Thursday, August 16, 2007

Quanto da alma humana caberá na espessura do papel?


“Quanto da alma humana caberá na espessura de um papel?” Esta é uma questão provocadora que encontramos no completíssimo programa referente à produção Anfitrião, do Teatro de Formas Animadas. As meninas já sabiam interiormente que as bonecas de papel que vestiam com os fatinhos de prender nos ombros escondiam uma alma que só elas conheciam. Mas o espectador que se proponha responder a esta questão tem de deparar com a casa onde as figurinhas de papel desenvolvem o seu trabalho. Em Faro foi no Clube Farense, casa por excelência privilegiada para apresentar este trabalho. No salão nobre do dito clube o espectador depara com uma espécie de relicário que guarda os restos sagrados das emoções provocadas por criaturas de papel e que, em momentos especiais ganham vida. O relicário abre-se e mostra a jóia nele incrustada: O Teatro Nacional de S. João numa miniatura à escala em papel. A sessão começa e assistimos a uma representação da versão do texto o Anfitreão, de António José da Silva, o Judeu. Os actores deslizavam literalmente na cena a partir das pernas e jogavam uns com os outros, inclusive criando um efeito de volt-face notável. As criaturas de papel, da autoria de Luís da Silva, exprimem o traço da sua personalidade através da postura, da cor, da velocidade da deslocação em cena. Marcando a tradição do teatro de papel, as personagens reproduzem-se nas suas homólogas perspectivas consoante sobem ou descem a cena do teatro à italiana. Marcelo Lafontana, Vítor Madureira e Andreia Gomes são os três actores que emprestam a alma aos bonecos de papel, multiplicam-se em vozes e personagens, criando por vezes um efeito notável de multidão. Ao desempenho da personagem em cena junta-se um sem número de sons que ajudam a caracterizar os seus traços mais marcantes. Nesta sonoplastia complexa pode-se adivinhar uma intromissão do teatro radiofónico e dos desenhos animados que acompanharam a nossa infância. Há um ritmo alucinante que é acompanhado pelos sons, pelas luzes e pelas vozes das personagens dotadas de alma, naquele momento mágico.
Esta forma de homenagear os trezentos anos do nascimento de António José da Silva decerto envaideceria o próprio “Judeu”, ao ver-se encenado para o grande teatro Nacional de S. João, longe dos odores dos autos de fé que o perseguiam na época. A adaptação dramatúrgica, especialmente concebida para este tipo de personagens, teve algumas falas que, aproveitando os regionalismos do Norte e o facto das figurinhas serem de papel, soltaram o riso na plateia. Não fora o calor insuportável do salão nobre do Clube Farense ter-se feito sentir de uma forma torturante e as cerca de 95 minutos do espectáculo teriam sido bem mais agradáveis. No entanto, dada a densidade da trama, feita de enganos e desenganos, de adultérios traições e vinganças, de deuses que se transformam em homens e homens que perdoam as ofensas dos deuses, talvez o tempo de apresentação deste espectáculo exceda o razoável. A mensagem do semi deus que é concebido numa mulher com o destino grandioso de salvar a humanidade pode passar da mesma forma jocosa, irónica e subtil cortando uns bons minutos de texto. De qualquer forma foi um espectáculo que impressionou positivamente o público de Faro, desocultando a curiosidade no que diz respeito a este tipo de espectáculo.
Não podemos deixar de apreciar vivamente a qualidade dos cadernos de apoio ao espectáculo, onde se concorre para uma verdadeira educação dos públicos. Oxalá todas as companhias tivessem meios para construir estes materiais estruturantes e edificantes desta arte maior.

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