Thursday, August 16, 2007

O sexo dos anjos


Os heróis criados por Choderlos de Laclos, no seu romance epistolar Ligações Perigosas foram mais uma vez redescobertos para o palco. Quem diria que o drama de duas personagens amorais iria ser tão profícua em reescritas futuras? Só em versões para cinema, foram feitas cerca de uma dúzia.
O espectáculo Quarteto, apresentado no Centro de Artes Performativas de Faro, com dramaturgia e concepção de Cláudia Jardim e José Gonçalo Pais apresenta uma fragmentação dos actores nas personagens de Isabelle de Merteuil, Sébastien de Valmont, Madame Marie de Tourvel e Cécile de Volanges. O que Choderlos de Laclos talvez não previsse, foi a intemporalidade que o seu romance atravessou, conseguindo Isabelle de Merteuil ser interpretado tanto por Glenn Close, como por Annette Bening ou por Catherine Deneuve. A constante repescagem deste texto, que ainda por cima tem uma forma epistolar, aponta-nos para uma transversalidade das personagens amorais e maquiavélicas através dos tempos. Esta é a história de traições promovidas por dois nobres desprezíveis, cujo maior prazer sexual é urdir contra seus amantes. Movidos pela inveja ou por ressentimentos, o pérfido casal invade a intimidade, satisfaz os desejos e descobre os segredos das suas vítimas, para conquistá-los, iludi-los e então os dispensar, magoando os seus amantes profundamente e fazendo-os sofrer por causa da sua própria ingenuidade.
Disso tudo, algumas questões podem ser levantadas: o tratamento dispensado pelos protagonistas às vítimas do seu apetite voraz seria pura maldade ou o reflexo da antecipação de uma crise? Com tantos enredos não se pode cair na tentação da análise que coloca o maniqueísmo como essência de todos os sentimentos implícitos e explícitos no texto, que mostram a fraqueza da personalidade humana. Sentimentos muito mais impenetráveis escondem-se atrás da maldade e do calculismo aparentemente irracionais das personagens.
Embora se passe na França do século XVIII, a trama é atemporal. A sensualidade e a dificuldade de amar não são indefectíveis daquele período histórico, pois tais inquietações acompanharam o homem até à pós-modernidade.
No espectáculo do Teatro Praga não há referências de época. AS personagens vestem o neutro do negro e mudam de identidade à medida que vão saltando para uma outra dimensão. Quadrada, definida geometricamente pela luz, que possibilita a assunção de um outro eu. Desde Merteuil a Tourvel, Volanges até Valmont, os actores vivem estas “afinidades electivas” através de um texto cínico mas inteligente e divertido.
A mudança de cenas decorre no momento em que são coladas palavras de ordem ou conceitos na parede. Em destaque está Kant, símbolo da Aufklärung, mas também conceitos como estética, Revolução Francesa, ou ideias como “O futuro somos nós”. Ao mesmo tempo que a actriz se lança contra a parede para colar os conceitos-chave nos muros do teatro são visionadas imagens de anjinhos barrocos. Depois de cena em que Valmont consegue seduzir a sua vítima Tourvel a cena muda e as imagens passam a ser de um sexo explícito e cru. A terceira mudança de cena mostra-nos uma intrusão dos dois universos iconográficos, mostrando que não há anjos sem perversão, e vice-versa. O espectáculo termina com a mesma dignidade do início, sem ornamentos nem excessos mas com dois bons actores e uma encenação inteligente. Um texto que vale por si só para levantar as questões da crise de valores que eternamente atravessamos.
A segunda parte deste ciclo Shall we Dance III trouxe-nos Super Gorila e um actor a solo que, longe dos formatos de Stand-Up Commedy aguenta o público com uma energia contagiante. Um homem desencantado que quer arrasar tudo para que tudo comece de novo preenche o espectáculo mastigando a sua super gorila e armadilhando a sala. Felizmente que o pavio era de má qualidade e que não explodiu, porque assim pudemos assistir a mais um pouco do discurso alucinado e divertido de André e. Teodósio, acompanhado por José Maria Vieira Mendes.
Um dueto que é quarteto e um solo que é dueto, ou não seria uma produção do Teatro Praga. Uma irreverência que desta vez surpreendeu pela positiva.

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