Wednesday, November 14, 2007

Um, Dois e... Humor inteligente!


Ainda bem que há programadores que investem em espectáculos de humor que não se reduzem à piada fácil, à graçola com conotações brejeiras ou ao palavrão. Filipe Crawford há muito tempo que tem vindo a mostrar que o humor inteligente existe e o Teatro Lethes tem-no recebido amiúde. Produções como As Andorinhas Ingénuas, de Roland Dubillard As Desventuras de Isabella, o Santo Jogral Francisco, ou Arlequim Servidor de Dois Amos, de Goldoni, sempre com encenações de Filipe Crawford, apresentadas no emblemático teatro de Faro, mostram bem que o binómio divertida e inteligente é possível.
No passado dia 8 de Novembro Filipe Crawford e Rui Paulo apresentaram o espectáculo Monstros Sagrados, baseado nas obras de Roland Dubillard Les Diaboliques e Les Nouveaux Diablogues. É nestas obras, retiradas de sketchs escritos para teatro radiofónico e para café-teatro que o autor cria personagens como o Um e o Dois. Estas personagens vão dialogando ao longo de oito pequenas histórias com diálogos acerca de cenas do dia-a-dia mas que relatam situações absurdas, que todos nós, de quando em vez, vamos vivendo.
Vestidos com um fato escuro de executivo, apresentam pormenores divergentes da sobriedade dominante, como as gravatas, as meias e os suspensórios, todos adereços de cor vermelhos. O desequilíbrio, o pequeno pormenor absurdo no meio de uma vida regrada. Munidos de uma verdadeira cumplicidade cénica Filipe Crawford e Rui Paulo divertem porque retratam os absurdos inerentes ao nosso tempo, como os mitos urbanos. A primeira história, o Papa-Roscas, é o paradigma das crenças contadas pelas avós e que permanecem no nosso imaginário até à idade adulta. O Velho do Saco, o Papão, o Pai do Céu a ralhar com os homens nas noites de tempestade, são exemplos do que o Papa-Roscas representa. Nessa primeira cena o Um e o Dois vão às escuras ao último patamar do prédio para descobrirem o Papa-Roscas. O pássaro mítico de que a avó do Um falava quando lhe contava histórias. Nunca o encontrou mas todos os dias permanece na sua busca, regimentando companheiros para tão inusitada aventura. Conta a história do avô, que viu um papa-rosquinhas no seu berçário, ou seja, no frigorífico, e relata o canto de despedida que esse ser mítico profere antes de morrer. Divertido e poético o Papa-Roscas devolve-nos às memórias do aconchego das histórias da infância e do sonho. A mudança de cena, protagonizada por Guilherme Noronha faz-se iluminada por um desenho projectado no ciclorama identificando a próxima história. Guilherme Noronha assume-se como um “homem sombra”, funcionando como aquele que está lá mas que apenas se adivinha a presença. A segunda história, o suicídio, fala do Jorge, o amigo com o qual nunca se pode contar. Nem um suicídio conseguiu fazer de forma decente, pois falhou a sua intenção. E um amigo não pode destruir assim a confiança dos seus comparças! Esta história, ao contrário dos amigos se congratularem pelo seu companheiro ainda estar vivo, mostra de forma absurda o desencanto que ambos tiveram ao saberem da tentativa falhada do amigo. A mudança de cena foi feita também com ligeireza, mostrando um Guilherme Noronha solto. A dançar enquanto mudava os cubos pretos, a cenografia de base do espectáculo. A noção inadequada do palco do teatro Lethes poderia ter tido um desfecho grave, mas Guilherme Noronha deu a volta por cima à inusitada queda.
A terceira história, apesar de engraçada e absurda retirou o sorriso a alguns espectadores. Talvez não hajam temas tabu na comédia. Mas quando a memória de cerca de 30 anos ainda permanece viva é talvez doloroso estar a assistir a uma história cómica sobre alguém que está a ser torturado. Pode ser por causa de uma esferográfica, pode ser com um ralador de queijo, mas continua a ser um quadro arrepiante de tortura a que o autor não soube dar a volta de modo a ficar suficientemente absurdo para nos rirmos dele. Por isso foi um alívio quando esse quadro acabou e os actores se encontram perdidos no mar. Os três actores simulando dois passageiros num barco formam uma composição forte que suporta imageticamente a comédia do texto. Os outros textos têm como referência o mar e no final do espectáculo os actores apresentam a sua Vitória. A vitória sobre o vício de fumador, sobre a qual se fala entusiasticamente enquanto se fuma um cigarro. Essa é mais uma metáfora dos tempos que correm, uma vez que as personagens da vida ostentam discursivamente as suas pequenas vitórias enquanto a sua prática as esmaga, mostrando exactamente o contrário.
O espectáculo antecipa o final com um falso final, no qual Guilherme Noronha sai da sombra e percorre os quadros nos quais ele era o amigo com o qual nunca se podia contar. Um pouco precipitado e extemporâneo, este final quebrou o ritmo que o espectáculo teve naturalmente, suportado pela cumplicidade desses dois grandes actores que são Filipe Crawford e Rui Paulo, pela música de Quim Tó, pelas ilustrações de Filipe Abranches, pelo desenho de luz de Nuno Gomes e pela assistência de encenação de Guilherme Noronha. Mas, independentemente das opções mais sombrias, o que estes actores ofereceram ao público de Faro foram as delícias de um humor inteligente servido no talento de dois actores.

