do interior do cabaret com os actores já como personagens, a aquecerem fora da caravana, sem a luz de cena a incidir. Depois entra um ciclista que, apesar de prenunciar um número de perícia, dá duas voltas ao palco, cai, e traz a reboque, presas por uma corda, as personagens do elenco que integra o Cabaret. Nesse momento o elenco interpreta um dos temas imortalizados por Liza Minnelli no filme Cabaret. Assume-se, assim, o início desse tipo de espectáculo específico, bem como a falta de uma voz potente que nos faça esquecer esse momento memorável do filme de Bob Fosse. Após esta entrada, na qual os actores mostravam ao público folhas de papel com várias palavras escritas como “petróleo”, “desemprego”, “Portugal” e, ao chegarem à boca de cena, as rasgavam com ar de desafio, Susana Nunes, interpretando a personagem Alorna Vegante, faz as introduções da praxe e anuncia um dos números mais divertidos da noite: a domadora de leoas. Esta personagem, munida de chicote, traz consigo duas actrizes vestidas de leoas e simula um número muito divertido, geralmente utilizado nos circos, de subjugação de animais. O espectáculo desenvolve-se numa sequência de números característicos de cabaret, havendo, não obstante, um desequilíbrio notório entre eles. Há números bem conseguidos e engraçados, como o das gémeas siamesas, o do cantor de charme que diz um poema e é secundado por uma mulher, cantando o clássico italiano “paroles, paroles, paroles...”, recriando um número que esteve muito em voga num dos programas de variedades da RAI nos anos 70, bem como o tema “Fly me to the moon”, interpretado por Marco Ferreira, o número de ilusionismo de Pedro Ramos, interpretando um mágico decadente, e o striptease de Susanas Nunes, que motivou a corrida de uma criança para junto da boca de cena, tentando recolher todos os pormenores, que lhe deleitavam a vista, para a memória do seu telemóvel! Os restantes números, começando pela outra dupla de diferentes, que para além de serem anões, ainda tinham de se defrontar com a visão atroz e repugnante de uma mulher com barba, e acabando numa coreografia do corpo de baile feminino, à qual faltava coordenação, deveriam ter sido mais trabalhados. O número da cantora que se expressava mal, desafinando diante do pára-quedas mal iluminado, contendo corpos no seu interior que nada faziam a não ser manter o pára-quedas com volume, era descabido e completamente desnecessário. O quadro da boneca, misto de ventríloquo com Chaplin, era fraco e, como tal, desnecessário, bem como o da espanhola que cantava mal, acolitada por dois bailarinos, sobressaia apenas, pelos actores pelo que, deveriam incluir neste número uma cantora ou uma actriz que cantasse sem desafinar. Valeu ao espectáculo no final, a rábula sobre a ASAE e a coreografia arrojada dos três actores, que divertiu o público. O problema dos pontos mais fracos deste espectáculo prende-se, sobretudo, com o conceito de diversão, ou seja, este conceito atinge mais o público quando os intérpretes sabem de facto cantar, ou dançar, ou representar. A partir deste pressuposto, podem brincar com as canções, com o corpo, ou mesmo com as palavras, assegurando um resultado divertido. Quando os intérpretes não sabem manter uma canção até ao fim o público fica preso na desafinação e o resultado global perde-se. Foi o que aconteceu com a coreografia do corpo de baile quando interpretavam um tema retirado do filme “Quem tramou Roger Rabbit”. Já tive a oportunidade de apreciar inúmeras coreografias deste género em grupos não profissionais, com cinco ou seis bailarinas dançando com cadeiras, que elevavam os braços e as pernas à mesma altura, assumindo uma atitude em cena que contagiava o público. Neste espectáculo isso não aconteceu, parecendo uma coreografia de final de ano numa récita escolar, o que é imperdoável numa estrutura profissional. Tal como Coco Chanel dizia, “Se uma mulher se veste de uma forma horrível, as pessoas reparam no vestido. Se o fizer de forma elegante, reparam na mulher”. Neste espectáculo escapou ao público a essência do Cabaret porque não houve o cuidado de apurar os pormenores. Os sons desafinados invadiram as canções, despojando-as do seu sentido lúdico e divertido. A falta de coordenação nas coreografias sujou a atitude que se requeria em palco. E depois de nos termos deleitado com o espectáculo “Com Muito Amor e Carinho”, esse sim, um espectáculo cuidado, com o ritmo certo, e com um contexto português muito interessante, esperava-se mais deste projecto. É que mesmo que a linha do espectáculo fosse um piscar de olho ao neo-realismo italiano, recordando o belíssimo filme de Fellinni La Strada, o facto é que mesmo esses artistas de “estrada” tinham uma capacidade que os elegia como únicos. Zampano quebrava as correntes com a força do seu tórax, proeza que mais ninguém fazia. Quando vemos uma intérprete cantar desafinadamente o público pensa: mas não havia ninguém que cantasse melhor para fazer aquele número?
Uma palavra de apreço ao programa, muito completo, com a contextualização histórica do conceito de Cabaret e com textos divertidos sobre as personagens. Este é um espectáculo para rodar nos próximos dois anos. Tempo para afinar vozes e pormenores. Esperemos que daqui a dois anos este seja, de facto, um espectáculo de Cabaret. Divertido, com crítica social, mas ao qual não falte a elegância nem o profissionalismo.

Amar a Terra


“(…) O essencial é saber ver, / saber ver sem estar a pensar, / saber ver quando se vê, /nem ver quando se pensa.(….)” É com estes versos de Fernando Pessoa que a Companhia de Dança Kamu Suna se apresenta. Esta companhia, fundada por antigos bailarinos do Ballet Gulbenkian e dirigida por César Augusto Moniz, criou uma coreografia, apoiada pela UNESCO, no sentido de contribuir para uma consciência mais responsável acerca do equilíbrio sustentável do nosso planeta.
Para este coreografia a Kamu Suna Ballet Company recorreu a sete bailarinos e a um cantor lírico, Manuel Brás da Costa, que interpretou ao vivo alguns temas de Vivaldi, como o Stabat Mater, ajudando e despertar no espectador uma luz interior de que só este compositor é capaz de fazer sentir.
As coreografias tiveram o apoio de imagens do planeta Terra projectadas numa tela ao fundo do palco. Árvores, o oceano, a fauna, a flora, a cidade com a velocidade que a caracteriza. A Terra, o Amor, o Homem, são conceitos que os bailarinos desenvolvem em palco através dos seus corpos e das suas emoções. O coreógrafo assume que a coreografia brota da Consciência Universal. A partir deste sentimento podemos ver na tela a síntese perfeita entre o movimento e a imagem daquilo que nos faz reconhecer, não só como humanos, mas como pertencentes a um organismo total e global que nos encerra.
Os bailarinos chamam-nos a atenção para a necessidade de reduzir, reutilizar, reciclar e refazer. As letras são projectadas no écran e o bailarinos dançam sobre as palavras chave para a manutenção do planeta.
Os momentos altos foram aqueles em que os bailarinos actuaram tendo como suporte a voz do contra-tenor Manuel Brás da Costa. A voz e o movimento dos bailarinos atingiram momentos de uníssono perturbantes que contribuíram para a elevação da tal consciência Universal que se busca.
Segundo a produção, este é um espectáculo onde se pretende “identificar, reflectir sobre – as condutas, as aspirações e os imaginários que movem os indivíduos e as sociedades nos dias de hoje induzindo a uma mudança consciente e positiva do pensamento humano em relação ao futuro do nosso planeta.”


A KAMU SUNA Ballet Company foi fundada em Lisboa a 4 de Janeiro de 2006 pelo Primeiro bailarino e Coreógrafo do Ballet Gulbenkian César Augusto Moniz. Composta por 8 bailarinos, alguns dos quais solistas e primeiros bailarinos oriundos do Ballet Gulbenkian, pretende irromper das nossas raízes ancestrais para unificar a multiplicidade de linguagens de expressão, fortemente inspiradas no reencontro do Oriente com o Ocidente. A nova proposta artística aposta num processo criativo que parte da experimentação do movimento original, fazendo emergir um novo vocabulário corporal e anímico na dança.
Outra prioridade da Companhia é “desenvolver um trabalho dedicado às crianças, mediante a realização de workshops e bailados em que os mais novos têm a oportunidade de participar activamente, absorvendo e transmitindo tudo o que a música e a dança podem expressar. Os espectáculos respiram e revelam-se a partir das várias formas de arte como a escultura, o teatro, a dança, a ópera, a pintura ou a poesia. A dimensão de representação atravessa o tempo e o espaço como paisagem que religa o corpo ao espírito”.
Num diálogo entre movimento, música e imagens visuais, a Companhia desenha-se livre de preconceitos, diferente e igual a si própria, a caminho de uma nova concepção do Mundo, onde a inovação e a criatividade propõem a cada espectador uma reflexão que pode induzir a um processo de transformação pessoal, social e cultural.
Relativamente ao espectáculo Amar a Terra, no Centro Cultural de Lagos, foi pena não ter sido distribuída uma folha de sala contendo contributos para a leitura do espectáculo, ou a identificação do suporte musical, a que os espectadores devem ter direito, ou à distribuição do elenco da companhia. Foi pena também os cortes que a emoção do espectador sofreu com o visionamento de um écran de projecção do dvd azul, onde se podiam ver as indicações técnicas. Quando vemos profissionais de longa craveira e com a excelência que nos deu o Ballet Gulbenkian não esperamos confrontar-nos com estas falhas técnicas. É por isso que por vezes o corpo, em si mesmo, ultrapassa qualquer artifício técnico, tornando-o desnecessário.

