Monday, September 24, 2007

Terpsicore desceu a Faro






O Teatro das Figuras vestiu-se de gala para receber mais uma festa da dança. Terpsícore foi a musa que deu o nome ao espectáculo de dia 23 de Setembro, assinalando o terceiro aniversário da Companhia de Dança do Algarve.
Se na gíria do teatro se costuma dizer que “desceu o santo” quando um actor desempenhou excepcionalmente bem a sua função, neste caso podemos dizer que a musa desceu sobre os bailarinos que dançaram no Teatro das Figuras. A Companhia de Dança do Algarve convidou mais quatro Companhias de Dança para se juntarem a esta festa: a Companhia Nacional de Bailado, a Hamburg Ballett, a Royal Swedish Ballet e o Teatro-Ópera de Saratov.
Dentro da chamada “dança para a família” o público pôde assistir a um programa extenso e eclético, onde se conseguiu entrar no mesmo espírito, dançando na diferença.
Assinalou-se uma evolução considerável nos bailarinos da Companhia de Dança do Algarve que aos poucos vai perdendo a característica de escola de dança que lhe é inerente, emancipando-se, conquistando um nível semelhante ao das grandes companhias de dança da Europa. A par da frescura e da alegria mostrada pelos bailarinos da Companhia de Dança do Algarve foi estimulante assistir a números de outras companhias, cujos bailarinos já atingiram um grau de maturidade considerável. Assinalamos o Adagio do bailado Romeu e Julieta pelos bailarinos Natalia Kolosova e Danil Kurenov do Teatro-ópera de Saratov, cuja delicadeza e expressão consegue libertar o espírito e viajar para o sentido da obra emblemática de Shakespeare. Ou a prestação de Barbora Hruskova e Carlos Labiós, da Companhia Nacional de Bailado, com o Pas de Deux do bailado O Lago dos Cisnes. Ter acesso aos clássicos revisitados é sempre um ponto de partido que predispõe o espírito para a libertação da contemporaneidade. Essa libertação começou com Alexandre Fernandes, da Companhia Nacional de Bailado, que ao dançar o tema Changes in the end, de Muse, provocou desde logo uma cisão entre o clássico e o contemporânea, admitindo para a sua coreografia elementos acrobáticos e passos da “capoeira” com a marcação e a postura clássica da dança.
Numa linha mais pós-moderna tivemos a prestação da Comapnha Hamburgo Ballett, com os bailarinos Heather Jurgensen e Yaroslav Ivanenko. Uma das mais surpreendentes e sentidas prestações da noite. Ao som de Gurdjieff, a coreografia Invisible Grace, deYaroslav Ivanenko elevou-se na noite, penetrando de rompante nos espíritos desprevenidos dos espectadores.
Também do Hamburg Ballett, a coreografia Ne m’oublie pas, de Yaroslav Ivanenko dançada por Heather Jurgensen e Yaroslav Ivanenko, com música de Yann Tiersen, mostrou de forma sentida uma relação de proximidade e afastamento entre duas pessoas apaixonadas. O sentimento posto no corpo, na delicadeza do gesto, na expressão do rosto, mostravam uma coreografia de bailarinos que são também actores que representam e transmitem emoções.
Mas o ponto alto da noite foi a prestação de Marie Lindqvist e Dragos Mihalcea, da Royal Swedish Ballet, que dançaram uma coreografia de Krystof Pastor ao com das Variações de Goldber de J. S. Bach. A fusão dos corpos com a música conseguiu emocionar de uma forma que toca o sublime. Esse sentimento comum que assalta qualquer pessoa, mesmo que não seja um espectador entendido na área da dança.
O espectáculo terminou em apoteose com os bailarinos da Companhia de Dança do Algarve dançando a coreografia de Natalia Abramova Jota, com música de Minkus.
Foi uma festa bonita que ultrapassou o mero entretenimento pois apesar de ser um espectáculo constituído por fragmentos, a dança conseguiu entrar de rompante na emoção dos espectadores. Terpsícore desceu à cidade e juntou-se à festa da Companhia de Dança do Algarve.

