Wednesday, December 12, 2007

Teatro do Ferro - Uma viagem ao nosso interior profundo

Sexta-feira foi o nome de um espectáculo apresentado no Teatro das Figuras pelo grupo Teatro do Ferro, sob a encenação de Igor Gandra. O grande público poderia ter pensado: mais um texto sobre a história do náufrago Robinson Crusoé, que encontra o selvagem ao qual baptiza com o nome do dia da semana encontrado. Mas a partir desta história o Teatro do Ferro convidou o público a fazer uma viagem ao seu interior profundo através de um universo simbólico. O espectáculo foi concebido a partir de uma instalação de Fernanda Fragateiro e de um workshop, ocorrido em Maio passado no Solar do Capitão-Mor, com pessoas de Faro. Nesse workshop encontraram-se pessoas com diferentes experiências e de diversas idades, o que abriu as portas ao ecletismo observado ao nível da evolução do espectáculo final.
O espectáculo começa no exterior do Teatro das Figuras. Os quatro actores aproveitaram o alpendre sobre a fachada principal e reconstruíram a viagem de barco de Crusoé. O público foi convidado a colocar uns auscultadores através dos quais ouvia os sons a ele inerentes. Ao princípio era a música empolgante. Os quatro actores, de cima da plataforma do teatro, mostravam o orgulho dos conquistadores dos mares através de uma coreografia que remeteu de imediato para os símbolos que iriam ser utilizados no espectáculo. Marchando como marinheiros, os actores serviram-se de sacos de plástico brancos, com os quais mostravam pequenos utensílios domésticos que iriam ser fundamentais para a sobrevivência na ilha, como a luneta, a pá, o caldeirão ou o martelo. Depois deste início algo surpreendente o público foi convidado a deslocar-se até à sala de espectáculo, no interior do Teatro das Figuras. A sala tinha-se transformado num imenso espaço onírico, criado pela vasta névoa que nascia do palco. O espaço de representação acolheu os espectadores, que se sentaram numa pequena plataforma ao longo da boca de cena, próximos dos destroços do navio naufragado na ilha. A ilha era constituída por enormes construções em madeira, fruto do empenho de Crusoé ao longo das duas décadas de sobrevivência na ilha. Os espectadores iam ouvindo o texto através dos auscultadores, misturado com as sonoridades fortes da música original. O cenário, construído quase exclusivamente por paletes de madeira, contribuía para a ideia de prisão, da qual partilham muitos ilhéus. A disposição das paletes e o desenho de luz contribuíram para a construção de uma narrativa simbólica, através da qual o espectador poderia viajar através das suas próprias prisões. Os actores seguiam o ritmo forte da música, evoluindo dentro do cenário de grandes dimensões, subindo às árvores, acima de rochedos, de escarpas, permanecendo no areal. Tudo isso lhes foi dado ver através da movimentação coreográfica dos actores e com a ajuda do texto que ia sendo interiorizado através dos auscultadores. Como adereços de cena os actores serviram-se de sacos de plástico brancos. Esses adereços transformavam-se, através de uma linguagem corporal forte e da utilização correcta do adereço, naquilo que se queria ver. Desde pequenos animais até pequenos utensílios domésticos, até à imagem simbólica do sufoco de quem está numa prisão insular e não antevê uma hipótese de se libertar. O desenho de luz, belíssimo, oferece ao público a visão de uma selva através da qual o sol penetra por entre as folhagens. Feita a inserção do público no universo de Crusoé, é convidado mais uma vez a seguir os actores até um espaço por detrás do palco, onde está um pequeno biombo, no qual estão a ser projectadas cenas do filme Sexta-Feira, Vida Selvagem. Esse é o local do encontro entre os dois seres humanos. O receio mútuo, a fuga da tribo dos canibais, o espírito colonizador de Robinson e a capacidade de entrega de Sexta-feira, o ser que começou a partilhar o universo insular do náufrago. A dificuldade de comunicação é exposta através do corpo e da exibição do alfabeto da língua gestual. Sem formar palavras, só através da ostentação do alfabeto, como primeiro passo para a abstracção simbólica de uma comunicação verbal. Robinson é salvo e regressa ao velho mundo. Assim os quatro actores são resgatados por motards, nas traseiras do teatro, após o fim infeliz de sexta-feira. Acenam e partem à boleia dos motociclos, regressando ao seu mundo. O público também regressa ao mundo de Robinson e encontra o universo simbólico repleto de sacos brancos. Os sacos brancos invadiram as lianas, as pequenas casas de madeira, e colaram-se também aos próprios espectadores. A invasão do espaço virgem pelo plástico pode ser a metáfora de uma invasão do homem que está aos poucos a destruir a sua própria essência. Os espectadores partiram com o legado do náufrago nos seus pulsos, assim como à Terra está a ser imposto o legado do Homem contemporâneo.
