Friday, August 17, 2007

O aroma boémio de Lisboa


Os Dead Combo apresentaram-se duas noites no Centro de Artes Performativas do Algarve, em Faro. Uma agradável surpresa para quem ainda não os conhecia e um reviver de deliciosas memórias para quem já privava com o seu primeiro álbum. De uma forma ou de outra, um concerto que teve o privilégio de evocar a magia da efemeridade.
Uma guitarra, um contrabaixo, muitas ambiências. Uma cartola empoeirada sobre os olhos, um fato escuro com risquinha branca, sapatinhos brancos à malandro, um ramo de rosas vermelhas. O universo cénico está criado, como se de personagens de banda desenhada se tratassem. Surge a música e os Dead Combo revelam-se em toda a sua genuinidade, como se irrompessem de um filme de Wim Wenders. Do deserto de Paris Texas às ruas povoadas de rufias no Bairro Alto este duo faz-nos sonhar com universos esquecidos que se perdem atrás de um balcão de uma nunca esquecida Tia Alce. Tó Trips e Pedro V. Gonçalves juntaram-se numa ditosa noite, provenientes de uma homenagem a Carlos Paredes. Há encontros que não são coincidências e talvez o próprio Paredes tivesse nado um empurrãozinho na boleia pedonal que ambos tomaram nas conversas um dos outro até ao mítico Bairro Alto.
A música dos Dead Combo, aclamada pela crítica especializada desde 2004, surte um efeito místico em quem a ouve. Dignamente teatral cumpre a encenação até aos mais ínfimos pormenores. Talvez só ouvindo esta sonoridade e vendo a encenação com inspiração de cartoon se entenda finalmente as letras fatalistas dos fados. Às vezes os instrumentais têm essa capacidade de fazer entender melhor outras místicas, neste caso a mística fatalista do fado vadio. Deve ser verdade porque a sonoridade dos Dead Combo faz-nos sentir orgulhosos da nossa própria mortalidade, orgulhosos da nossa insuficiência, com vontade de pecar mortalmente.
After peace swing time é um duelo que brinca com a harmonia de uma guitarra evocativa de um Westen de Sérgio Leone, como o arrepiante Once upon a time in West com o ritmo racional do contrabaixo. Tal como no filme de Leone, Este tema dos Dead Combe torna mais aguda a consciência do último suspiro. É por isso um hino à vida e à necessidade urgente de a viver com intensidade. Mas este concerto não foi apenas a apresentação das 14 faixas do novo projecto dos Dead Combo, foi também a possibilidade de refrescar a memória e recordar Pacheco, Eléctrica Cadente, Rumbero ou Rua das Chagas.
Como corvos habitantes de paisagens nocturnas, os Dead Combo pagaram-nos uma viagem a universos de boémia, ressacas e urbanidades esquecidas com o sotaque da mais profunda Lisboa. Da Rua da Rosa à Rua das Chagas palmilhamos a alma do mais sombrio destino lisboeta, acordando com uma lua na algibeira, posta lá por uma qualquer paixão furtiva de uma noite só. Um fado, vadio, com sabor a Westen spaguetti. O tema inicial do concerto que dá o nome ao álbum, Quando a alma não é pequena tem a melodia chorada do fado amparada pelo ombro amigo de um leve toque de flamengo. As paisagens sonoras que este tema origina são fortes e doem nas almas perdidas mais incautas. A magia que opera quando se sabe que acaba. Dói, mas torna-se mais intensa porque a sabemos fugaz, como as paixões. É isso que os Dead Combo provocam: Uma paixão. Como quando se olha para a roda da sai de uma rapariga e se compõe um tema. Com Esperança que a rapariga olhe e veja alguma coisa interessante para retribuir o olhar.
Dead Combo não introduzem a voz nos seus temas para deixarem as paisagens voarem mais livremente na imaginação de quem os ouve. A não ser no carismático Ai, ai que vida, a que o público aderiu naturalmente, sem ser preciso outras palavras para mostrar o seu estado de espírito. Assim como a cartola que tapa os olhos e liberta as notas da cabeça do artista fala por si, os sapatos brancos batendo revoltados um ritmo ora violento ora doce. Assim como o ramo de rosas vermelhas abandonado sobre as caixas dos instrumentos fala de paixões consumadas e de outras por viver. Um ramo de rosas vermelhas é sempre uma promessa de paixão. Promessa que os Dead Combo souberam fazer cumprir em Faro.
A foto foi gentilmente cedida pela fotógrafa Rita Carmo

1 comment:

Lucio Lampreia said...

Muito Bom! Obrigado pelo excelente texto.