O Sotaque de Olhão


A cidade de Olhão está a comemorar, neste segundo semestre, os duzentos anos da Restauração do domínio francês. Teatro, música e cinema são algumas das propostas para que os visitantes possam usufruir culturalmente de tão honorífico título, concedido à então vila pelo príncipe regente D. João, por esta ter servido de rastilho e lançado a revolta que expulsou as tropas francesas da região.
Dentre todas essas comemorações foi também convidado o actor e encenador João Evaristo para conceber um espectáculo sobre a sua cidade natal. João Evaristo lançou o repto ao seu companheiro de palco de há vários anos Joaquim Parra e lançou mãos e ideias ao trabalho. Investigou as histórias típicas olhanenses que passam de boca em boca mas que não têm registos escritos e propôs-se escrevê-las para as mostrar sob a forma de um espectáculo de teatro. Segundo João Evaristo, “A peça retrata uma cena quotidiana de dois pescadores que enquanto remendam as redes queixam-se da vida, das dores da alma e do corpo e recordam várias histórias humorísticas do imaginário olhanense. A Carta do Marítimo, S’aquile era Marroques e O Camujinhe, são histórias que, entre outras, se vão enredando numa conversa humorada, onde ainda há lugar para referências a figuras como o Candinhe Lêtere e O Coxo da Muleta.” O espectáculo decorre num pequeno palco que foi coberto de areia. A ocupar o lugar de destaque em cima do palco está uma pequena embarcação: o sustento da maior parte das famílias de Olhão. Quando o público entra na pequena sala com lotação de 50 lugares depara com a cenografia e com uma imagem da Ria Formosa, projectada no ciclorama. Quando o espectáculo começa apaga-se a imagem da Ria, remetendo o protagonismo para os dois actores. Entra João Evaristo ouvindo um rádio portátil. Mal se lhe junta Joaquim Parra, começam as histórias, as partilhas, as cumplicidades. E como as palavras são como as cerejas as histórias sucedem-se entre risos e piscares de olho. Balançando entre a brejeirice do “diz que disse” e as memórias trágicas do tráfico ilegal de passageiros para Marrocos os actores aguentam um ritmo coloquial que permite um ambiente de boa disposição que provoca o sorriso e a gargalhada. Destaca-se a proverbial disputa entre os “filhos de Olhão” e os “filhos de Faro”, apresenta-se o preocupante flagelo da bebida entre os pescadores, aponta-se a descriminação negativa entre os pescadores e os outros filhos da terra. Estas histórias surgem a propósito da descrição mais ou menos maldosa de alguns incautos espectadores, que servem de ponto de partida para a descrição de figuras tipo da cidade. “Olha, aquele ali à frente, diz que é sobrinho do outro que está ali atrás com a cabeça rapada. É como o outro que também diz que tem um sobrinho, mas afinal, parece que não é…” E recomeça toda a história do “diz que disse” que, entre anedotas mais ou menos conhecidas, vai dando a conhecer alguma da história do povo de Olhão.
Hilariante foi o momento em que Joaquim Parra fez de Santo padroeiro e não atendeu às preces egoístas de um pescador. Através de uma marosca, o sacristão conseguiu baralhar o pescador, que tinha como intuito destruir a igreja e o Santo. O pescador ameaçou o suposto filho do Santo padroeiro, prometendo voltar mais tarde para ajustar contas com um Santo que não cumpre com o prometido.
A caracterização que realça os maus dentes e a expressão corporal dos dois actores contribuem para que este espectáculo seja um retrato vivo do imaginário sócio cultural do povo de Olhão.
A cumplicidade sentida entre os dois actores provoca no espectador uma sensação de familiaridade, promovendo um ambiente que se deseja intimista e descontraído, onde se aprende em olhanense o que foi o sofrimento das gentes ligadas ao mar.
Este espectáculo assume-se como um documento histórico que desoculta as memórias escondidas na tradição oral, devendo ser publicado e disponibilizado em texto bilingue, com a respectiva grafia no alfabeto fonético assumindo a pronúncia específica de Olhão, em paralelo com a grafia do português padrão. Enquanto não vem o novo acordo ortográfico estas podem ser formas de preservar também a cultura de um povo através do seu linguajar específico.
Também na Sociedade Recreativa Olhanense está patente uma surpreendente exposição de fotografia. “Femmes: fotodrama” é um conceito que associa a fotografia e o teatro. Em termos práticos, é uma peça de teatro encenada para ser fotografada. Com fotografia de Marta Vilhena, encenação de João Evaristo e figurinos de Sabrina Ildefonso, a exposição permanecerá na Sociedade Recreativa Olhanense, até ao final do mês.

O Jogo dos Espelhos Partidos


O público entra na sala da Antiga Lota de Portimão e não se depara com o pano de boca. A curiosidade do espectador é espicaçada a partir de um pequeno painel, forrado a cortiça, que ocupa o centro do palco. É atrás do painel que a magia começa. E aqui fala-se em magia porque o texto é uma reflexão sobre a capacidade de provocar uma ilusão e de levar o outro a acreditar nela. Sobre a capacidade de iludir quem não tem a consciência tranquila.
Com base no entremez de Cervantes que deu origem mais tarde ao conto O Rei Vai Nú, no qual apenas uma criança teve a coragem de gritar a verdade, Jacques Prévert criou um texto contemporâneo que brinca com os comportamentos supostamente exemplares dos poderosos e dos governantes de um Estado. A virtude pode ser mensurável através de um retábulo maravilhoso, visível apenas para os puros em pensamentos e actos. Quem não quer ser reconhecido como virtuoso perante os seus pares e perante os seus súbditos?
Pedro Monteiro assumiu o espaço vazio e, a partir de um painel, construiu inúmeros cenários que o público conseguiu visualizar. O verdadeiro retábulo das Maravilhas foi o que se conseguiu criar através da sugestão da imagem, omitindo o óbvio e mostrando o fragmento. Através de um painel o público conseguiu visualizar a praça principal da cidade, o sítio dos sem-abrigo, o salão onde os governantes recebem os seus tributários. Alina Monteiro vestiu o espectáculo do mesmo tom da cortiça: elemento poroso que se deixa moldar e que isola dos sons e evita os choques eléctricos. Todos são vestidos do mesmo material: os que enganam deliberadamente e os que deliberadamente se deixam enganar. A causa do engano é comum e por isso todos usam a mesma veste. Os figurinos de Alina Monteiro, construídos a partir do trabalho da cortiça vão ao encontro da visão porosa e opaca do texto. O jogo de enganos é construído a partir da criação de um foco de sentido na linha oposta à que se está à espera, como se se tratasse de facto de um cruzamento de feixes luminosos, no qual a atenção é desviada e conduzida para onde o ilusionista deseja.
O elenco, constituído por André Canário, António Salvador, Filipa Rei, Igor Martins, Pedro Monteiro e Rita Neves, está equilibrado e consegue manter o ritmo do espectáculo de forma coerente e adequada. Este colectivo de actores fez jus ao desejo de Jacques Prévert que é, em última instância, denunciar as injustiças por demais visíveis que alguns ilusionistas insistem em manter de forma oculta e escamoteada. Jacques Prévert é incómodo nas sociedades que não assumem a transparência, preferindo a aparência do bem-estar ilusório, recusando encarar a realidade cruel.
Os dois mestres da ilusão chegam a uma cidade prometendo maravilhas. Chegam com a música, criada por uma criança que, segundo os saltimbancos, foi raptada, como é da tradição. Nesta visão crua da realidade também o artista é apanhado nas malhas de uma sociedade que lhe é adversa e que o julga de forma injusta. O artista é sempre alguém à margem, capaz de proporcionar os maiores prazeres mas também capaz de cometer os piores actos, como é o caso do rapto de uma criança. E aqui Prévert revê-se como um dos autores de uma linha de teatro que, através do absurdo, nos ajuda a ver a realidade em toda a sua magnificência e em toda a sua podridão.
É um pormenor interessante a criança-música ser rejeitada pelos poderosos. Quando a criança começa a tocar e a música começa a invadir a cidade, os governantes sentem-se mal e ordenam-lhe que pare. Talvez porque saibam que a música desbloqueia os sentidos e conduz a uma libertação interior, que é exactamente o que não interessa numa sociedade onde o medo domina.
A apresentação das maravilhas no painel é o momento alto do espectáculo. O ilusionista das emoções mostra imagens que sabe não existirem para um público que garante ver o que não existe. É exactamente como um espelho partido que, apesar de mostrar uma imagem, o faz de forma imperfeita. A configuração da cena neste quadro é significativa deste jogo de enganos, uma vez que os actores são dispostos numa linha que toca a linha do retábulo num ângulo recto, mas em faces contíguas. Mesmo fisicamente os habitantes dessa terra não poderiam estar a reconhecer coisa alguma na imagem sugerida pelo saltimbanco. No entanto, e para guardarem a sua virtude perante a opinião pública, vêem uma série de maravilhas. Bailarinas dançando com a arte de Salomé, animais maravilhosos, ratos invasores do bem-estar! E é só quando um soldado chega com novidades do mundo real é que os habitantes da cidade se apercebem de que estiveram o tempo todo a ser enganados à custa da sua pretensa virtude. Nessa altura já os impostores iam longe, desmascarando as falsas virtudes dos pseudo nobres e valorosos dirigentes que supostamente são o exemplo da nação. Hoje como no século XVI, hoje como em 1935, os dirigentes continuam a brincar com os seus cidadãos o jogo do retábulo das maravilhas, mostrando um contexto sociopolítico que se sabe não existir mas que é o garante da sua salvaguarda moral.
Um texto de carácter interventivo que denuncia as injustiças sociais e que, apesar de pôr o dedo na ferida, é divertido e contribui para uma das funções mais nobres da arte: aprender de forma lúdica indo ao encontro das inconsistências do ser humano. E o verdadeiro retábulo foi o facto do público se ter podido apoderar do conteúdo imaginário através do jogo do faz-de-conta de que só os actores detêm as regras.