O isolamento do homem perante os outros e perante o mundo é sustentado simbolicamente através dos auscultadores, que o isolam, mantendo o espectador a assistir a um espectáculo sozinho, no meio de muitos. Outros, iguais, mas mantendo a distância perante si próprios e perante o mundo. Um isolamento de um mundo de plástico, matéria ela própria isolante, que corta a ligação à Natureza e à Terra-Mãe. No fundo, um isolamento perante si próprio.
Sexta-feira é um espectáculo que, mobilizando o grande público, convida a uma reflexão profunda sobre o universo interior do próprio Homem. Náufragos de nós próprios, os actores mostraram que a insularidade é um estado de espírito que pode assaltar qualquer um de nós. Os figurinos neutros evidenciam a figura humana, abrindo o olhar também para a diferença de género, não se circunscrevendo a dramaturgia à figura do homem. As actrizes apresentam um figurino marcadamente feminino dentro da neutralidade, expondo o microcosmos da humanidade, composto pelo masculino e pelo feminino.

A Caverna abre-se ao mundo das sombras


A alegoria da Caverna assume-se como um texto eterno, imagem vezes sem conta recontada, que nos mostra a visão platónica da ascensão ao conhecimento e à visão face a face de um mundo sem filtros, verdadeiro. De Saramago a Matriz, inúmeros foram os criadores que partiram deste texto para a construção da sua própria alegoria de uma realidade que tenta ser mas que apenas parece. A eterna dicotomia entre os dos planos platónicos: o ser e o parecer. A verdade e a ilusão. O Mundo das Ideias e o Mundo das Sombras.
Alfredo Gomes pegou na Alegoria da Caverna pelo lado da condição humana. A alegoria do ser humano, prisioneiro de si próprio, retratado em Sísifo, condenado ao pior dos castigos: trabalhar sem um objectivo. Em Platão, e numa leitura mais imediata, o mito centra-se na conformidade com a realidade existencial e com a assunção de uma realidade aparente, mesmo depois de se saber que esta realidade é uma mentira. Alfredo Gomes trabalhou com os seus alunos esta problemática convidando o público a reflectir sobre a dimensão da mentira ao nível da linguagem e ao nível ontológico. Muito interessante o diálogo de Cocteau mantido pelos quatro prisioneiros, recorrendo à técnica da máscara. A assunção da máscara que se mantém, apesar de se ter tentado tirar está, de facto, engenhosa.
A realidade do faz de conta que se vive ao nível dos gabinetes institucionais, semelhante a um universo kafkiano, revela-se sob a parede opaca que protege os directores-gerais ineptos deste mundo. Mas há quem não se conforme com as respostas administrativas e lute por procurar um mudo onde a realidade se imponha sem as eficientes secretárias que nunca facilitam o acesso ao director-geral, sem falsos vendedores que não falam do perigo do endividamento, sem as ilusões dos centros comerciais, que apenas protelam por um momento a ilusão de felicidade. Há os que insistem em varrer as folhas de diante da porta de casa, mantendo-a limpa, sem outros ornamentos que não ela própria. Os que insistem em manter a sua integridade, apesar de saberem que irá ser uma luta desigual, e os que preferem manter-se nos carreiros de formigas, trabalhando como Sísifo, porque o seu objectivo se reduz a uma ilusão: consumir aos fins-de-semana nos centros comerciais, construídos, justamente, segundo Saramago, sobre as fundações da Caverna de Platão. Apenas faltaram os fatos de treino verdes e roxos de Lobo Antunes, com a subsequente troca inusitada de esposas e proles.