Thursday, September 20, 2007

Hamlet Light ou o desejo de teatro

E se em vez de mostrar um texto clássico, revisitado ao longo dos séculos de mil e uma maneiras, incutíssemos no espectador o desejo de ir ao teatro? Como fazer surgir esse desejo numa sociedade na qual as pessoas em dez saídas escolhem nove delas para ir ao cinema?
Talvez tenham sido estas questões pertinentes que despoletaram a ideia deste espectáculo que foi um dos vencedores do concurso Jovens Artistas Jovens. Este concurso decorreu durante o ano de 2006, com o envolvimento de várias estruturas a nível nacional. Este projecto teve como objectivo conhecer a situação dos jovens criadores no território nacional, permitindo que os 3 trabalhos seleccionados pudessem ter o apoio das estruturas envolvidas no sentido de poderem produzir, e apresentar os respectivos espectáculos ao público.
Todo este espectáculo partiu de uma questão: “Não será preciso esquecer o teatro para gostar dele?” E é a partir desta dialéctica ontológica que se constrói o interesse deste projecto. É preciso um distanciamento, um quase esquecimento para começar a surgir em nós a necessidade, o desejo de teatro.
O projecto de Vvoitek Ziemilski, e de toda uma equipa de 14 pessoas, envolve meios áudio, vídeo e de criação multimédia que se juntam a este repto difícil de criar no espectador o desejo de teatro.
No espectáculo Vvoitek Ziemilski reclama para si o papel de narrador: por um lado vai explicando os passos que são precisos dar para se construir o filme publicitário deste espectáculo de teatro. Por outro, vai dando conta ao espectador da cena que está a ser trabalhada. Hamlet é uma peça escrita há seis séculos, que pressupõe um conhecimento da sua estrutura por parte do espectador. As cenas filmadas não são sequenciais, dando ao espectador a oportunidade de reconstruir o puzzle na sua cabeça. Os actores apresentam-se frente a uma pantalha luminosa, de cor cinzenta, completamente neutra, ao fundo do palco. Dizem como se chamam e que papéis irão desempenhar. A seguir deixam filmar os seus olhares em close-up. Na boca de cena encontra-se um écran que vai informando o espectador da montagem em tempo real do filme publicitário sobre o espectáculo. De repente, quando a acção se começa a centrar em Laertes, o espectador começa a ver a pantalha do fundo a mudar de cores e de textura. Esse é o resultado da criação em tempo real de composições que estão a ser construídas numa mesa de montagem de efeitos por Verónica Conte. Aos poucos, cena a cena, vai aparecendo no écran a cenografia adequada a cada emoção. A cenografia torna-se um elemento não de criação antecipada mas concebida no momento da representação. Na pantalha vê-se fruta a cair, fios enleados que se vão desembaraçando, linhas e números que mostram a construção de uma intriga, platas verdes, pó preto, um copo detentor de um líquido ao qual se juntou um pó estranho. Estas e muitas outras imagens vão ajudando o espectador a criar a ambiência adequada a cada fragmento da peça de Shakespeare. E como é de fragmentos que se trata, a composição estética é fundamental para a reconstrução do todo emocional. Ofélia chega junto de Hamlet para lhe devolver as cartas que este lhe havia escrito. Cartas nas quais lhe prometia amor eterno. Ofélia devolve-lhe um punhado de varas de madeira que caem no chão ruidosamente. Que melhor adereço serviria para mostrar o coração partido de uma rapariga apaixonada e o desinteresse frio e duro de um homem que tem o cérebro atribulado por uma miríade de problemas? As varas de madeiras são o símbolo perfeito para mostrarem a junção de um amor ferido e o desejo de vingança. O contorno de Ofélia é marcado no chão, com a marca do morto. A imagem do contorno fica, sem o corpo, mostrando que a nossa memória é curta e que nos esquecemos depressa dos nossos mortos.
As cenas do quarto da rainha, da relação ainda erótica entre Ofélia e Hamlet, são de uma beleza inquietante, fazendo exaltar a sensualidade de uma forma limpa e perturbante.
Todos os fragmentos foram criados com cuidado e encontram-se plenos de símbolos. A música, a cenografia, os adereços, os ângulos com que são filmados contribuem para que cada cena de per si se torne completa.
No final o resultado é surpreendente. Depois de uma pausa de dez minutos o público pôde assistir a dois filmes publicitários, realizados e montados à sua frente: um de cariz mais clássico e outro que rompe os cânones mais convencionais. Depois de ter assistido a todo o processo de criação o público é brindado com dois trailers que podem suscitar no espectador menos atento o desejo de teatro. E se em cada dez saídas, aumentar o número de uma para duas saídas com o objectivo de ir ao teatro, só por isso valeu a pena.