As comédias de costumes


Nuno Loureiro encenou um grupo de 15 pessoas, amantes do teatro, que se encontram com o fito de desenvolverem a sua paixão. Já com um currículo de 19 produções o teatro Nova Morada, do Alto do Mocho, decidiu explorar um texto de um autor castelhano e investir num encenador profissional. Carlos Llopis, dramaturgo oriundo da capital espanhola, é reconhecido pela excentricidade cómica que elaborava em cada texto e pela forma crua e realista como estruturava personagens. Comédias sofisticadas e mordazes que inquietavam pelo toque de ousadia que sabia impor. Na comédia Daqui fala o Morto Carlos Llopis fala-nos de um célebre actor de cinema, pouco escrupuloso, que é assassinado em sua casa. Para conseguir capturar o assassino a polícia pensa num estratagema: ocultar a morte do célebre actor e assumir a sua vida normal com o duplo que habitualmente lhe fazia as cenas arriscadas. Aqui o teatro toma a dimensão da vida e o duplo começa de facto a viver a vida arriscada de Valdez. A trama adensa-se quando o duplo se vai confrontando com a vida desregrada e pouco sensata que o actor levava. Neste texto é difícil as personagens serem efectivamente aquilo que parecem, pois o jogo de espelhos reflecte uma realidade distorcida em que cada um se ajeita de acordo com aquilo que os outros esperam de si próprio. A personagem principal interpretada por Márcio Natchaty, mostra um grande à vontade na assunção de duas personalidades diferentes. Ao princípio deparamo-nos com um homem assertivo, que sabe o que quer e que tem levado a vida a enganar meio mundo para se assumir socialmente. Como duplo, temos uma personagem difícil, de um ser frágil, que representa para si próprio a capacidade de se tornar forte. Homossexual assumido, tem de representar as suas opções entre as inúmeras amantes que Artur Valdez conquista, tendo o cuidado de nunca manifestar perante essas mulheres a sua verdadeira personalidade. Um autêntico jogo de espelhos social usado para encontrar a verdade. Outra personagem de destaque é Mizuca, interpretada por Sofia Menezes. Uma personagem histriónica que a contenção da actriz não deixa cair no exagero. É a namorada brasileira que vem dar um toque de comédia à trama. Sofia Menezes flui em palco com um ritmo vertiginoso que não deixa cair o espectáculo numa cadência banal, sendo uma das peças essenciais do intrincado xadrez de personagens. Nuno Loureiro utiliza alguns artifícios para ultrapassar uma linha de dramaturgia mais virada para a adaptação cinematográfica, como a sombra chinesa ou a assunção de uma marcação em que a personagem está de costas para a plateia. A pausa para dar tempo às personagens de mudarem de figurinos é divertidíssima, com uma vendedora a tentar vender vários tipode de mortes, como se se tratasse de uma agência de viagens. O slogan “Brincamos com a vida, nunca com a morte” é revelador do espírito que se pretende descontraído. No entanto, a personagem da criada é trabalhada de forma obscura, ou seja, ao princípio é uma rapariga inocente e crédula, que se deixa atormentar com as desgraças que vão acontecendo à sua frente. À medida que o espectáculo vai avançando a criada torna-se mais insinuante e sedutora, sem que haja uma razão dramatúrgica para isso. A cena em que a criada entra em câmara lenta com o follow spot a acompanhá-la é estranha e inconsequente. A personagem de Gerónimo também tem um toque um pouco excessivo na postura gay o que, numa comédia de costumes, se pode justificar. E no fim o espectador tem a resposta à pergunta: Quem matou Artur Valdez?, sem que essa seja a resposta mais importante do texto ou do espectáculo. E no fundo, quando as personagens são tão interessantes que já nem interessa saber quem foi o assassino, a aposta está ganha.
Daqui Fala o Morto é uma comédia que diverte e que apela à nossa postura de actores sociais. Para teatro assumidamente amador há que realçar que as marcações estão bem definidas, tendo os actores consciência do espaço, dos ritmos de representação e da atitude perante o espectador. Quando estes pormenores funcionam o espectáculo funciona. Este espectáculo está disponível para correr em digressão pelos espaços que o quiserem acolher. Entretanto vamos esperando pela surpresa que nos prepara a 20ª produção do Teatro Nova Morada, a estrear no início do próximo ano.

A vida é um Cabaret!


Quando pensamos em Cabaret, a nossa memória abre-nos a janela do filme homónimo, realizado por Bob Fosse e protagonizado por Lizza Minelli. A história de um trio amoroso que viveu plenamente os seus afectos durante a República de Weimar inspirou gerações de cinéfilos e amantes do género musical. Mas o libreto de Chistopher Isherwood, baseado na sua obra Adeus a Berlim, pode considerar-se como um retrato fiel de uma realidade decadente na Alemanha no rescaldo da 1ª Guerra Mundial. O próprio escritor se considera como “uma máquina fotográfica com o obturador aberto, passiva, sem pensar.” No entanto a própria selecção da sua observação do real já implicou uma tomada de posição, que originou o já clássico Cabaret. Diogo Infante revela, no programa distribuído com o ingresso do espectáculo, que é um admirador de musicais. Assume que a construção da sua pessoa se fez com a admiração por filmes como Música no Coração ou Serenata à Chuva. Cabaret não foi excepção no seu currículo de emoções. Para o encenador Diogo Infante “Cabaret é, no limite, uma celebração da vida. Ao colocar-nos como pano de fundo um dos episódios mais negros e marcantes da história da Humanidade, o espectáculo leva-nos a uma reavaliação das nossas prioridades. Foi com esta consciência que Diogo Infante ousou encenar em Portugal uma versão de Cabaret. Dotado de um elenco de luxo, uma orquestra a tocar ao vivo e um corpo de baile dotado de ritmo e de presença em palco, pode dizer-se que Diogo Infante ganhou a aposta. A recriação do ambiente de Berlim nos anos 30 esteve atenta aos pormenores, e nem a orquestra, composta por 10 músicos, com direcção musical de Ruben Alves, escapou ao portentoso guarda-roupa de Maria Gonzaga. A cenografia de Catarina Amaro cativa o espectador logo na primeira cena, na qual os actores passam por uma fronteira inóspita, para aos poucos o ir conquistando e revelar-se em todo o seu esplendor no confronto com o Cabaret. O mobiliário de cena insere o espectador na envolvência dos anos 30 e as mudanças são feitas de forma harmoniosa e dentro de uma cadência adequada. O quarto do escritor Clif Bradshaw é a imagem desse cuidado nos pormenores e na ambiência de uma época específica. a cenografia, a música, o guarda-roupa, suportam de forma notável o brilhante elenco deste musical. Henrique Feist apresenta-se como o mestre-de-cerimónias de um cabaret decadente na Berlim dos anos 30. Canta, dança, interpreta de forma magnífica esta personagem de Isherwood. A assunção da vida mundana e das relações atípicas não constitui nenhum problema para os frequentadores do Cabaret. A assunção da homossexualidade, das relações a três ou das relações fortuitas é clara e aceite sem qualquer tipo de preconceito. Esta é a história de um escritor norte-americano, Clif Bradshaw, interpretado por Pedro Laginha, que vive um romance fortuito com uma cantora de Cabaret, Sally Bowles, interpretada por Ana Lúcia Palminha. O desempenho desta actriz é notável, realçando dentre a interpretação, a capacidade de dançar e a sua admirável voz. Todo o elenco tem uma aptidão exímia para o canto, tornando este espectáculo uma grata dádiva, quanto mais não fosse, apenas pelo seu canto. A envolver a história amorosa do escritor com a cantora de cabaret impõe-se uma outra história, mais tenebrosa, que ensombrou a humanidade: a ascensão do governo nazi. Nesta história de amores e desamores observamos os tais retratos de que Isherwood assumia tirar. Vemos o escritor a negar o seu lado homossexual assim que conhece Sally Bowles, vemos uma relação de conveniência ser transformada num amor sério e profundo, vemos o partido do nacional-socialismo a ter cada vez mais simpatizantes e aderentes, vemos as relações menos ortodoxas assumirem-se sem problemas de discriminação mas vemos também as lojas dos judeus alemães a serem apedrejadas e casamentos com judeus a serem desfeitos em nome da segurança. Vemos uma relação a ser desfeita pela obstinação de dois jovens que, não obstante amarem-se, não conseguem olhar um para o outro e verem um ser humano igual em sentimentos. Clif quer voltar para casa. Sally quer continuar a cantar. O sonho desfaz-se e ele volta para os Estados-Unidos, enquanto ela regressa ao Cabaret. A República de Weimar termina e os profissionais do Cabaret terminam os seus dias juntos, num campo de concentração. Um final fortíssimo que abala as consciências do esquecimento relativo ao pesadelo do holocausto nazi. A primeira parte do espectáculo termina com a festa de noivado de duas personagens que já na idade madura mas que ainda assim, pensam que têm o direito de experimentar ser feliz. Isabel Ruth e Francisco Gomes desempenham de forma comovente estas duas personagens. O hino do nacional-socialismo, cantado por todos os convidados da festa de noivado consegue arrepiar a plateia, ensombrando o olhar que se revela desconfiado na segunda parte do espectáculo. Na segunda parte o castelo de areia desfaz-se por completo. O noivado desfaz-se, os amantes separam-se, o cabaret fecha e o escritor deixa a Alemanha, por discordar com o rumo que a política está a tomar. Clif, escritor esclarecido, lê o Mein Kampf com um sentimento de temor e é o único que parte, consciente da tragédia que irá acontecer. O Mestre-de-cerimónias continua a cantar que a vida é um Cabaret, convidando-nos para sair de casa e experimentar as inúmeras sensações que se podem viver naquele ambiente.
É difícil montar um espectáculo de café-concerto minimamente digno. É preciso encontrar, para além de bons actores, excelentes cantores, virtuosos músicos, exímios bailarinos, e um guarda-roupa com a decência que este tipo de espectáculo pede. Os cenários e os adereços de cena também deverão acompanhar a exigência estética deste tipo de espectáculo. Amiúde, as companhias que se aventuram a trabalhar dentro desta estética são uma desilusão. Ou os cantores desafinam, ou os bailarinos não têm consciência do ritmo, ou o guarda-roupa é decadente e fora de época, ou o cenário é deprimente. Com este espectáculo nada disto aconteceu: tudo estava onde deveria estar. Depois de O Cabaret de Ofélia, de Armando Nascimento Rosa, onde se assiste a uma viagem por algumas margens de Fernando Pessoa, e no qual Cláudio Hochman teve uma preocupação detalhada com todos os pormenores, este espectáculo impõe-se pela qualidade, pela ousadia e pela reflexão que obriga o público a fazer no final. Um excelente espectáculo, no Teatro Maria Matos de 4ª a Domingo até dia 28 de Dezembro.

