Friday, August 17, 2007

Lavar a alma ao sol nascente




A X edição do Festival Internacional de Dança Contemporânea a-Sul trouxe ao Algarve as novas propostas do Japão. Em co-produção com o teatro das Figuras e as autarquias de Lagos, Lagoa, Loulé, Faro e Vila Real de Santo António, o Algarve pode regalar os olhos e confrontar-se com aquilo que de mais inovador se está a fazer do outro lado do mundo. Para os que quiserem desfrutar desta inspiração do país do Sol Nascente ainda se oferece um intenso programa a decorrer no Algarve e em Lisboa, que culminará dia 13 de Outubro no Centro de Artes Performativas do Algarve

O Japão na Mostra a-Sul
Numa época em que o Japão impõe a sua presença no mercado artístico internacional, a associação cultural No Fundo do Fundo elegeu este país como convidado para a X Edição do Festival Internacional de Dança Contemporânea a-Sul. Do cartaz faz parte um diversificado conjunto de nomes que expressam diversas linhas estéticas ao nível da dança que neste momento se estão a desenvolver no Japão. Dos quatro espectáculos de coreógrafos japoneses que se apresentaram até este momento pode-se dizer que dois surpreenderam enquanto os outros dois não mostraram uma inovação que fosse muito para além do que se faz no mundo ocidental. Talvez porque, como esclarece o crítico de dança Osamu Nakanishi, num artigo inserido no completíssimo programa desta mostra, “uma das características da dança contemporânea do Japão é o facto desta não ter nenhuma característica que a defina. Apresenta uma diversidade de estilos que assenta no aqui e no agora, todo o tipo de estilos de dança imagináveis neste ponto do mundo, coexistindo no “aqui e agora”, ou num estado de caos onde tudo pode acontecer.”


Carlo x Carlo
O primeiro espectáculo, apresentado no Centro de Artes Performativas do Algarve (CAPa), Carlo x Carlo, coreografado por Mayuko Aihara mostra-nos uma linguagem ajustada ao olhar ocidental. A mulher que, com o seu corpo torna a Terra fértil é conduzido pelo homem, do qual se afasta e ao qual regressa. Existe um trabalho que explora a relação entre o masculino e o feminino não é particularmente inovador À parte um cenário interessante, cheio de cordas entrelaçadas, que separam a cena do espectador e onde os dois dançarinos interagem como se estivessem uma caixa de música, o espectáculo não surpreende. A metáfora do “ficar pendurado” na teia de emoções e de desencontros da vida, por demais saturada, foi explorada até ao limite. O marialva fado da Mouraria, escolhido para finalizar com as canções que fazem parte do imaginário português causou alguma estupefacção porque os espectadores sentiram que em vez daquele tema, os bailarinos poderiam ter dançado ao som de qualquer outro tema, não se percebendo uma causalidade específica para a sua escolha.

Uma mesa para dois
Mizunoie, com coreografia de Kosei Sakamoto, foi um dos espectáculos que surpreendeu agradavelmente. Um homem e uma mulher partilham com o público uma linguagem corporal tendo como música de fundo o som da chuva a cair violentamente. Este trabalho de equilíbrio, perícia e bom gosto, obriga o espectador a interrogar-se sobre os limites: da dança, do corpo, da criatividade. Ao dançar sobre uma mesa quadrada com menos de um metro de lado os bailarinos exibem a duplicidade do paradoxo humano: por um lado, a vontade de cercear os limites que nos oprimem, por outro, a capacidade de mostrar que tudo é possível. Um espectáculo admirável.
Curiosamente, o outro espectáculo proposto pela companhia de Kosei Sakamoto, Refined Colors, apesar de utilizar um intenso jogo de luzes através de um novíssimo sistema de projecção de variações de cor, não foi suficientemente arrojado ou tocante. Assente na técnica improvisação-contacto, esta coreografia poderia pertencer a qualquer uma companhia que já visitou nosso país, não se destacando uma identidade própria. A relação entre os três bailarinos não surpreendeu, e a própria coreografia, à excepção do jogo com a linha vermelha, praticamente invisível da plateia, também não trouxe qualquer novidade a um público habituado a contactar com as novas tendências da dança contemporânea.