Mas este não é apenas um trabalho sobre a ilusão consumista do homem contemporâneo. É um trabalho feito por adolescentes, para adolescentes, com a coordenação de um professor e que nos fala sobre a capacidade de ultrapassarmos os nossos limites. Limites ao nível da capacidade de sonhar, impostos pelo conformismo. Limites impostos pelas moscas que lavam as mãos, como Pilatos, e que se enxotam constantemente. Ultrapassar o limite de nossa capacidade de acreditarmos em nós próprios e pensarmos que podemos construir um mundo melhor, sem termos de estar a varrer constantemente as folhas da nossa ilusão. Limites ao nível da nossa capacidade de transmitir ao outro mensagens que só conseguem passar através da arte.
Este trabalho da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes abre o olhar ao espectador para os vários níveis ontológicos da teoria platónica do conhecimento. O nível mais básico, das sombras, no qual os serem se querem manter, apesar de saberem que aquela realidade é uma ilusão. O nível seguinte, de alguém que já se libertou da sombra, mas que ainda não consegue despertar completamente para uma realidade sem artifícios. A realidade da varredora que teima em afastar o supérfluo mas que ainda não se dispôs a procurar sair da sua realidade sombria. O terceiro nível de conhecimento revela aquele que já é capaz de olhar para os próprios objectos. Esse homem é capaz de se ver a si próprio como arauto da boa nova, anunciando os males de que padece o mundo, pondo os dedos nas feridas, mas ainda não é aquele que é capaz de olhar para a verdadeira fonte da verdade: o bem. Na realidade, esse é o nível mais complicado de se ultrapassar, uma vez que o homem que o alcançou pensa frequentemente que já é detentor do saber que lhe permite olhar para a realidade sem os filtros da ficção. Mas para se chegar ao quarto nível, propósito possível de alcançar para Platão, é necessário assumir a dor física da perda da ilusão. Recordemo-nos do sofrimento físico de Neo, em Matrix, quando vira as costas à ilusão do seu mundo de faz de conta e assume a realidade sem adereços do mundo real. Uma dor insuportável que o espectador experimenta metaforicamente quando é confrontado directamente com a luz do fundo da Caverna. Uma dor a que se junta a incompreensão dos outros, que se sentem confortáveis na obscuridade da prisão. A dor do esclarecimento e da clarividência é tanto menos suportável quanto maior forem as trevas que reinam sobre o seu mundo. Com textos de Alberto Pimenta, Fernando Pessoa, Gil Vicente, Gonçalo M. Tavares, Jean Cocteau, Jerry Seinfeld, Platão e Spiro Scimone, utilizando como suporte musical compositores como Bernardo Sassetti, Shostakovitch, Philip Glass ou Luciano Berio, a Alegoria da Caverna ou a Problemática de Uma Fotocópia Mal Tirada é um espectáculo que intervém directamente na educação de públicos. Pelos autores e compositores de que se serve, desconhecidos para a maior parte do público adolescente, pela temática que utiliza e pelo génio que desenvolve nos seus actores. Um desenho de luz que brinca com a obscuridade e a sombra e consegue dar ao espectáculo a dimensão onírica que se pretende. A defender este espectáculo estiveram Carolina Tempera, Laura Sena, Levi Nascimento, Mafalda Saraiva, Mariana Catarino, Mariana Pereira, Patrícia Jorge, Pedro Roma, Ricardo Correia, Susana Veloso, Teresa Colaço e Vanessa Santos. A direcção esteve a cargo de Alfredo Gomes e Nídia dos Santos. Mas a grande questão do texto permanece: como decifrar uma fotocópia mal tirada? Podemos dizer que o evento Outonos do Teatro, de Portimão, abriu com chave de ouro. Assim os outros espectáculos possam contribuir igualmente para a educação do público e para a edificação do Homem.