Até breve, Carlos

Hoje o teatro está mais triste. E para além de triste, está muito mais pobre. Despediu-se do palco da vida o crítico de teatro Carlos Porto.
É sabido que a profissão de crítico é olhada com desconfiança por toda a gente ligada ao mundo das artes. Os críticos são os que, costuma dizer-se, por não terem quaisquer aptidões para as artes, se socorrem da maledicência para se vingarem daqueles que a têm. Ou que são maus por natureza e têm um peculiar prazer em arruinar a carreira deste ou daquele artista. Carlos Porto tinha perfeita consciência dessa visão que amiúde era atribuída aos críticos, de tal forma que se viu compelido a escrever alguns texto salvaguardando a digna profissão de crítico. Dentro do seu saber imenso dizia que é normal as pessoas interrogarem-se sobre a pertinência de uma classe de críticos, se bem que posiciona o aparecimento da crítica a par do aparecimento do Homem. Assume, no seu texto Para que servem os críticos? Que “o aparecimento do teatro coincide com o aparecimento do espectador, e o espectador, tenha ele ou não consciência disso, é sempre crítico, mesmo quando não parece sê-lo.” Por isso, assume mais adiante, “Os críticos servem para participar no acto teatral como uma sua consciência activa… Servem para que o teatro exista, em termos menos modestos. Ou para ajudar a transformar o teatro numa arte, ultrapassando a situação do ritual, da cerimónia religiosa ou pagã, da festa cívica.” De facto, aquilo que aprendemos com a dignidade da escrita e com a humildade de Carlos Porto foi um contributo maior para elevar a o teatro à categoria de arte, contribuindo para a sua permanência. A beleza do efémero é, pois, através da pena do crítico, transformada em documento que contribui para a história. O crítico aponta para pormenores que passam despercebidos a um público mais desprevenido e que podem contribuir para uma leitura mais profunda do espectáculo. O crítico, com os seus argumentos fundamentados em linhas estéticas bem definidas, contribui para uma maior consciência do acto teatral. O crítico é, em última instância, a memória do teatro. De Carlos Porto guardo, para além dos preciosos ensinamentos, a verticalidade do ser humano que sempre me acompanhará nas minhas demandas, a clareza das suas ideias, a beleza da sua escrita. Carlos Porto arriscava. Fazia a verdadeira descentralização cultural quando se deslocava ao Algarve, à Covilhã, a Évora, para escrever sobre espectáculos que se desenvolvem fora das grandes metrópoles. Essa linha de críticos está a desaparecer, o que contribui para um empobrecimento progressivo do teatro, uma vez que sem memória não há história. Carlos Porto fez história. A ele, o meu agradecimento feito de um afecto muito especial. Até breve, Carlos.

Cantar Aos Peixes


José Eduardo Rocha foi o compositor, José Maria Vieira Mendes o autor, Manuel Wiborg o encenador. Estes criadores encontram-se para, no palco, desenvolverem no acto efémero do espectáculo, o musical Aos Peixes. O espectáculo teve por base a obra Moby Dick, de Herman Melville, sendo assumidamente, segundo a produção, “um texto a várias vozes”. Manuel Wiborg e Cláudio da Silva são os actores, assessorados pela soprano Ana Sacramento, pelo tenor José Lourenço e pelo barítono Nuno Morão.
O espectáculo Aos Peixes foi um projecto pontual com base num texto à procura de um leitor. Como assume José Maria Vieira Mendes no folheto/programa de apoio ao espectáculo: “Preferia não escrever, preferia não ter de falar, não explicar. Isto veio a propósito das primeiras páginas da Ordem do discurso de Foucault. Ismael é como todos, diz ele, precisa de sair de terra, necessidade do mar, para “afugentar o tédio e normalizar a circulação”. E lá vai o gajeiro. Sozinho no mastro (torre de marfim?), sem companhia, à procura de um leitor. Este texto procura um leitor. Este texto faz parte de um espectáculo. O leitor não vê um espectáculo, como o espectador não lê um texto. É da natureza dos vocábulos. Este texto não quer ser escrito. O narrador não quer contar, porque não quer começar porque também não quer acabar. É uma maneira de ler o Moby Dick que outro escreveu. Ler com outra ordem e tentar a desordem. Um acto falhado. Procura-se um leitor ideal e também um espectador ideal. Cheguei a pensar que só eu o podia ser. Depois concluí que nem eu o podia ser. Preferia não escrever, preferia não ter de falar, não explicar. O acto é falhado porque não só se começa como também se acaba. E a história lá está. Por isso no fim os pés estão na areia à espera de nova partida. Falhar, falhar outra vez, etc. Nada disto é trágico. Não é uma derrota mas o princípio de uma vitória. Ou o esboço dela. Esboço de um esboço.”

Um pouco à procura do sentido pirandelleano José Maria Vieira Mendes assume que este texto não quer ser escrito nem o narrador quer contar porque não quer começar nem acabar. O autor quis assumidamente ler com uma outra ordem para tentar a desordem, dando continuidade a um ciclo de renovação. O ciclo Becketteano a lembrar que para falhar é preciso falhar outra vez e falhar melhor. Este é o texto de um homem só. Ismael gostaria de ser o protagonista mudo e não ter nada para contar, como a baleia branca. Mas Ismael é o único sobrevivente, cabendo-lhe assim a tarefa de tudo descrever. Neste espectáculo Ismael, interpretado por Cláudio da Silva, conta a sua necessidade de sair para o mar, partilhando a solidão com o mastro de onde avista o gigante dos oceanos. Manuel Wiborg é o texto que suporta o texto, que é suportado pelo outro texto: a música.
Ao princípio Manuel Wiborg está dentro de si próprio. Dialogando com a música de José Eduardo Rocha posiciona o espectador na acção. Introduz Ismael, que por sua vez introduz o Genesis criador. Em articulação com o filme projectado de Álvaro Rosendo o espectador visualiza metaforicamente a cadeia da criação. Ismael despe-se de si, transforma-se e transvia-se perante o olhar do espectador. Numa assunção dramatúrgica de teatro dentro do teatro Cláudio Silva rasga as vestes, dobra as calças e molha o cabelo para dar uma impressão de credibilidade. Já assumindo a personagem de Ismael, o sobrevivente, partilha com o auditório o sentimento de solidão do mar que o mar lhe provoca e assume que esse olhar lhe transfigura a imagem que sempre fez do mundo. Manuel Wiborg cria um alter-ego de Ismael na figura da soprano Ana Sacramento. Ela é o outro lado, o intuitivo, que ouve na solidão dos oceanos. O lado que escala sinuosamente o mastro, oscilando ligeiramente. O lado que diz as coisas importantes. Manuel Wiborg actua como uma outra vertente: a vertente do homo habilis, que, mau grado o vento e as vagas impiedosas, luta com a baleia e sobrevive à tempestade. Qual Jonas, no interior dos destroços, o narrador penetra por dentro dos destroços da alma de Ismael. E confronta-se com o Outro, o que desoculta o seu lado feminino e seduz o monstro. Consegue adormecê-lo com a voz doce antes de excitar a sua fúria.
A interpretação dos actores ganha densidade com a música de José Eduardo Rocha. Os diferentes matizes do espírito do marinheiro a sobriedade do livro do Génesis, a sátira, a profundidade das águas caladas, estão patentes na composição musical, na interpretação dos cantores e na execução do Ensemble JER. O suporte musical dá a verdadeira força dramática ao texto, ultrapassando algum registo monocromático dos actores. O desenho de luz evidencia as passagens do texto musical para o texto dito pelos actores e perverte o “efeito de aquário”. Neste espectáculo a luz é utilizada para esconder, para adivinhar silhuetas e sombras, à imagem da visão do mareante que adivinha o vulto de Moby Dick. Um belíssimo trabalho que se adequa ao texto de José Maria Vieira Mendes. Mais que um suporte técnico a luz insinua-se como mais uma personagem ondeante que conduz a atenção do espectador.
Quase perplexa é a alusão ao orador António Vieira. Por ser dirigido aos peixes o autor cruza-o com o grande mestre da retórica sem explorar nem desenvolver muito esse cruzamento. Mais uma vez a voz feminina é a voz do discurso que se pretende reter. Mas a inserção dessa voz maior deveria ter sido mais bem explorada. Ismael gostaria de ser como a baleia. Será que António Vieira gostaria de ser como o receptáculo mudo de um peixe?
A movimentação em cena não é muito rica, não tendo havido um aproveitamento real das possibilidades cénicas. Uma rede de galinheiro ganha uma dimensão polimórfica jogando com os actores vários papéis. De praia coberta de escombros assume-se como mar, como resguardo de exploradores marítimos. Os cones brancos aglomerados na direita baixa lembram a superfície da baleia ornada com pequenas conchas.
No global o ganho fundamental deste espectáculo foi a criação e a execução musical de José Eduardo Rocha que conseguiu dar vida a um texto que queria ser escrito e que prima pela vulgaridade. Os actores situaram-se na difícil charneira da interpretação credível de um texto desinteressante e o contraponto com a música e os cantores. E, embora Manuel Wiborg não se tenha distanciado muito do seu registo habitual, tão diferente do magnífico trabalho “Debaixo de uma Cidade”, deu uma prestação sóbria ao narrador da história. Mais interessante foi a prestação de Cláudio da Silva, explorando as diferentes possibilidades que a personagem de Ismael lhe permitia.
Pela música de José Eduardo Rocha e pela interpretação do Ensemble Jer e dos cantores, vale a pena apreciar o trabalho Aos Peixes, em cena até dia 20 de Julho no teatro da Trindade.