Thursday, November 1, 2007

O poder da flor


O serviço educativo do Palácio da Galeria de Tavira propôs ao grupo teatro Al-MaSRAH a concepção de um espectáculo que reflectisse a preocupação que deve nascer nos algarvios sobre o perigo da extinção da Tuberaria Major. Essa flor, originária do Algarve, é única no mundo. Desabrocha com os primeiros raios de sol e dura entre seis a oito horas. Espécie que atinge aproximadamente 40 cm, com toiça lenhosa, ramificada. As folhas são contraídas em pecíolo, porém as nervuras não são anastemosadas. As brácteas são largamente ovadas, obtusas. As flores, amarelas com máculas escuras na base, têm de 30 a 50 mm de diâmetro. É um endemismo lusitânico, que ocorre pontualmente no sotavento algarvio, nas clareiras de matos xerofílicos, em pinhais abertos.
Os actores Pedro Ramos, Susana Nunes, Nuno Faísca e Rita Alves brindaram o público que acorreu ao Palácio da Galeria, em Tavira, com um espectáculo diferente. Orgânico, assente na emoção, os quatro actores convidaram o público a fazer um percurso pelas salas do Palácio da Galeria, mostrando exposição de Roberto Santandreu que prende numa imagem eterna a efemeridade da pequena flor.
Há um percurso de emoções, começando com a euforia e a vivacidade típica da infância. Os actores assumem uma postura de criança traquina que nos convida para partilhar das suas brincadeiras. Vestidos com tons de amarelo, como as pétalas da flor, os actores convidam-nos a brincar com o desabrochar da flor. O público segue os actores e vai ter a uma sala onde se ouve o poema de Almada Negreiros sobre a flor desenhada por uma criança. As brincadeiras e a inocência das crianças estão patentes nas acções dos actores. E nós acreditamos que é mesmo com aquelas linhas, com aquelas brincadeiras, que Deus desenhou uma flor.
Na passagem para a sala seguinte seguimos os actores, que nos mostram uma actriz debaixo de um lençol. Como num casulo, a actriz vai-se desocultando, mostrando-se sensual e bela, como a Tuberaria aos primeiros raios da manhã. A sala seguinte mostra-nos o desabrochar da juventude com os quatro actores a ocuparem o espaço de uma maneira aparentemente caótica, de quem quer viver ao máximo o pouco tempo que lhe resta. Os actores correm, saltam, escondem-se debaixo dos bancos, atrás do público, como se estivessem em permanente delírio. O delírio segue para outra sala, onde vemos o simbolismo da flor em todo o seu esplendor. Uma faixa de cetim amarelo que se ergue do chão até ao tecto e que mostra ao espectador a exuberância da flor. E voltamos à sala onde a actriz-flor se nos revela em toda a sua sensualidade e beleza. O auge da floração. Essa exuberância passa para outra sala, onde se pode ler “Tudo é efémero”. Aí assiste-se ao desregramento total, contaminado pelo frémito dionisíaco. O público dispõe-se à volta de uma mesa, repleta de copos, nos quais os actores servem champanhe e convidam o público a partilhar da euforia. A música tem uma forte batida e as luzes são psicadélicas. O strauber fragmenta as imagens dos corpos em delírio e o público partilha a dança com os actores. A dança termina e o público regressa à sala onde a actriz desabrochou de dentro do lençol. Vemo-la a voltar para o casulo, mostrando o fim de um ciclo que se anunciou breve. Efémero. Será? De regresso à sala onde se entra em contacto com a palavra, ouvimos a voz dizer que a flor só é bela porque é efémera, como a estação do ano, anunciando um novo ciclo. Os actores convidam então o público a segui-los, presenciando a sua dificuldade de locomoção. No final despedem-se oferecendo ao público o programa do espectáculo amarelo, dobrado fazendo lembrar uma flor, e sementes, para não deixar morrer o sonho.
As sementes são o potencial que se pode actualizar, se o Homem quiser. O público saiu com dezenas de Tuberaria Major em potência no bolso. Resta agora à sua consciência e à sua vontade a capacidade para transformar a potência em acto, modificando as consciências de forma a evitar a sua extinção.
Um espectáculo que contém, também ele, a essência da flor, porque é efémero. E, tal como a flor, tal como as paixões, só é belo porque é efémero. E, paradoxalmente, é isso que o torna eterno.

