Friday, August 17, 2007

Dois homens, um coração


Algumas das culturas mais ancestrais e recônditas tinham uma forma sui generis de lidar com os seus velhos. O abandono era quase sempre a solução escolhida, fosse qual fosse o pretexto mais ou menos bem intencionado que estivesse por detrás. Se para os esquimós o abandono aos ursos polares fazia parte integrante do ciclo de vida, alimentando a ideia do espírito que regressa sob a forma de alimento, outras há em que o pretexto para o abandono dos velhos é simplesmente o seu direito ao descanso. A nossa sociedade ocidental, regida por valores humanistas não abandona os velhos; cria instituições onde estes podem conviver e ser acarinhados por pessoas que estão preparadas para lidar com os seus males. Mas, como de boas intenções está o inferno cheio, sabemos que a realidade é bem diferente e os valores humanistas esvaziam-se de sentido quando as instituições da terceira idade se transformam no monte do repouso documentado no belíssimo filme de Shohei Imamura A Balada de Narayama.
O texto de Lutz Hübner O Coração de um Pugilista recebeu o prémio para o melhor espectáculo juvenil em 1998. A partir da tradução de Vera San Payo de Lemos Paulo Moreira fez uma dramaturgia adequada ao universo português e deu ao espectáculo uma dimensão mais abrangente designando-o por O Coração de um Homem. A encenação de Paulo Moreira assenta no trabalho dos actores mas também na simbologia do espaço e na envolvência musical. Há uma preocupação por parte do encenador em seguir uma sequência lógica de apontamentos musicais que vão marcando a evolução das duas personagens. Ao princípio ouvimos um rap urbano, indicando a predominância da personagem mais jovem, Jojó, interpretada por João Jonas, que se vai transformando ao longo do desenvolvimento do espectáculo. No fim, não é casual o regresso aos anos 70 com o tema de Simon e Garfunkel Old Friends.
A cenografia, assinada também por Tó Quintas, dá à partida ao espectador uma dimensão muito clara do jogo dramático que vai acontecer. A cena é marcada visualmente por uma estrutura em ferro. Na boca de cena, que marca a quarta parede simbolizando uma grade de segurança que guarda os casos de internamento considerados perigosos. Por detrás da barreira de segurança está um homem de meia idade, interpretado por Afonso Dias, com uma postura de abandono no meio do seu lúgubre e tosco mobiliário. Está vestido de forma digna e apresentável, sem os recorrentes pijamas habituais nos ocupantes dos chamados “lares de terceira idade”. Esta visão sde solidão é cortada pela entrada do actor mais jovem, um marginal a cumprir uma pena de serviço comunitário por roubo de um mota. O jovem, Jojó fala. Tem necessidade de falar, de comunicar com alguém e vai dizendo o que lhe vai na alma. Mesmo que o outro não lhe responda. Aquela cela tem o efeito de um confessionário psicanalítico, no qual o jovem, medindo os efeitos das suas palavras nas reacções do velho, altera o discurso e muda de direcção. Fala da sua falta de integração, da sua inocência perdida, da rapariga dos seus sonhos. O homem mais velho escuta e, como bom analista, não diz nada. Por vezes pigarreia mas mantém-se atento a todo o discurso. Até que há um momento em que a colisão é inevitável. Jojó irado, colérico com as injustiças dos colegas e o velho, com aquela sapiência de quem controla o Tempo ampara-o e começa a interacção mais verbal. Leo, assim se chama o velho, diz-lhe que Jojó tem carácter. Essa é a pedra de toque para que a relação comece a funcionar. Dá-lhe alguns conselhos sobre como o jovem se deve defender dos seus agressores. É nesse momento que Jojó descobre que Leo foi um pugilista famoso. Um pugilista de coração grande, pois não gostava de magoar os adversários. E os conselhos partiram da defesa perante o agressor para o ataque pelo objecto de desejo. Leo dá ao rapaz algumas regras básicas para conquistar o coração de uma mulher. Conselhos que Jojó a princípio rejeita mas que aos poucos vai aplicando. A relação adensa-se, incluindo planos de fuga para uma vida onde a esperança consegue ter lugar. O final, surpreendente, abre as portas da esperança, não só aos protagonistas do espectáculo como a todos os espectadores.
A adaptação dramatúrgica de Paulo Moreira, com referências à Guerra Colonial e a códigos decifráveis num universo lisboeta contribui para a aproximação do espectador a uma realidade que também lhe pertence.
Quanto às interpretações, é de destacar a contracena que evidencia as tensões na altura certa. João Jonas mostra muito bem a mudança de atitude ao longo do espectáculo: o seu coração vai abrindo e, de puto com todos os tiques que a marginalidade impõe, vai mostrando o homem generoso que esconde. Afonso Dias é o grande protagonista desta história. Desde os silêncios, as pausas, até à relação de camaradagem quase paternal que tem com Jojó, tudo é estudado ao pormenor. E tudo é feito no tempo certo. Sem exageros, sem o andar alquebrado que muitas vezes se vê nas personagens dos velhos, com a dignidade de um grande actor. Mesmo quando mostrou a personagem alterada por drogas calmantes, a postura não foi excessiva, exibindo o descontrole da fala na medida exacta.
Com este espectáculo verifica-se, uma vez mais, a linha inovadora que vem marcando a diferença nos espectáculos da ACTA. Paulo Moreira consegue transformar um texto medíocre num bom espectáculo. Neste caso, soube retirar de um bom texto os elementos essenciais para com ele construir um excelente espectáculo. A não perder, certamente.

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