Monday, September 3, 2007

Dançando com a luz


A abrir Setembro, o Teatro das Figuras recebeu o Quórum Ballet. Este grupo veio apresentar o espectáculo Relações. Um mesmo conceito para duas visões coreográficas distintas.

O espectáculo Relações desenrolou-se partir do conceito que lhe dá o nome. A partir desse conceito dois coreógrafos desenharam duas coreografias distintas mas igualmente notáveis. A visão inicial marca seis corpos junto ao solo, afastados uns dos outros, dando a sensação de nudez. Eram accionados pela luz e pela música. Primeiro, como se de um nascimento se tratasse, há um sentimento de dor no agir. Depois o agir começa a ser mais fluido e passa a ser possível a interacção. Primeiro a pares, depois em grupos. Os corpos reconhecem-se e interagem de forma natural, como se todos os elementos pertencessem ao mesmo corpo. A queda das roupas e subsequente veste por parte dos bailarinos marca de alguma forma o fim da inocência e o início da formação de barreiras entre os indivíduos. Os outros fogem e há um ser que fica sozinho. Primeiro dança mas depois tem de lutar com bolas gigantes: escudos invisíveis das mascares sociais. E essas armas sociais prolongam-se para além do primeiro bailarino. Por detrás do pano, para onde os outros conseguiram fugir, os escudos sociais não deixam de actuar. Primeiro a bailarina usa-as confortavelmente mas depois as bolas gigantes viram-se contra ela, obrigando-a a movimentos esquivos, como quem se furta a uma agressão. Quando o pano é levantado os bailarinos arremessam as bolas para o público, libertando-se do peso desses grilhões que os impediam de voltar à pureza inicial.
Esta primeira coreografia de Iolanda Rodrigues foi interpretada de forma magistral por Daniel Cardoso, Elson Ferreira, Felipi Narciso, Mónica Gomes e Theresa Da Silva C. Envolvente e bela, o espectáculo não deixou os espectadores indiferentes. Para isso também contribuiu o suporte musical constituído por Aaron Funk, Susumo Yokota e Yann Tiersen. Mas o desenho de luz concebido por Carlos Arroja, que construiu com a sua iluminação um sétimo ser dançante, foi deveras surpreendente, dando ainda mais dinamismo ao espectáculo.
A segunda coreografia, concebida por Daniel Cardoso, teve também um impacto visual muito forte. A luz, de Carlos Arroja, rasgava as cortinas que delimitavam o espaço da dança. Seguindo-se à luz, os corpos dos bailarinos invadiram a cena pelas frestas de luz. A cena agora sentiu-se invadida por cor e por tintas que os bailarinos iam impregnando nas cortinas. Cada um tinha o seu ritmo, que se consubstanciava numa forma específica na tinta que ia depositando no cenário, munidos de pincéis. Círculos, traços, pontos riscos, iam aos poucos construindo uma pintura que se poderia aproximar da primeira fase do abstraccionismo de Kandinski. A cor da tela passa para o branco imaculado e puro dos figurinos dos bailarinos, concebido por Manuela Tinoco. Também nesta visão de Daniel Cardoso a tábua rasa do nascimento vai enriquecendo de sensações e dando lugar a um corpo mestiço de cor, que se mistura com outros corpos, desce à plateia, dança entre o público e regressa ao lugar de origem.
Neste trabalho as luzes também jogam um jogo intenso de relações com os actores. Aproximam-se, afastam-se, acendem, apagam, tornam-se autónomas e não simplesmente suportes artísticos. Os corpos dos bailarinos expressam-se com intensidade ao som das músicas de Kronos Quartet, Balanesco Quartet e Kodo. Todo o corpo era um manancial de energia, desde os dedos dos pés até às expressões faciais e à língua. Esta coreografia, dançada por Elson Ferreira, Felipi Narciso, Mónica Gomes e Theresa Da Silva C. reforçou o nível superior de técnica de que estes bailarinos são portadores. Um trabalho completo em que ao corpo se alia a luz, dançando as emoções das relações humanas.