Stabat Mater - Uma dolorosa beleza




Stabat Mater ("Estava a mãe") corresponde às duas primeiras palavras do hino Mariano, a partir de um poema medieval, que descreve a angústia da Virgem Maria durante a crucificação. Um hino litúrgico que celebra as dores da Mãe de Cristo no calvário quando este sofria o processo de morte.
Este acto de contemplação do sofrimento de Maria inspirou António Tarantino, artista e escritor italiano, escreveu uma Stabat Mater, encenada por Jorge Silva Melo. A relação do hino mariano com a contemporaneidade assenta na contemplação do sofrimento e das mortes alheias, seja nas ruas seja nos pardieiros, seja nas prisões. Esta Mãe Dolorosa é a história de Maria, ex-prostituta, vivendo de expedientes, mãe solteira, plena de uma raiva explosiva contra a sociedade, à procura do filho desaparecido. O texto é um longo monólogo, onde a partir da linguagem de rua dos bairros sociais, destaca-se a hipocrisia, as linhas cruzadas da vida, as entranhas de uma dor que não salva, e da história que apenas se mostra circular, sem evoluir para uma espiral que aprende a contornar os erros do passado. STABAT MATER é a primeira peça de uma tetralogia de António Tarantino, do qual fazem também parte Paixão Segundo João, Vésperas da Virgem Santíssima e Brilharetes, que lhe valeu o mais alto e prestigioso reconhecimento dramatúrgico para a escrita teatral italiana - Prémio Riccione. Foi revelado em Portugal em 2004 com a leitura encenada de A Casa de Ramallah e, em 2005, com a estreia de Paixão Segundo João. Neste texto descobrimos vários cruzamentos, tanto da esfera privada como do plano da política nacional e internacional. Para além de ser uma crítica à hipocrisia social que fecha os olhos à prostituição e envia para o convento meninas abusadas pelos pais, põe o dedo na ferida das instituições que consideram uma bênção para os pobres e os despojados as pensões de sobrevivência e o apoio que um estado de direito tem obrigação de dar aos que mais precisam. Aponta o dedo, com a crueldade imposta, aos serviços sociais que olham com desprezo os indivíduos que apoiam. É muito significativa a imagem do ambientador que se espalha no ar após a visita de um desses enteados da vida. Para que não permaneça a memória da miséria nas consciências confortáveis dos serviços sociais.
Maria sobreviveu sozinha sacrificando-se por um filho que tinha o pior dos males para um pobre: a inteligência. Porque quem é inteligente aspira a uma vida melhor, tanto para si, como para os outros. Quem é inteligente não olha se resigna com a miséria moral que descobre em seu redor. Quem é inteligente torna-se politicamente activo, mesmo que esse acto lhe possa trazer a prisão e a morte. Maria, sem saber, contribuiu para a crucificação do seu filho, porque lhe deu uma educação que lhe permitiu esclarecer-se e pensar que podia lutar por um mundo melhor. Deu-lhe a ideia de liberdade, pela qual se deixou “crucificar” para salvar a humanidade.