Um texto coreografado


Évora foi palco da 5ª edição dos Encontros de Teatro Ibérico: um evento anual que se inscreveu já no calendário teatral do Inverno eborense, mas cuja dimensão cultural ultrapassa largamente os limites sócio-geográficos da urbe alentejana. De facto, os Encontros de Teatro Ibérico, nascidos em Évora em 2003 (a partir de uma iniciativa conjunta que se mantém entre o Cendrev e o IITM – Instituto Internacional del Teatro del Mediteráneo), são os únicos do seu género na península, ao reunirem espectáculos teatrais dos dois países, realizados com dramaturgia portuguesa e/ou espanhola de criação recente, constituindo um lugar de encontro e de intercâmbio entre as realidades artísticas dos dois países vizinhos, no que à criação teatral e dramatúrgica diz respeito.
Este ano uma das prestações mais interessantes do encontro deveu-se ao grupo Escola de Mulheres, que trabalhou o texto de Teresa Rita Lopes Coisas de Mulheres… e de Homens! Uma peça composta por vários monodiálogos, como Teresa Rita Lopes os define. Reconstruções de momentos um dia qualquer que nasce carregado de projectos que percorrem uma lógica do absurdo e que conduzem normalmente ao desastre ou a novos rumos para a vida. Encenado por Marta Lapa, o espectáculo adoptou o curioso nome Imagina que descalcei o sapato e agora não o consigo enfiar. Esta encenação teve a virtude de mostrar um texto coreografado, interpretado por Isabel Ribas, Marina Albuquerque e Meredith Kitchen. Num espaço de arena as três actrizes jogam as personagens umas com as outras com uma frescura e uma vivaciade pouco usuais. De facto, Teresa Rita Lopes apresenta-se como uma autora próxima, contemporânea, que se presta a uma criação coreográfica de textos que falam do quotidiano. A peça faz a reconstrução de momentos de um dia que nasce carregado de projectos que percorrem uma lógica do absurdo e que conduzem normalmente ao desastre ou a novos rumos para a vida. Da ansiedade no dia do casamento, da descoberta dos primeiros cabelos brancos, da necessidade da hipocondria, da decepção motivada por umas lentes de contacto, dos desgostos amorosos que acabam a ser cantados em ritmo de samba. O espectáculo foi suportado pela música original de João Lucas e pelo desenho de luz de Manuela Jorge.
Surpreendente e arrojado, este espectáculo conseguiu ultrapassar a monótona visão portuguesa e mostrar as coisas de cada um de nós, como o amor, o desamor, as desilusões da vida, de um modo interessante e novo.

Cabaret de Ofélia - Uma viagem de múltiplos sentidos


O encontro com a obra de Armando Nascimento Rosa é sempre uma surpresa, pela ousadia com que este autor trabalha os intocáveis mitos do imaginário cultural europeu. Desde os mitos clássicos, como Um Édipo, ou A Última Lição de Hipátia, passando pelo universo judaico-cristão em Maria de Magdala até se centrar no cerne do imaginário português, como no texto O Eunuco de Inês de Castro, ou ainda, Audição – Com Daisy ao vivo no Odre Marítimo, Armando Nascimento Rosa vai desfiando o rosário do outro lado dos textos e da vida, como se fosse o feliz neófito capaz de viajar para além do conteúdo manifesto. Dotado de uma invulgar capacidade de análise e ousadia Armando Nascimento Rosa aprofunda o visível e resgata personagens votadas ao esquecimento, como Ofélia Queiroz, a eterna namorada de Pessoa, ou a poetisa modernista Judith Teixeira. Encenado por Cláudio Hochman, Cabaret de Ofélia reúne personagens singulares como Daisy, assumida como uma artista transformista que criou nome em terras de Vera Cruz como “uma lenda viva da poesia e do music-hall”, como Cecília, a filha adoptiva de Daisy como a esquecida poetisa Judith Teixeira, ou ainda como Mary Burns que Armando Nascimento Rosa reconstitui com a personagem principal de Labareda, a peça desaparecida de Judith. Daisy, por si só, é uma personagem complexa na Dramaturgia de Nascimento Rosa. Como ele próprio afirma no seu estudo Judith Teixeira em Cabaré de Ofélia: O resgate cénico de uma voz dionisíaca “Em Audição, a figura de Daisy Mason Waterfields (este segundo apelido aquático é baptismo meu) era a cicerone xamânica, transexual e hermafrodítica, recriada a partir da figura de enigma nomeada em Soneto já Antigo, e a quem a persona de Álvaro de Campos dedica o poema.” Daisy parte para o Brasil onde encontra uma menina de rua, que perfilha, e que é evocada num poema de Pessoa que, segundo Armando Nascimento Rosa, “confessava a certa altura ter uma afilhada orfã, chamada Cecily, arrancada também ela a Soneto já Antigo”. A partir dessa informação o autor cria todo um enredo de encontro que resgata Cécily das ruas e a apresenta como co-cicerone de Daisy, a sua mãe adoptiva. Juntas contam a história de Judith Teixeira, recriando um trecho de Labareda, o seu texto desaparecido. Bonita e merecida homenagem de Nascimento Rosa a essa poetisa futurista da geração de Orpheu.
O espectáculo, apresentado no salão nobre do Teatro Garcia de Resende, começa com a entrada dos músicos. Excelente formação, composta por um baterista, um contrabaixista e um pianista, (Ulf Ding, João Bastos e Luis Cardoso) que vão acompanhando ao vivo a evolução do Cabaret. A entrada encenada dos músicos, na qual trocam de posições, é já uma antevisão dos cruzamentos que o espectáculo irá sofrer. Os figurinos de Sara Machado da Graça dão ao espectador uma noção de transgressão, necessária para o posterior acompanhamento do espectáculo. Ofélia Queiroz, interpretada por Rosário Gonzaga, assumindo a vetusta idade, entra em cena e junta-se ao público do café teatro. A actriz Catarina Matos assume no espectáculo as suas mágoas quanto à sua condição de mulata, amiúde rejeitada em vários castings. Conta como encontrou Ofélia, não a de Hamlet mas a eterna namorada de Pessoa, e como esta lhe passou a caixa de recordações de Cecília, a menina adoptada por Daisy. O espectáculo, sustentado por um texto inteligente, mostra uma Daisy transformista, interpretada magistralmente por Hugo Sovelas, que, deslizando nos imensos saltos altos, é capaz de divertir e emocionar a assistência. É comovente a cena do encontro de Daisy com Cecília, a partir da qual as duas se tornam inseparáveis, mostrando um olhar maternal, capaz de albergar qualquer menina perdida.
Rosário Gonzaga é uma Judith Teixeira exímia, mostrando o lado dorido de uma poetisa sofrida. A dor partilhada da queima dos livros, protagonizada pela censura, é sentida pelos espectadores através do olhar perturbado da poetisa. Comovente como Rosário Gonzaga consegue mostrar tod o desespero de um autor a quem estão a queimar a obra: Com o seu olhar perturbado recita: “Cheira a carne queimada. A carne de pessoas que foram queimadas vivas na praça. O cheiro é insuportável, é o cheiro da asfixia. Sou uma das que ardeu neste auto-de-fé. Não, não foram só papéis que arderam, foram membros, foram troncos. Foram seios, foram corpos de amantes reduzidos a carvão... Pois se são imorais os meus poemas e falam de vícios da carne abomináveis, então esses mancebos de raça pura que os queimaram lançaram também ao fogo o corpo de quem os escreveu. E com o meu corpo arderam corpos e lugares celebrados nos meus versos e nos versos dos meus parceiros de blasfémia.” Judith Teixeira foi queimada viva na fogueira com os seus livros. Mas, como nos diz Nascimento Rosa, “E quem sabe as luzes do palco incidirão sobre ela com mais intensidade do que as breves linhas que alguns dicionários de literatura hoje lhe consagram? (…) Cabaré de Ofélia tematiza teatralmente esta rasura, procedendo a um resgate de Judith, bem como do que o seu olvido representa, através do poder da cena, para a qual não hesitei em imaginar-lhe os versos que ela teria proferido na praça onde lhe queimaram os livros.”, a personagem de Judith Teixeira sucumbe a um cancro com a mágoa de ter visto os seus escritos destruídos na pira da censura. A trágica história de Mary Burns, a negra albina violentamente assassinada, é recriada por Catarina Matos e Rosário Gonzaga. Fazendo ainda justiça à poetisa maldita, o espectáculo termina com um soneto da sua autoria musicado e cantado por Daisy e Cecília.