As Três Caixas Chinesas


Nos dias 19 e 20 de Setembro a companhia de dança Vuyani Dance Theatre actuou no Teatro das Figuras, em Faro, com o espectáculo Beautiful Me. Em palco estavam quatro músicos, tocando cítara, percussão, violino e violoncelo. Interpretaram as sonoridades que acompanham Gregory Maqoma, um bailarino e coreógrafo sul-africano, que desenvolveu este trabalho com outros três coreógrafos: Faustin Linyekula Vincent Mantsoe e Akrahm Kahn, este último discípulo de Peter Brook, com quem trabalhou na produção do monumento ao teatro que foi Mahabharata.
Gregory Maqoma é considerado pela crítica internacional como um dos mais talentosos coreógrafos do seu país. Nos trabalhos apresentados, que já lhe granjearam prémios internacionais, desafia constantemente a noção de dança através de uma linguagem coreográfica única, que tenta redefinir a cada passo.
Beautiful Me é a terceira parte de uma trilogia iniciada em 2005. Retomando a metáfora das três caixas chinesas, podemos assistir a outras tantas visões da dança e do Universo que nos surgem fundidos no corpo de Maqoma. O espectáculo começou no escuro, com a luz da música, criada pelos quatro instrumentistas em palco. A luz vai tomando corpo, pintando com tons escuros o palco do Teatro das Figuras. Maqoma vislumbra-se então ao fundo do palco, discreto, quase um esboço a precisar de ser animado. A luz continua a pintar o caminho que o bailarino deve seguir. Maqoma segue a estrada de luz até à boca de cena e, aí, desenvolve uma coreografia de excepção onde nos apresenta um notável domínio do corpo. A segmentação é trabalhada até ao mais ínfimo pormenor e a música, criada em palco, é conjugada com a percussão do corpo do bailarino.
O bailarino continua a dançar e a luz abre-lhe o espaço. O pequeno rectângulo transforma-se num espaço onde o Eu tem de se confrontar com o Outro. A reflexão sobre si próprio, que caracteriza a primeira etapa do Círculo Hegeliano, pode corresponder ao domínio da reflexão da primeira caixa chinesa. No seu novo espaço o bailarino comunica usando a sua voz. Comunica passando uma mensagem que não é só orgânica: torna-se verbal. Pede ajuda ao público para que se lhe junte e em uníssono pronunciem a letra R. E, apesar deste contacto com o outro, apercebe-se de que a sua identidade não foi ainda ganha. Apesar de saber dizer a letra R, nunca soube de facto quem era Gregory. É nesse momento que se opera a revolução que lhe devolverá a identidade, entre o ser e o não ser. O ser Universal que transforma a História é o ser que opera a síntese e lhe traz a certeza do seu Eu. É a terceira caixa chinesa, ou seja, a relação do Homem com a sua História. É neste momento que Gregory recorda os nomes dos governantes de alguns países e povos africanos sobre quem repousa a responsabilidade de uma luta histórica em demanda da identidade, pois, para além de poder ser uma entidade em uníssono com a natureza, o artista é também um ser-no-mundo, assumindo o seu papel social e político.

Este bailarino partilha com os três coreógrafos do espectáculo um sentido de Humanidade muito profundo, apesar das abordagens coreográficas assumirem linguagens diferentes. O seu corpo tornou-se, assim, um arquétipo ideal, reinterpretando emoções e histórias e traduzindo criativamente, a partir da tradição e da linguagem, elementos que lhe eram pouco familiares, sendo o reflexo do génio criador dos coreógrafos. Este foi um processo alquímico em que o corpo de Maqoma sofria a feliz transmutação dos elementos coreográficos para no-los devolver sob uma forma apurada de arte.
O final encerra o ciclo e o bailarino, reencontrado consigo próprio porque se reencontrou com o Outro e com a sua História, regressando à sua posição inicial. Não já como esboço mas como um ser autêntico que se afirma perante si e perante a vida. A tampa da última caixa fecha-se sobre si própria encerrando a Humanidade no corpo de um Homem.
Neste trabalho Gregory Vuyani Maqoma continua a sua linha iniciada em 1987, contribuindo para reflectir sobre as grandes questões que perturbavam a sociedade sul-africana.
Este espectáculo fazia parte do Festival Internacional de Dança Contemporânea “A-Sul”, programado pela DeVIR e que este ano não foi produzido, segundo a direcção daquela associação cultural, devido a um caricato “esquecimento da Direcção-Geral das Artes” quanto à necessidade essencial financiamento do mesmo. Os amantes da Dança, que agendam bianualmente a sua rentrée tendo em conta este evento, lamentam profundamente este corte abrupto num festival que percorre a região de uma forma sistemática há mais de uma década.

Monday, October 27, 2008

Criar universos


Carolina Marcolla, actriz argentina que faz parte da companhia de Teatro Panda-Pá, convidou o jovem público da Biblioteca Municipal Ramos Rosa para a seguir numa viagem através das emoções conquistadas pela leitura. A actriz surgiu por detrás da plateia, carregando uma mala de viagem, da qual ecoava uma melodia. Carolina diz que adora viajar por entre as paisagens que os livros lhe sugerem. Abre a mala de viagem e dela retira um livro. Um livro muito antigo e que nos conta uma história tão bela quanto triste. Então Carolina começou a contar. Falou dos ódios ancestrais e irracionais havidos entre duas famílias poderosas na cidade de Verona. Falou de uma baile de máscaras que uma das famílias ia dar e de um convite trocado que foi para às mãos erradas. Por causa desse engano um Montéquio entrou na casa de uma Capuleto. E cumpriu-se o destino: “Foi exactamente à meia-noite, quando as damas e os cavaleiros formaram um círculo para a última dança, que um jovem alto, belo e gentil deu a mão a uma linda menina. Ele era um desconhecido mas Julieta ficou completamente hipnotizada pela sua beleza. Ela olhou-o e disse com doçura: A tua mão aquece a minha. E ele respondeu: e os teu olhos incendeiam o meu coração… Como te chamas?, perguntou ela com um belo sorriso nos lábios. Romeu, respondeu ele. E foi assim que Julieta e Romeu se apaixonaram, por entre as cores do Carnaval.” Toda esta narração aconteceu pela voz da personagem da ama de Julieta, que Carolina entretanto vestiu através da colocação de uma máscara balinesa. A voz, a postura, a emoção, mudaram por completo. O figurino estranho de alguém que recupera roupas de muitas viagens ganha outra dimensão com a colocação de um chapéu de palha de tom cobre e de uma máscara de velha usada no Bali. De repente o público vê a história através do sofrimento de uma velha ama que ajudou a criar a jovem apaixonada, morta por amor. A ama, sem nome, identificada apenas pela tarefa, fala de Frei Lourenço, o frade que tomou parte na conspiração e os casou em segredo, com mágoa e alguma amargura. Porque foi das mãos do frade que Julieta conseguiu o misterioso líquido que a pôs como morta. Mas é com uma luz especial que descreve o amor surgido entre os dois: Amor à primeira vista, puro e verdadeiro. O ritmo da narração muda e a actriz evita os clichés da passagem de uma jovem a uma mulher idosa. Há uma fluência diferente mas a mulher mais velha não deixa de ter clareza na narração nem adquire alguns “tiques” com que os mais jovens brindam os mais velhos. Há apenas uma maior dificuldade em controlar a emoção quando fala na sucessão de desencontros que levaram Julieta e Romeu à morte. De vez em quando a actriz esconde-se atrás da mala de viagem, onde cabe todo um universo, e mergulha noutra personagem. Ou é a contadora, ou integra a personagem da ama, passando assim de um plano para-teatral para um domínio plenamente teatral. E tudo é feito dentro do ritmo exacto, de uma contenção do gesto absolutamente admirável. O corpo da actriz irradia uma harmonia espantosa, recorrendo aos movimentos orientais do Tai-Chi, à medida que a história vai evoluindo. Depois da história acabar, com Julieta morrendo de desgosto sobre o corpo de Romeu, Carolina mostra um livro de belíssimas ilustrações, com texto de Nicola Cinquetti baseado na narração de Luigi da Porto, publicada em 1532. Lembra que Shakespeare a reescreveu com muitos mais pormenores sangrentos em 1594. Estimula a leitura e conversa sobre a história, sobre a capacidade de se morrer por amor, sobre o sentido de “família” em Itália, sobre as histórias que continuam a fazer-nos provar uma pouco mais do tempero da vida e a alargar os horizontes da infinita procura do ser humano. Por isso, contar um conto é aumentar o universo de sentido que existe em cada um de nós. Expandi-lo, com a vantagem de sabermos que neste universo específico não há retrocesso. No final a actriz fecha a mala e sai do palco acompanhada de sons e cores. Na plateia ficou a vontade de a acompanhar para outras paragens por entre os sons diferentes e as cores quentes.

Friday, October 24, 2008

O Mostrengo


O Tapete Mágico foi convidado para participar na comemoração do mês das Bibliotecas Escolares.
A partir de uma peça de madeira, encontrada pelo professor Luis Vale, surgiu a ideia de desenvolver alguns poemas da obra Mensagem, de Fernando Pessoa.