Maria sentia-se limpa. Mais limpa do que a mulher do homem que se servia dela e a engravidou. Mais limpa que toda a fauna que vagueava pelas ruas, ao seu redor. Sentia-se limpa porque tudo aquilo que fez, fê-lo com um propósito nobre: criar o seu filho e afastá-lo, tanto quanto possível dos caminhos mais perigosos e vulneráveis, como a homossexualidade, a prostituição, a pederastia, o roubo, a marginalidade. Não foi capaz de o afastar da poesia nem da capacidade de sonhar, perigos bem reais que poder levar um ser humano à perdição.
A encenação de Jorge Silva Melo assentou na figura da actriz. Através da sua encenação Maria João Luís soube transmitir alguma dignidade dentro da miséria moral inquietante em que a sua personagem esbraceja. A sua interpretação foi dolorosamente bela, como a composição do poema mariano. A cenografia, depurada, limita-se a quatro bancos corridos com genuflexório, uns caixotes com roupa e um painel rectangular de cor vermelha que domina a cena. O vermelho, arquétipo do sangue, do sofrimento, do erotismo, encontra reflexo no discurso de Maria: despudorado, repetitivo, mas apaixonado e expressivo. O palavrão faz parte do seu ser rude, assim como a capacidade de implorar pela salvação do seu filho faz parte do seu ser abnegado. O banco da igreja metamorfoseia-se num banco de rua ou num banco de tribunal. O banco corrido, colectivo, institucional, onde Maria passa horas à espera: das preces, dos subsídios, da justiça, do pai do seu filho. A dolorosa mãe, no banco do calvário da justiça, chorando antecipadamente as lágrimas pelo seu filho desaparecido. António Tarantino também nos convida a fazer uma reflexão acerca do flagelo do aborto clandestino, que Maria se recusou a fazer. Recusando-se a dar-lhe a paternidade ao filho, o homem que a engravidou olha com condescendência e uma ligeireza perturbadora a intervenção feita com agulhas de croché, a custos divididos, que o libertaria de qualquer responsabilidade.
Maria João Luís vai passando todos esses contrastes, todas aquelas confusões de sentimentos através do poder da sua interpretação. Com um poder de transfiguração em palco notável, a actriz faz com que qualquer espectador se apiede da sua história, no sentido do estar-com, num sentido do ser-com-o-outro verdadeiramente heideggeriano. E esse sentido existe porque nos revemos na sua história extremamente humana de despojamento e entrega. Como Jorge Silva Melo disse em declarações à imprensa nacional: "Não havia outra actriz em Portugal para fazer isto. É um texto brutal, obsceno, sobre uma mulher que insulta o Mundo inteiro, mas que, afinal, traduz uma enorme procura de amor. É uma forma de dizer 'eu existo, olhem para mim’ é uma peça para ver com compaixão". E nós acrescentamos, através do poema que inspirou esta obra: “Faz, ó Mãe, fonte de amor! / Que eu sinta o espinho da dor, / Para contigo chorar.