Tuesday, August 28, 2007

Subamos as escadas




A Companhia de Dança Qualibó completou está a realizar uma residência artística no Centro de Artes Performativas do Algarve (CAPa). Desse processo resultou um trabalho que foi apresentado à comunidade e que irá ser agendado no próximo Festival de Dança Contemporânea Visioni di (p)Arte, a realizar no próximo mês de Outubro, em Itália.
Sabíamos que íamos assistir a um ensaio aberto. Contudo, mesmo nos ensaios abertos existe uma tensão intraduzível que só existe nos espectáculos. O espectáculo que a Companhia de Dança contemporânea Qualibó partilhou no dia 24 de Agosto no CAPa tinha como tema central a competição entre os seres humanos, utilizando como metáfora a imagem da escada.
O espectáculo Primo Sale, encenado por Lisa Masellis, começa com uma imagem de contraste. Quatro escadotes delimitam o espaço cénico. Há bailarinos que se encontram no cimo dos escadotes, outros no solo, evidenciando a diferença ao nível simbólico. A música de Adolfo La Volpe é intensa, obrigando os corpos a agir, não havendo, no entanto, uma inter acção entre os cinco bailarinos: Francesca Giglio, Giuseppe Lacerenza, Nico Masciullo, Maristella Tanzi e Marlene Vilhena. A imagem que se oferece ao público é a do egocentrismo e do culto da imagem. A rapariga que quer continuar a viver nos seus sonhos, os homens que passam uns pelos outros e nem se olham, a mulher que compra o vertido de lantejoulas e se sente contente consigo mesma, são personagens que jogam o jogo social o melhor que sabem: dissimulando, insinuando, expondo-se, actuando. Os bailarinos são portadores de uma boa técnica, que mostram com uma energia exemplar.
As escadas assumem-se como matriz simbólica da competição social. Os dançarinos sobem escadas, descem escadas, expulsam o outro e assumem o seu lugar. As escadas delimitam um campo de batalha dentro do qual os homens lutam entre si. A luta é violenta e bastante real. No fim a paz é restaurada e a própria luta é assumida como uma brincadeira de crianças. A luta assume aqui o sentido figurativo de uma gestão inadequada da relação inter pessoal. As próprias são também utilizadas para construir um cenário de treino de aptidão física, lembrando os percursos militares. Os actores, simbolizando os homens e as mulheres que assumem um treino diário para vencerem na vida mostram a execução de exercícios de uma forma repetitiva, que levam o espectador a comungar do sentimento de exaustão.
Esta coreografia joga de uma forma muito bem conseguida com o conceito de espaço. Há um fragmento em que as três bailarinas sobem para os três escadotes. Sentam-se no cimo das estruturas, alinhadas, e fazem um jogo teatral muito curioso e divertido. Há um lugar que é indesejado. As bailarinas, chegando a esse lugar, fazem tudo o que podem para se libertar dele, passando-o a outra. Finda essa libertação não se preocupam mais com quem ocupou o lugar causador de sofrimento. Mas a vivência social é cruel e as três bailarinas vão ter de partilhar o mesmo espaço de um escadote. O espaço exíguo é tranformado, através dos movimentos dos corpos, dando a ilusão de que aquele espaço é maior. É, de facto, um trabalho notável ao nível coreográfico.
Há uma cena em que os quatro bailarinos conseguem libertar os seus corpos, simulando dançar numa discoteca, enquanto que a quinta bailarina se escontra enclausurada dentro da gaiola de um escadote. Esta imagem condensa o contraste entre as psisões interiores, que muitas vezes não nos permitem sair dos nossos pequenos mundos e aqueles que voluntariamente se deixam prender em ritmos e movimentos iguais, dando a si mesmos a ilusão de se libertarem. Esta foi uma imagem muito bonita, sobretudo ao nível da conjugação dos corpos dos quatro bailarinos que iam progredindo através de movimentos fluidos. Esses movimentos contrastam com a jovem enclausurada na sua prisão interior, assim como o contraste se pode sentir através da luz. Num outro fragmento coreográfico há um jovem que se transforma em velho e que mostra, de forma muito limpa e credível, essa personagem presa na sua própria velhice. Através da escada conseguimos sentir a solidão de um homem, mesmo que aparentemente estaja rodeado de outros homens, jogando às cartas.
As escadas servem de barreira, separando os bailarinos do público. Construída essa barreira artificial o público consegue ultrapassá-la através da música, construída a partir das respirações ofegantes dos bailarinos. Conseguimos acompanhá-los e respirar com eles, o que também mostra que as barreiras interiores são muito mais profundas e fortes que as barreiras exteriores pois estas são, muitas vezes, ilusões.
Primo Sale é um trabalho assente num conceito claro e construído com rigor. O fragmento no qual assenta a visão coreográfica não destroi a ideia matricial que marca a leitura dramatúrgica, assente na competição e no jogo de cintura que muitas vezes se tem de fazer para ascender socialmente. Ou, simplesmente, quebrar as nossas próprias barreiras para conseguir viver de uma forma mais saudável.
A Companhia de Dança Contemporânea Qualibò trabalha desde 1991, tendo sido o seu primeiro trabalho a coreografia Città come spettacolo. Contudo, só em 2002 a Companhia é oficializada. Desde 2006 organiza o festival de Dança Contemporânea Visioni di (p)Arte, em Bari, Itália, que este ano se realizará entre quatro e sete de Outubro. Nesse festival o grupo envolve as escolas e tenta estimular o aparecimento, não só de jovens bailarinos, mas sobretudo de jovens coreógrafos.
Por sua vez, o grupo Qualibò assume-se como um colectivo “contaminado” por profissionais oriundos de várias áreas da dança. Na sua estrutura encontram-se bailarinos com raízes no teatrodança, new dance, improvisação, artes marciais, assumindo que a diversidade contribui para o enriquecimento de um trabalho. O que, avaliar por este trabalho, é uma visão não só válida como exemplar.

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