Thursday, November 1, 2007

Stabat Mater - Uma dolorosa beleza




Stabat Mater ("Estava a mãe") corresponde às duas primeiras palavras do hino Mariano, a partir de um poema medieval, que descreve a angústia da Virgem Maria durante a crucificação. Um hino litúrgico que celebra as dores da Mãe de Cristo no calvário quando este sofria o processo de morte.
Este acto de contemplação do sofrimento de Maria inspirou António Tarantino, artista e escritor italiano, escreveu uma Stabat Mater, encenada por Jorge Silva Melo. A relação do hino mariano com a contemporaneidade assenta na contemplação do sofrimento e das mortes alheias, seja nas ruas seja nos pardieiros, seja nas prisões. Esta Mãe Dolorosa é a história de Maria, ex-prostituta, vivendo de expedientes, mãe solteira, plena de uma raiva explosiva contra a sociedade, à procura do filho desaparecido. O texto é um longo monólogo, onde a partir da linguagem de rua dos bairros sociais, destaca-se a hipocrisia, as linhas cruzadas da vida, as entranhas de uma dor que não salva, e da história que apenas se mostra circular, sem evoluir para uma espiral que aprende a contornar os erros do passado. STABAT MATER é a primeira peça de uma tetralogia de António Tarantino, do qual fazem também parte Paixão Segundo João, Vésperas da Virgem Santíssima e Brilharetes, que lhe valeu o mais alto e prestigioso reconhecimento dramatúrgico para a escrita teatral italiana - Prémio Riccione. Foi revelado em Portugal em 2004 com a leitura encenada de A Casa de Ramallah e, em 2005, com a estreia de Paixão Segundo João. Neste texto descobrimos vários cruzamentos, tanto da esfera privada como do plano da política nacional e internacional. Para além de ser uma crítica à hipocrisia social que fecha os olhos à prostituição e envia para o convento meninas abusadas pelos pais, põe o dedo na ferida das instituições que consideram uma bênção para os pobres e os despojados as pensões de sobrevivência e o apoio que um estado de direito tem obrigação de dar aos que mais precisam. Aponta o dedo, com a crueldade imposta, aos serviços sociais que olham com desprezo os indivíduos que apoiam. É muito significativa a imagem do ambientador que se espalha no ar após a visita de um desses enteados da vida. Para que não permaneça a memória da miséria nas consciências confortáveis dos serviços sociais.
Maria sobreviveu sozinha sacrificando-se por um filho que tinha o pior dos males para um pobre: a inteligência. Porque quem é inteligente aspira a uma vida melhor, tanto para si, como para os outros. Quem é inteligente não olha se resigna com a miséria moral que descobre em seu redor. Quem é inteligente torna-se politicamente activo, mesmo que esse acto lhe possa trazer a prisão e a morte. Maria, sem saber, contribuiu para a crucificação do seu filho, porque lhe deu uma educação que lhe permitiu esclarecer-se e pensar que podia lutar por um mundo melhor. Deu-lhe a ideia de liberdade, pela qual se deixou “crucificar” para salvar a humanidade.
Maria sentia-se limpa. Mais limpa do que a mulher do homem que se servia dela e a engravidou. Mais limpa que toda a fauna que vagueava pelas ruas, ao seu redor. Sentia-se limpa porque tudo aquilo que fez, fê-lo com um propósito nobre: criar o seu filho e afastá-lo, tanto quanto possível dos caminhos mais perigosos e vulneráveis, como a homossexualidade, a prostituição, a pederastia, o roubo, a marginalidade. Não foi capaz de o afastar da poesia nem da capacidade de sonhar, perigos bem reais que poder levar um ser humano à perdição.
A encenação de Jorge Silva Melo assentou na figura da actriz. Através da sua encenação Maria João Luís soube transmitir alguma dignidade dentro da miséria moral inquietante em que a sua personagem esbraceja. A sua interpretação foi dolorosamente bela, como a composição do poema mariano. A cenografia, depurada, limita-se a quatro bancos corridos com genuflexório, uns caixotes com roupa e um painel rectangular de cor vermelha que domina a cena. O vermelho, arquétipo do sangue, do sofrimento, do erotismo, encontra reflexo no discurso de Maria: despudorado, repetitivo, mas apaixonado e expressivo. O palavrão faz parte do seu ser rude, assim como a capacidade de implorar pela salvação do seu filho faz parte do seu ser abnegado. O banco da igreja metamorfoseia-se num banco de rua ou num banco de tribunal. O banco corrido, colectivo, institucional, onde Maria passa horas à espera: das preces, dos subsídios, da justiça, do pai do seu filho. A dolorosa mãe, no banco do calvário da justiça, chorando antecipadamente as lágrimas pelo seu filho desaparecido. António Tarantino também nos convida a fazer uma reflexão acerca do flagelo do aborto clandestino, que Maria se recusou a fazer. Recusando-se a dar-lhe a paternidade ao filho, o homem que a engravidou olha com condescendência e uma ligeireza perturbadora a intervenção feita com agulhas de croché, a custos divididos, que o libertaria de qualquer responsabilidade.
Maria João Luís vai passando todos esses contrastes, todas aquelas confusões de sentimentos através do poder da sua interpretação. Com um poder de transfiguração em palco notável, a actriz faz com que qualquer espectador se apiede da sua história, no sentido do estar-com, num sentido do ser-com-o-outro verdadeiramente heideggeriano. E esse sentido existe porque nos revemos na sua história extremamente humana de despojamento e entrega. Como Jorge Silva Melo disse em declarações à imprensa nacional: "Não havia outra actriz em Portugal para fazer isto. É um texto brutal, obsceno, sobre uma mulher que insulta o Mundo inteiro, mas que, afinal, traduz uma enorme procura de amor. É uma forma de dizer 'eu existo, olhem para mim’ é uma peça para ver com compaixão". E nós acrescentamos, através do poema que inspirou esta obra: “Faz, ó Mãe, fonte de amor! / Que eu sinta o espinho da dor, / Para contigo chorar.

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