Wednesday, October 15, 2008

Do teatro para adolescentes


No dia 8 de Outubro o Serviço Educativo do Teatro Municipal levou ao Teatro Lethes mais uma versão do Auto da Barca de Gil Vicente, pela companhia Mau Artista. Uma visão diferente da clássica abordagem vicentina sobre os vícios da sociedade portuguesa da época. Também na linha do teatro para a adolescência a “Comuna” apresentou o espectáculo A Afilhada de Santo António, de António Torrado, com encenação de João Mota. Duas apostas ganhas na difícil arte que é o teatro para adolescentes.
A companhia Mau Artista pegou no conceito de mala de viagem e desenvolveu todo o conceito que envolve o imaginário vicentino da Barca do Inferno. A mala de viagem é a própria barca que propicia a viagem. Da barca surgem anjos e demónios e nela mergulham toda a espécie de tipos e caricaturas da má consciência da Lisboa do século XVI. Judeus, enforcados, alcoviteiras, frades concupiscentes, juízes e procuradores pouco recomendáveis, todos querem entrar na Barca da Glória e a todos é negada a entrada. Resta-lhes a Barca que vai para as Terras infernais, que vai carregada. Na Barca da Glória só o parvo e os cavaleiros que morreram lutando por impor uma fé a outros povos. Um texto sublime do mestre Gil Vicente, milhares de vezes posto em cena, milhares de vezes divertindo a plateia de adolescentes que a ela assistem. O encenador da companhia Mau Artista, Paulo Calatré, decidiu condensar todas estas personagens em dois actores: Nuno Preto e Pedro Damião. As personagens Gil e Vicente propõem uma viagem de barca ao Inferno. Assente em técnicas de clown, com um intenso recurso à fisicalidade, e à acrobacia, Nuno Preto e Pedro Damião divertiram o público adolescente que lotou as duas sessões do Teatro Lethes. Eles eram à vez anjo e demónio, seduzindo, escarnecendo, ludibriando, castigando. Por vezes, com recurso à manipulação de bonecos, as personagens aumentam em número e interagem com os actores. O Gil e o Vicente sobem um escadote, descem o escadote, mergulham dentro da arca, procuram um pouco de Chaplin na representação. E o público adolescente, prestes a estudar na disciplina de Língua Portuguesa a obra vicentina, exultava com as peripécias dos dois actores. No final os dois actores sentaram-se na boca de cena e estimularam uma conversa com o público, ávido de pôr questões aos actores. Como ultrapassavam a aparente dificuldade do texto, como eram capazes de mudar num instante de uma personagem para outra, como eram capazes de decorar tanto texto. E os actores iam respondendo, sempre alertando para o imenso estudo e trabalho de pesquisa de que se serviam. Depois improvisavam, escreviam, voltavam a improvisar, reescreviam, e era um processo contínuo de descoberta. No final ficou-lhes a vontade de verem mais.
A Comuna apresentou uma proposta diferente. João Mota lançou o repto a António Torrado, que escreveu o texto A afilhada de Santo António. O Santo casamenteiro venerado pelos lisboetas aparece, através da encenação de João Mota, com toda a sua dimensão humana. Prazenteiro, amigo dos seus afilhados, faz-lhes ver que a felicidade é um caminho que se vai conquistando. O espectáculo é um musical com música original do maestro António de Sousa. O elenco é composto por cinco actores, Alexandre Lopes, Jorge Andrade, Luciana Ribeiro, Marco Paiva e Tânia Alves, que interpretam as suas personagens cantando do princípio ao fim. Cantam e dão ao texto uma graça e uma vivacidade muito especiais. A afilhada de Santo António sabe, pelo seu santo de devoção, que lhe estão reservados grandes feitos. Tem de se disfarçar de rapaz e dirigir-se ao palácio. Se se vir em apuros, só tem de tocar a campainha, que o seu santo acode-a com prazer. Alguns episódios de enganos e desenganos sucedem-se e é o próprio santo que lhe grita: toca a campainha! Um espectáculo que se vê com prazer, remetendo o Santo António para o plano emocional e sensível, sendo nós tentados a acolhê-lo como uma entidade intermediária que nos ajuda mas que, de vez em quando, precisa que alguém o ajude a pegar no menino Jesus ao colo. Jorge Andrade faz um Santo António folgazão sem deixar de ser gracioso. O olhar malandro que incita ao desequilíbrio de uma acção que se quer ver alterada é perfeito e funciona. Às vezes, dramaturgicamente, é importante provocar alguns desenganos para que a verdade seja reposta e as personagens emendem a sua conduta. A linha platónica, que incita à imitação de acções nobres, marcou este espectáculo e provocou no espectador a vontade de continuar a ver outros espectáculos. É assim que se trabalha para a educação de públicos.

sombras e nevoeiros


É um facto que a visão platónica da realidade influenciou de forma fundamental o modo do Homem ocidental olhar para a realidade. A divisão do real em dois planos, o inteligível e o das aparências, marcou para sempre a crença na dicotomia ser/parecer perante o real. Para se abordar uma aproximação ao ser é necessário, antes de mais, lutar contra a ilusão, afastando a ilusão. Para se contemplar a verdade, é necessário ignorar os falsos testemunhos sensoriais e seguir a linha racional que nos conduz de forma inteligente à realidade única e imutável. Para se chegar à verdade, é necessário assumir que há uma ilusão que nos tenta constantemente. Foi esse o desafio a que se propôs o Projecto Ruínas: fazer um cruzamento entre os dois planos e jogar com a verdade e a ilusão. O espectáculo Shadow Play, com encenação de Francisco Campos e apresentado no espaço da Corredoura, em Tavira, foi um autêntico jogo de espelhos e labirintos da razão. No princípio do espectáculo os quatro intérpretes, Maila Dimas, Susana Nunes, Carlos Marques e Francisco Campos entram em cena assumidamente como actores, fazendo os últimos preparativos para a sua transformação enquanto personagens. Preparam os adereços e empoam-se com uma farta quantidade de pó de talco. Autênticas figuras retiradas do pó de um sótão perdido nas memórias de um escritor. Francisco Campos dá as boas-vindas ao público e anuncia-lhe que o teatro é uma ficção na qual há uma constante busca pela verdade. Aquele espaço é uma ilusão, desde as cortinas aos adereços de cena e, por isso mesmo, irão brincar com esse limiar da verdade. Através da assunção da ficção poderemos alcançar um momento de revelação epifânica, que nos coloque face-a-face com a verdade. As regras do jogo são reveladas e prendem-se com a oposição do contraste imposto pelo desenho de luz. A oposição claro/escuro é o motor que despoleta a transposição para o plano da luz/verdade ou sombras/ficção. Depois das palavras do encenador/actor provoca-se um black-out e começam a ouvir-se vozes: as vozes das personagens. A luz vai-se insinuando aos poucos sobre os actores e vemos as quatro personagens, com figurinos da segunda década do século XX concebidos por Andreia Rocha, envergarem uma meia na cabeça, ocultando os cabelos. Esse pormenor, utilizado na técnica da máscara para conferir ao actor alguma neutralidade, funciona neste espectáculo como o indicador da dissimulação, do disfarce. E é aqui que começa o jogo das sombras que, por um lado desocultam a verdade, mas por outro a escondem. Por um lado, temos as personagens de um autor de época, vestidas com o rigor adequado, falando com a elevação esperada à classe social a que pertencem. Há uma leve evocação a Eça de Queiroz, tanto no nome de Maria Eduarda d’Eça, dado à personagem que faz de mãe, como na sarcástica crítica social contida no texto. Um texto que nos mostra personagens da alta burguesia falando da necessidade de ocupar as suas vidas sem sentido. A meio da acção os actores retiram as suas toucas da cabeça e interpelam o espectador como se estivessem num plano intermédio entre o actor e a personagem. Assumem-se à vez como narradores, assumindo o papel das didas cálias. Mudam os adereços de lugar, como se a mudança de espaço implicasse ao mesmo tempo uma mudança no tempo. Voltam a colocar a touca e a acção recomeça com as personagens de inspiração querosiana. A mãe, Maria Eduarda d’Eça, interpretada por Maila Dimas, castradora da vontade e das paixões do filho, é ela própria um espírito livre que se justifica com a invalidez do marido. Daniel, Francisco Campos, é o filho superprotegido e inútil, refém da vontade da mãe. Mariazinha, interpretada por Susana Nunes, a dama de companhia da mãe, órfã, portadora de uma infância infeliz e prisioneira dos seus desejos não satisfeitos. Por fim o pai, Becas, o oficial da marinha preso a uma cadeira de rodas, interpretado por Carlos Marques, é refém dos espasmos e dos ataques que o assaltam de rompante. As interpretações, suportadas por uma dicção irrepreensível são convincentes e colocam o espectador num contexto sociocultural do início do século XX.
A cenografia, de Sara M. Graça, estabelecem a ponte entre o real e o imaginário, criando pequenas ilhas simbólicas. Há a pequena camilha que suporta as caixinhas de comprimidos com a cobertura de renda, à volta da qual se fazem confidências, o telefone enigmático que toca e ao qual atende o comandante inválido, o rádio que passa um excerto de ópera quando o pai está a ser tratado, e máquina de costura na qual Mariazinha cose as suas mágoas e infortúnios, o diapasão que marca o compasso da vontade maternal. Todos estes objectos têm um significado que pode aproximar o espectador do estado psicológico das personagens. No jogo das identidades troca-se de lugar mas mantém-se a firmeza na consistência da personagem. Mariazinha é a única personagem que passa a envergar uma peruca, metáfora da organização e do plano racional que prova ser a única a possuir.
Os actores entram e saem de si próprios de acordo com os jogos de luz e o espectador assiste a um permanente jogo de escondidas dos actores consigo próprios, brincando com os vários matizes da sua personalidade, como se estivessem numa trama de Pirandello.
O final é assumidamente Shakespeareano, pois assume-se pela morte de quase todas as personagens. O nevoeiro subtil do monóxido de carbono insinua-se entre todas as personagens, sucumbindo uma a uma, à excepção de Mariazinha, que consegue chegar a tempo à janela e respirar o oxigénio libertador que a salvará para sempre daquela prisão espiritual. Com a família morta Maria pega na mala e parte. Parte deixando o nevoeiro das imagens deformadas e falsas. Parte, deixando sucumbir os restos de uma família que viveu uma vida falsa e sem sentido. É a única que sobrevive porque é a única genuína. E assim se assume a grande metáfora do espectáculo: é preciso matar interiormente o supérfluo para que possamos viver genuinamente. Maria parte e com ela partimos todos à procura de um lugar onde o nevoeiro se dissipe e as sombras se desocultem. Um sítio onde a vida seja autêntica. Mesmo que seja num universo paralelo.
Este trabalho resultou de uma residência artística e teve um aturado trabalho de depuração ao nível do texto. De um todo de improvisações resultaram cinquenta e oito minutos de cenas e contracenas de quatro personagens à espera do lanche das cinco da tarde. O alimento para o corpo acabou por não aparecer. O plano das sensações foi ultrapassado pelo plano inteligível e este espectáculo revelou-se como um portentoso alimento para o espírito. O caminho para o inteligível. Como a partir da ficção se pode alcançar a Verdade.