Akira Kasai – Um atleta do coração
O espectáculo mais tocante e surpreendente foi, sem dúvida alguma, Pollen Revolution com autoria e interpretação de Akira Kasai. Este coreógrafo apresentou no Teatro das figuras um solo de 70 min que prendeu o público do princípio ao fim. Um dos últimos bailarinos vivos que herdaram a técnica da dança Butoh directamente do seu criador, o bailarino Hijikata. Todo o espectáculo de Kasai nos convida a fazer cruzamentos entre essa dança japonesa e a ideia de teatro ritual de Artaud. Kasai inicia a sua coreografia envergando um tradicional kimono feminino. Uma silhueta que se desoculta numa personagem colorida, com gestos precisos, retirados das danças tradicionais japonesas. Este jogo de androgenia é bastante explorado em Artaud, para o qual o teatro tem o poder de uma destruição anárquica geradora de uma poderosa descarga de forma. O espectáculo tem de conter elementos físicos sensíveis, tais como a beleza mágica do vestuário e as aparições supreendentes. Neste sentido, as polaridades, as oposições, os contrários reúnem-se num só corpo. A força centrípeta que age no interior do corpo que dança – baralhando as polaridades – faz explodir a arte em movimento. Nesta primeira parte do espectáculo a personagem de Kasai sintetiza a um tempo o masculino e o feminino, retomando a dualidade arquetípica, no sentido de conseguir penetrar mais no eu interior e fazer sair de si o genuíno corpo sensorial, originando através dessa unidade plural a mantiké, loucura geradora, que se auto fecunda em gestos artísticos improvisados.
O gesto lento, repetido, convida a um ritual intenso, onde a sua grandeza possibilita a criação de poesia no espaço. A transgressão esperada acontece e dá-se a cisão entre o elemento feminino e o elemento masculino. A cabeleira feminina cai por terra e o kimono é despido, ficando o bailarino despojado de qualquer ornamento. O kimono, símbolo da tradição oriental é dependurado junto ao ciclorama, erguendo-se lenta majestosa. Mais uma vez aqui Artaud nos lembra: “O sol é belo no ocaso por tudo o que nos faz perder”. O kimono desaparece, deixando um foco de luz, que ilumina o bailarino. Os raios de luz dividem-se, desenhando caminhos no palco e o dançarino, detentor de uma imensa energia, oferece-se numa entrega total e improvisada. O rosto, uniformemente pintado de branco, viaja por inúmeras sensações, como se transmitisse as forças puras, geradas no inconsciente.
Nesse redemoinho de forças superiores pelo qual Kasai nos conduziu, passou por várias personagens, culminando no actor, que mesmo acidentado e a sangrar sabe que o espectáculo tem de continuar. E, tal como Artaud defende, o teatro físico, neste caso a dança, como força excepcional, provoca transes que curam. E não há feridas profundas que não se fechem perante a energia restabelecedora da dança. A coreografia de Akira Kasai encerra em si as ideias de criação, devir e caos, como se se tratasse de um exorcismo muito específico. Pode dizer-se que Akira Kasai é um atleta do coração, tendo devolvido ao público do teatro das figuras a ideia de dança sagrada. A sua máscara pura permitiu a queda das máscaras dos espectadores, comungando de uma visão clara e verdadeira.
No final, Akira Kasai agradeceu os aplausos ao som de um tema de António Variações, onde se anuncia a precaridade da vida, convidando a um Carpe Diem anárquico, constante e memorável. Transgredindo as convenções Akira Kasai tornou-nos cúmplices da criação de uma poética memorável. Fez da sua dança uma oração para a vida e permitiu que lavássemos a alma.
O próximo espectáculo desta está agendado para dia 29 de Setembro no Cine-teatro louletano. A proposta prometedora é Tabula Rasa, de Ikuya Sakurai, um coreógrafo da nova geração.

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