Thursday, August 16, 2007

O prazer de rever Goldoni


Filipe Crawford voltou a Faro com mais uma produção. Depois do Santo Jogral Francisco, apresentado em 2005 no Teatro Lethes, foi agora a vez de Arlequim Servidor de Dois Amos. Uma oportunidade para rever as complexas técnicas da Commedia dell’Arte bem trabalhadas.
É sempre um prazer ver um bom espectáculo de Commedia dell’Arte, essa difícil área teatral que iluminou os palcos na Itália do séc. XVI, marcada pela improvisação, comicidade, acrobacias e emprego de personagens fixas. Foi a Commedia dell’Arte que abriu o caminho à participação das mulheres no elenco, criou um público estável fora da corte e uma linguagem própria, corporal, que transcende a palavra ou o texto poético, acessível aos menos literatos.Os profissionais da Commedia dell'Arte, sem recursos para ricas produções, tornaram-se grandes intérpretes e levaram a representação à sua expressão mais elevada. As companhias de teatro contavam no elenco entre 10 a 12 actores que desempenhavam papéis fixos, cantavam, tocavam e dançavam, dominavam a mímica e a acrobacia. O texto funcionava como roteiro indicativo do enredo, pois o que dominava a cena era a improvisação. As peças giravam em torno de desencontros amorosos, com o (in)esperado final feliz. Os personagens eram arquétipos: os apaixonados, que curiosamente dispensavam o uso da máscara, o doutor, o velho (Pantaleone), os criados (Zanis) Arlequim, Polichinelo e Colombina entre outros. Para caracterizar os tipos, os actores usavam indumentária e máscara próprias de cada personagem.
Filipe Crawford no espectáculo apresentado no Teatro Lethes, a partir do célebre texto de Carlo Goldoni Arlequim Servidor de Dois Amos, adoptou como cenografia o estrado de madeira que delimita a cena, encabeçado por três telões pintados que se vão substituindo conforme as cenas.. Os actores, com máscaras, vestem a personagem momentos antes de subirem para o estrado, marcando a diferença entre o actor e a sua personagem. E, de facto, é bonito ver um actor jovem colocar a máscara do velho Doutor e assistir à sua transfiguração. De repente fica alquebrado e com um andar trôpego. É interessante ver um actor transformar-se em músico quando sai de cena, ou o músico assumir o papel que lhe pertence. E é esta magia que o pequeno estrado assume no momento da representação para os nove os actores que deram vida à peça de Goldoni. O recorrente tema dos amores trocados, os enganos de Arlequim, querendo servir gregos e troianos, típico da Commedia dell’Arte e da escrita da época, é enriquecido pela dramaturgia que apostou nos trocadilhos surgidos com a língua portuguesa, e a contemporaneidade. Vemos esses contributos no facto de Arlequim ser um rapaz da margem Sul, mais concretamente da Trafaria, apesar de não ser trafulha, ou de Florian ser um nobre estrangeiro… do Porto.
Há um equilíbrio notável entre os actores. O elenco, que contempla dois actores estrangeiros não se ressente da diferença de quem não fala como os alfacinhas. A sua dicção é correcta, fazendo toda a justiça à nossa língua. Arlequim consegue uma interacção com o público, num registo de improviso, típico da Commedia dell’Arte.
A música ao vivo entre as cenas dá um brilho especial ao espectáculo e as acrobacias de Arlequim ajudam a intensificar o ritmo da comédia. A utilização do serrote musical deu o tom de companhia de saltimbanco adequado a um espectáculo que era construído para gente simples por actores sem recursos.
É interessante ver os actores assumidamente em dois registos diferentes no mesmo espectáculo, como é o caso da actriz que interpreta a apaixonada Clara e um Zani, modificando com uma fluidez admirável a postura, a voz, a atitude. É também digna de registo a utilização da técnica da máscara, ou não estivéssemos a falar de uma encenação do mestre Crawford.
Os figurinos foram sabiamente concebidos por Marta Carreira. Vemos a empatia de cores e sentimentos entre Clara e o seu amado através do jogo cromático de uma paleta de amarelos intensos. Vemos a empatia de Beatriz e Floriam no corte do fato masculino e a ligação entre Arlequim e Esmeraldina nos pormenores coloridos.Filipe Crawford mostra em Arlequim Servidor de Dois Amos como da simplicidade de um estrado, três cortinas sobrepostas a servirem de telões pintados, figurinos cuidados, música ao vivo e bons actores, se pode dar vida a um texto de Goldoni num espectáculo de duas horas, e sair dele com vontade de dançar.

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