O Limiar da escolha

Um momento de teatro inesquecível foi o que nos proporcionaram as actrizes Manuela Maria e Sofia Alves. Um sopro de génio que deixou uma plateia sufocada pela inquietação.O Teatro Municipal de Faro levou a cena o espectáculo Boa Noite Mãe, de Marsha Norman, com encenação de Celso Cleto, com Manuela Maria e Sofia Alves. O argumento deixa o espectador envolto em múltiplas questões que continuam sem resposta. Será legítimo uma pessoa renunciar voluntariamente à vida? E será legítimo alguém impedir uma pessoa idónea de intentar contra a sua própria vida? Estas questões invadem o espectador desde os primeiros momentos do espectáculo. Sofia Alves interpreta uma mulher adulta, Jess, que decidiu voltar a viver com a mãe, interpretada por Manuela Maria, depois de se ter separado e do filho a ter deixado. Com o peso da epilepsia a persegui-la ao longo da vida Jess apercebe-se de que nunca poderá ser autónoma. Não consegue manter-se num emprego, culpabiliza-se por não ter sabido manter o filho em casa, dentro de um percurso normal e vê-se para o resto da sua existência numa relação de interdependência com a mãe. Manuela Maria interpreta uma mulher que viveu uma existência de submissão mas que finalmente tomou as rédeas à sua vida. Tem uma relação de completa dependência da filha, que, não obstante, oprime com as suas constantes exigências. Jess olha para a vida com um olhar lúcido e percebe que aquela existência vazia nunca irá mudar. Então, durante meses planeia o suicídio. Faz listas intermináveis sobre os mais ínfimos detalhes da vida quotidiana para que a mãe não se esqueça de nada. O mais paradoxal é que Jess anuncia friamente à mãe que está decidida a acabar nessa noite com a sua vida. Porque já não aguenta o seu sem sentido, porque está saturada de ser refém de uma doença que a ataca quando menos espera. A mãe ao princípio pensa tratar-se de um sentido de humor menos ortodoxo mas aos poucos convence-se de que a intenção da sua filha é séria. A perplexidade de Thelma é incompatível com as explicações lógicas e frias de Jess, antecipando o suicídio anunciado. Ao longo do espectáculo, que dura cerca de duas horas, a conversa entre mão e filha tem picos de encontro e de distanciamento. Percebemos que o casamento dos pais de Jess foi uma mentira e que ela tinha uma verdadeira adoração pelo pai. Como todas as raparigas na sua situação cresceu com o sentimento de que a mãe não entendia o pai e que não merecia o seu amor. Pelo seu lado, a mãe tinha ciúmes da cumplicidade que o marido criara com a filha. Viveu entre dois mundos, coabitando com a doença mental, sem a compreensão ou o afecto de nenhum. Talvez por vingança de todo esse sofrimento revelou à filha que o ex-marido a tinha deixado por causa de outra mulher, facto que a filha ignorava. E este tipo de encontros e desencontros entre mãe e filha, lembrando o monumental texto Sonata de Outono, de Ingmar Bergman, são arquetípicos dessa relação específica. Quando a ansiedade e a depressão são realidades com as quais se tem de viver certas revelações, como a convivência com a epilepsia desde os cinco anos, podem ser demolidoras. Então por que é que Thelma revelou à filha Jess verdades terríveis, segredos guardados, na noite em que esta lhe comunicou a intenção de se suicidar? Por maldade? Não, simplesmente porque é assim a natureza humana. Daí ser este texto tão catártico, daí a autora ter ganho o prémio Pulitzer, daí ser tão hediondamente belo. A mãe tinha de revelar verdades cruéis à filha, apesar de não querer que esta se matasse, porque estava na sua natureza. Não foram estas revelações que impulsionaram a vontade de suicídio de Jess, mas também não foram elas que a detiveram. Apenas a tornaram mais consciente da sua determinação. Jess acaba por cumprir a sua palavra perante a impotência da mãe e todos nós nos sentimos impotentes face àquela escolha. E a dúvida manifesta-se e continua a inquietar: será legítimo? É este tipo de inquietação que a Arte em sentido lato e o teatro em particular pretendem incutir no espectador. Para promover melhor essa inquietação muito ajudou a brilhante e surpreendente interpretação de Manuela Maria. Que voz, que presença, que interpretação! Conseguia provocar humor e dor em instantes quase simultâneos. Sofia Alves esteve também à altura de uma grande actriz, revelando o lado obscuro de uma alma atormentada pela doença mental. A cenografia naturalista de Raquel Pinheiro ajudou a manter as actrizes durante cerca de duas horas em cena praticamente sem pausas. No final, o público que aplaudiu entusiasticamente de pé as duas actrizes e que quase lotou o Teatro das Figuras irá certamente voltar ao teatro.

Wednesday, July 2, 2008

Jus ou a solidão da justiça


Todos temos uma ideia do que é injusto. Mas o que será realmente a Justiça? Desde as reflexões elaboradas pelos pensadores no berço da civilização que o Homem se depara com esse problema elementar: o que é a Justiça? Pedro Monteiro e Rita Neves debruçaram-se sobre esta questão e com base em três textos, Revisão do Processo de Cristo, de João Luis Rodrigues Gonçalves, da Condenação de Galileu Galilei e de Um Padrinho Americano, construíram a ideia de um espectáculo. Esse espectáculo foi concebido também a partir de testemunhos de gentes oriundas de meios pequenos, como Cachopo e a Ilha da Culatra, e de presos que estão a cumprir pena no Estabelecimento Prisional de Faro.
O espectáculo começa com imagens de um filme a preto e branco, realizado por Pedro Pinto, acompanhado por sonoridades criadas por Gustavo Brandão, Arménio Mota, Manuel Guimarães e Luísa Brandão. A sincronia entre a imagem e o som, criando momentos de pausa, simbolizando as aporias que amiúde existem nos processos judiciais. O filme apresenta testemunhos de pessoas simples, oriundas de espaços concretos e isolados, que fazem a sua crítica à justiça e aos supostos justiceiros. Segundo os autores do projecto, “A história está cheia de reabilitações pos-mortem: Joana D’Arc, Giordano Bruno, Galileu, Baudelaire... Estas reabilitações vêm confirmar que o acto de julgar o outro, obedecendo às regras de um tempo, pode parecer justo apenas naquele instante, e mesmo assim não para todos...” Um repto à reflexão sobre o conceito de Lei, universal e intemporal. Há testemunhos tocantes de homens que estão a cumprir penas pesadas por pequenos furtos, mas também há os que se sentem mais seguros intra muros prisionais do que em liberdade.
Os actores André Canário, António Salvador e Pedro Monteiro entram em cena depois dos populares terem manifestado a sua descrença na justiça dos homens. António Salvador entra em cena enunciando a sentença de Cristo. Pedro Monteiro e André Canário entram funcionando como contraponto ao discurso do acusador. A indumentária de cor preta é completada por uma toga de juiz, que não se circunscreve a um actor. A cena muda e António Salvador passa a toga a André Canário que passa a encarnar um justiceiro que pretende emendar a justiça feita nos tribunais a quem não se sentiu recompensado moralmente pelas ofensas sofridas. Depois de termos ouvido, em voz off, a sentença de três anos de pena suspensa atribuída a dois violadores conseguimos entrar em sintonia com a dor de um pai que considerou não ter sido feita justiça. Segue-se uma das cenas fortes do espectáculo em que, num autêntico jogo de espelhos, o pai da jovem molestada se dirige ao padrinho para que justiça seja feita. Num texto onde ardilosamente se expõem as falhas do sistema judicial, os actores não se olham frontalmente, falando, contudo, uns para os outros. Jogando às cartas, o padrinho humilha o desafortunado pai, que se rende ao poder da influência e que ultrapassa a justiça dos homens. O homem entra no jogo, prometendo fidelidade eterna ao padrinho em troca de uma justiça de Talião. Os olhos cruzam-se mas não se olham, sendo o público o destinatário da súplica. A toga muda de ocupante mudando a cena para a época obscurantista de Galileu. A partir de extractos do texto de Bertold Brecht assistimos a passagens do processo do corajoso investigador que recolocou a Terra no sistema solar assumindo o heliocentrismo. Este foi um dos polémicos processos históricos, do qual a Igreja se retratou recentemente. É ainda actual a discussão sobre a pertinência da negação que Galileu assumiu, perante o tribunal inquisitorial, de toda a sua vida científica. O senso comum afirma: triste Terra que já não tem heróis, ao que Galileu responde: triste Terra que ainda precisa de heróis. Será a obra de um homem mais importante que a sua própria vida? Galileu sobreviveu ao julgamento e com ele subsistiu uma obra mais vasta que chegou até aos nossos dias. A expressão corporal é o símbolo que se abre em escrita e em fala. O corpo transforma-se em banco, e a face agitada pela negação mostra o sino vitorioso da inquisição.
Com economia de meios, apenas com a caixa preta, os figurinos neutros e a força da interpretação dos três actores e dos testemunhos das gentes simples Rita Neves conseguiu elevar este espectáculo a uma categoria de simbolismo que desoculta o que ficou por dizer pelas palavras. Apesar do texto, o corpo foi o grande intérprete deste espectáculo. O corpo dos actores e os olhos magoados pelas agruras da vida dos outros protagonistas: os que habitualmente não têm voz porque são simples e genuínos.
O espectáculo irá percorrer os locais onde foram feitas as filmagens, ou seja, no Estabelecimento Prisional de Faro, em Cachopo e na Ilha da Culatra e, esteja onde estiver, irá merecer a pena vê-lo, ou revê-lo. E reflectir.