Como o autor disse, “Cabaré de Ofélia é antes de mais um experimento em fuga à convergência dramatúrgica num clímax definido que cumula a progressão dramática, próprio da tradição aristotélica. Parodicamente consciente da interpretação falocêntrica que esse singular clímax pode acarretar, esta peça substitui-o, no seu mosaico de sucessão e justaposição cabaréticas, dramáticas e cómicas, numa proliferação de clímaxes, como metáfora dos orgasmos múltiplos que só ao corpo da mulher é dado fruir. Imagino que esta metáfora erótica, projectada em drama, teria por certo agradado à sensualista Judith Teixeira, e por isso estou em crer que o seu fantasma teatral gostará de habitar a partitura virtual que concebi, para acolher a censurada Judith, nesta arte da memória viva tornada espectáculo a que chamamos teatro.”

Começar com Beckett


No centenário da morte de Samuel Beckett o Teatro do Bolhão levou à cena o texto inédito em Portugal Começar a Acabar .Um texto deprimente sobre a velhice e o abandono, para o qual, paradoxalmente, Beckett pediu o máximo de gargalhadas. Este pedido insólito tem a ver com a máxima beckettiana segundo a qual, “não há nada no mundo mais cómico do que a infelicidade”. A felicidade é ordeira aborrecida. Beckett, influenciado por Shoppenhauer, denuncia de forma implacável a condição humana. Beckett ri-se do nosso ser miserável, recuperando o sentido de tragédia, a partir do qual une a visão apolínea com o sentido dionisíaco risível. Assumindo esta visão dualista da vida, imerso num profundo pessimismo, o percurso do humano acaba quase sempre no desejo de morte.
João Lagarto desenvolve o sentido dionisíaco do texto e contagiou o público com o absurdo da existência da personagem que interpretou. Neste espectáculo o público é apanhado de surpresa no início e fica suspenso no texto até ao fim. Porque o texto de Beckett é forte e humano e porque a personagem é desconcertantemente bela. Um velho mendigo com roupas velhas e gastas a falar do pouco tempo que lhe resta para sobreviver. O monólogo, Beginning to End" (Começar a Acabar) que estreou pela primeira vez em Paris em 1970, é a junção de três narrativas do escritor: Molloy, Malone está a Morrer e O Inominável, e tem como tema principal a inevitabilidade da morte. Na estreia foi interpretado por Jack Macgowran, amigo e compatriota de Beckett, mas, depois da morte daquele actor, três anos depois, nunca mais foi representada. A versão portuguesa, que coube ao teatro do Bolhão, contou com duas canções originais de Jorge Palma, ambas com poemas de Beckett, que foram interpretadas em palco por João Lagarto. As palavras sucederam-se sofridas e contundentes, numa personagem que se baba e mostra a sua decrepitude, iluminado por três lâmpadas, símbolo de uma vida que se vai lentamente apagando. De resto, o desenho de luz de José Carlos Gomes ilustra de forma notável essa decrepitude no corpo e na alma
Aos momentos em que lembra histórias banais, como a descrição hilariante de como se pode chupar 16 seixos diferentes, colocando 4 em cada bolso, sem nunca repetir seixo algum, seguem-se pausas de introspecção profunda em que o homem prestes a morrer se queixa da vida, da falta de amor e da solidão. Uma interpretação notável. Um espectáculo que irá ficar na nossa memória.