O regresso do Bataclan ao teatro Lethes


Há muito tempo que não se via um espectáculo assim. A produção prometia um espectáculo que convidava a “um mergulho num universo contagiante onde a música, o gesto e a palavra invadem os sentidos. Ao som da música popular brasileira uma homenagem à Mulher nas palavras de Alberto Caeiro, Tom Jobim, Chico Buarque, Luís Gonzaga, Vinícius de Morais, Djavan e Lenine, entre outros. A produção prometeu e nós acreditámos. Mas aquilo que se viu não foi uma homenagem à Mulher, como o tinha feito Cláudia Andrade no belíssimo espectáculo “Ela uma vez”, também apresentado no Teatro Lethes. O que se viu foi uma mulher, Valéria Carvalho, com uma voz bonita mas a precisar de muito trabalho ao nível da afinação, acompanhada por João Ferreira e por Virgílio Gomes, homenageando-se a si própria. Gemendo, abanando as ancas, subido para cima de cubos negros de forma a melhor podermos apreciar as suas pernas e dizendo os poemas com omissões de versos e erros que mudam o sentido por completo ao texto. O ambiente no palco lembrava o de um bar, com cortinas vermelhas e uma cadeira de que Valéria se servia amiúde. Para além da cadeira havia um espaço para a percussão e outro para o guitarrista. Um cabide e dois cubos negros que serviam de plataforma para Valéria subir. Sem nenhuma razão dramatúrgica que o impusesse recitou o poema de Chico Buarque Ana de Amsterdam de cima de uma plataforma elevada. Sempre com microfone. E coloca umas meias de seda preta enquanto recita um outro poema, para logo a seguir as tirar, quando já toda a plateia pôde apreciar com detalhe as suas pernas. Pôs as meias e tirou-as sem nenhuma razão dramatúrgica que o obrigasse. Foi buscar duas colheres de sopa, com as quais brincou, sem qualquer relação com a fala do poema que lhe estava subjacente. O poema Folhetim, de Chico Buarque que foi dado a conhecer por Gal Costa, foi transposto para a voz de Valéria Carvalho de forma grosseira e desafinada, tal como o tema celebrizado por Maria Bethânia Sem Açúcar, igualmente de Chico Buarque, foi cantado sem se dar o devido peso à letra forte, homenageando as mulheres vítimas de violência doméstica. Senão, vejamos: “Todo dia ele faz diferente, não sei se ele volta da rua /Não sei se me traz um presente, não sei se ele fica na sua /Talvez ele chegue sentido, quem sabe me cobre de beijos/ Ou nem me desmancha o vestido, ou nem me adivinha os desejos /Dia ímpar tem chocolate, dia par eu vivo de brisa/ Dia útil ele me bate, dia santo ele me alisa / Longe dele eu tremo de amor, na presença dele me calo / Eu de dia sou sua flor, eu de noite sou seu cavalo/A cerveja dele é sagrada, a vontade dele é a mais justa/ A minha paixão é piada, sua risada me assusta / Sua boca é um cadeado e meu corpo é uma fogueira/ Enquanto ele dorme pesado eu rolo sozinha na esteira /E nem me adivinha os desejos/ Eu de noite sou seu cavalo”. Este poema traduz a vida de uma mulher infeliz, sujeita aos caprichos e às tareias de um homem sem valores e, por si só, não traduz uma homenagem à Mulher, como dizia a produção. Com a encenação do homem vestido de branco e chapéu à Borsalino a entrar, sentar-se, beber uma cerveja e ir-se embora a cambalear, é uma homenagem a todos os malandros que passam incólumes pelo palco da vida abusando das mulheres e prosseguindo, considerados heróis pelos seus congéneres.
O célebre tema de Luís Gonzaga Saia Bastiana serviu para que Valéria partilhasse uma vez mais com os espectadores as suas pernas, ao subir a saia à medida que ia cantando o tema. Em cima de uma plataforma, claro!
O tema “Mania de você”, de Rita Lee fez-nos desejar correr até ao coliseu de Lisboa no próximo dia 1 de Julho para assistir a um concerto da própria Rita, cantando este tema afinado e com os agudos que lhe são próprios.
O heterónimo pessoano Alberto Caeiro foi inserido nesta colectânea de suposta homenagem à Mulher porque é sempre de bom-tom inserir Fernando Pessoa num espectáculo de poesia, mas mesmo assim com erros. Valéria, ao citar um excerto do “Guardador de Rebanhos” disse: “Eu não tenho filosofia, tenho sentido” em vez de empregar a palavra correcta: sentidos. O que faz toda a diferença ao nível do esquema semântico do poema. Também Florbela Espanca, que nem sequer consta da folha de sala, sendo remetida para o confortável “entre outros”, não foi tratada de forma mais dilecta. Antes pelo contrário, pois a única poetisa portuguesa que constou da colectânea foi citada omitindo um verso do seu soneto Amar e baralhando pronomes. É sabido e estudado que o último verso do soneto Amar, “Que me saiba perder para me encontrar”, encerra em si significado pouco evidente, filosófico, do âmbito da ontologia. Florbela precisa de se libertar de si entregando-se a outros para finalmente se encontrar na sua essência de Mulher. Valéria disse: Que me saiba perder para te encontrar, o que suja todo o sentido original do poema.
Não é assim que se homenageia a Mulher. Para se dizer poesia é preciso sabê-lo. Fazer desse acto um ritual sagrado, saboreando as palavras e dizendo-as como o poeta as escreveu. Para se cantar é preciso trabalhar a afinação. Para se homenagear a Mulher e a Língua Portuguesa é preciso respeitar as duas. Talvez este espectáculo fosse adequado para o extinto “Zé das Couves”, espaço sociologicamente interessante para um estudo de uma Lisboa decadente. Não se enquadra para a dignidade do Teatro Lethes e muito menos para a dignidade da Mulher ou da Língua Portuguesa. Maria João dá dignidade à mulher e à Língua Portuguesa. Cláudia Nóvoa presenteou todas as mulheres com “Ela uma vez”: uma autêntica pérola com poesia escrita por sete mulheres, portuguesas e brasileiras. Eugénia de Melo e Castro ganha prémios no Brasil homenageando a Mulher e a Língua Portuguesa. Não precisamos de quem se homenageie a si própria sem sentido dramatúrgico nem cénico. Nem de quem se engana nos textos de referência de poetas de sentido universal, nem de quem desafine. Precisamos de actores honestos.

Um projecto de coragem

Quatro mulheres de coragem é a tradução de António Henrique Conde do texto Bold Girls, premiado com o Most Promising Playwrigth Award pela comissão de críticos de teatro de Londres. Levar à cena este texto foi um desafio de coragem que Figueira Cid propôs encenar a quatro actrizes: Ana Leitão, Josefina Massango, Marta Inocentes e Sara Costa, esta última aluna do mestrado de teatro da Universidade de Évora. Quatro actrizes que conseguiram dar, ao longo de duas horas, a sensação de que todos estávamos debaixo do fogo cruzado de Belfast. Quatro mulheres a quem levaram os homens. Mortos ou presos, eles são a ausência que elas têm de ultrapassar num mundo povoado pelo medo. Em Quatro Mulheres de Coragem O universo feminino permanece intocável malgrado os autocarros a arder, os tiros a rondar a casa, os bloqueios da estrada. O pão continua a entrar em casa e as crianças continuam a espalhar os brinquedos pela sala. A generosidade intrínseca não permite que se negue uma chávena de chá às amigas nem um pouco do calor da lareira a uma desconhecida, fugida das balas que, ensanguentada, pede guarida.
Este texto fala da vida. De uma vida difícil que as mulheres furam e decidem tornar mais leve. E rir. Riem das suas misérias, dos seus medos, das cenas trágicas e brutais por que passaram. Os tiros ouvem-se ao longe e ao perto, o medo é constante. No entanto, estas mulheres conseguem fantasiar com uma noite diferente. Conseguem pôr um vestido bonito para dançar, conseguem sonhar com uma vida diferente olhando para o verniz espelhado nas unhas. A história põem em confronto mulheres que descobrem segredos inenarráveis e que, mesmo assim, ultrapassam o ódio e continuam a amparar-se.
A caracterização das personagens está rigorosa e real. Elas são quatro mulheres irlandesas, que se vestem como mulheres irlandesas católicas, que se preocupam com a maledicência alheia, contribuindo para ela.
O espectáculo Quatro Mulheres de Coragem conduz o espectador a uma vertigem de violência interior absorvente. No texto debatemo-nos com duas viúvas, uma órfã e a mulher de um prisioneiro político. As amigas traem-se, mãe e filha acusam-se mutuamente, a órfã vem destabilizar a rotina quotidiana. No final a órfã encontra uma nova mãe, a viúva uma nova consciência, a mulher do prisioneiro uma nova vida e a mãe uma nova paz.
A cenografia, realista, recria o interior de uma casa modesta de Belfast e o interior de uma discoteca onde se sorteiam electrodomésticos. Na casa se prepara o chá, se lava e engoma ainda roupa de homens que morreram, se estende numa longa corda improvisada as vestes de viúva, pressagiando a saída para a noite. A madrugada traz consigo os seus despojos e o estendal é transformado noutro mais pequeno, com vista para a rua, anunciando uma mudança. A mudança de perspectiva do olhar, simbolizada pela roupa ocultando a vista que se tem da janela, abarca todos os intervenientes na história. A rapariga que olhava a vida da casa a partir do seu exterior passa a fazer parte integrante dela. A mãe de Cassey descobre que a filha sempre apoiou o pai, mesmo quando a encontrava a sangrar depois de uma sova. Marie retira finalmente a fotografia do marido, assassinado por motivos políticos, e exprime toda a sua raiva na imagem do homem intocável que criou. Confronta-se com a mentira, vivida ao longo de anos, e muda o seu código de valores. Cassey assume-se perante a mãe, revela-se perante a amiga e parte à procura de outra terra, longe da miséria moral que a envolve.
O desenho de luz de Henrique Martins e Figueira Cid é rigoroso, colorindo e ocultando as cenas na justa medida da sua intensidade dramática.
O equilíbrio entre as quatro actrizes é uma marca deste trabalho e a emoção prende o espectador do primeiro ao último momento. Desde a conversa banal do quotidiano feminino até ao momento da rusga no nigth-club da terra, estas quatro actrizes são genuínas e conseguem passar as diferentes emoções. Foi tocante ver estas quatro mulheres chorarem, rirem, acocorarem-se com o medo, gritarem de raiva. Um desempenho de excelência. Uma encenação de coragem. Um prazer para o espectador.