Wednesday, August 15, 2007

A cor da desilusão


Mundo Perfeito produziu, Filipe Homem Fonseca escreveu, Margarida Cardeal e Tiago Rodrigues interpretaram, o Centro de Artes Performativas do Algarve acolheu este trabalho. Sessenta minutos foi o tempo exacto para que o público pudesse experimentar várias emoções ao longo deste espectáculo.
Margarida Cardeal e Tiago Rodrigues exploraram o território tenebroso do final das relações. Utilizando o modelo da companhia belga STAN, evidente na iluminação quase geral e na liberdade de relacionamento em palco, o texto, cruel, foi arremessado com uma violência a que o público não ficou alheio. Será que quando as relações chegam ao fim passamos a poder usar aquela liberdade de dizer tudo aquilo que pensamos, sem haver o constrangimento de o magoar? Pode-se finalmente dizer tudo, mesmo o indizível?
Filipe Homem Fonseca, detentor de um sentido de humor cáustico e inteligente põe nas suas personagens todo o fel que amargura uma relação. Começa com uma cena banal, como o pisar de um caracol e extrapola até à condição humana. Qual é o limite da crueldade verbal? Qual é o limite para a sede de libertação do verbo? Aparentemente há limites que nos impomos a nós mesmos, pois a mulher contratou um homem para o poder insultar à vontade. O que vais fazer? Pergunta-lhe o homem, vou-te magoar, responde-lhe a mulher. “Deus deu-nos um dom, que é o dom de magoar aqueles que nos são próximos. Deus deu-nos esse dom porque sabe que aqueles que nos são próximos acabam sempre por desiludir-nos, e nessa altura temos de castigá-los.” A desilusão é o conceito-chave que dá o mote a este espectáculo. Como cenografia temos móveis cortados com rigor e objectos do quotidiano dissecados com uma precisão cirúrgica. A fruteira, separada da sua metade, contém frutos cortados ao meio. O móvel onde se pousava a caneca, divide-se arrastando consigo duas metades do objecto. Tudo tão calculadamente dividido. Como estão divididas as vidas, as emoções, os corações, as decepções. “Decepcionei-te?” pergunta a mulher. “Desde o dia em que te conheci”, responde-lhe o homem. E assim se construiu uma relação, com base em decepções, amarguras e crueldades. “Porque é que não me deste um filho?”, pergunta a mulher. E o homem dá-lhe a resposta mais cruel e desconcertante que alguém poderia ter ouvido: “Tu não tiveste filhos porque os teus filhos se recusaram a nascer quando souberam que te iriam ter como mãe”. Haverá limite para o dizível? Poderá alguém ter o direito de não ouvir isto acerca de si própria? Talvez. Por isso a mulher tenha contratado um prostituto a quem paga para poder dizer tudo aquilo que sempre quis dizer ao ex-marido, mas que nunca conseguiu. Talvez o ex-marido, como prostituto, e pago, possa ouvir finalmente tudo aquilo que a sua ex-mulher tinha para lhe dizer.
O texto de Filipe Homem Fonseca cruza dimensões e universos paralelos que confluem na mesma necessidade de crueldade. Há uma zona de incerteza, de quase um realismo fantástico, que é logo abafado pela dimensão de crueldade que o texto apresenta.
Poderão as pessoas ao longo de dez anos conviver pacificamente sem se degladiarem, sem se odiarem, mesmo que o amor tenha acabado? Filipe Homem Fonseca afirma: “O amor (e refiro-me ao amor entre um homem e uma mulher, ou mesmo entre dois homens ou entre duas mulheres) é foleiro enquanto conceito, e, na maior parte das vezes, também o é na forma. Fale-se do início de uma relação, do durante, ou do fim, existe uma espécie de nobreza (chamo-lhe assim à falta de melhor termo) que condiciona o tratamento dado à pessoa que amamos, ou que já amámos. Falo de agressão verbal, psicológica, afectiva. Existem regras de relacionamento que, na maior parte das vezes, exigem uma absoluta falta de sinceridade da nossa parte, quer nas palavras, quer nos actos, mas tudo se justifica com o tacto, a sensibilidade, o respeito. Mesmo quando as relações acabam e se parte a louça toda, já não interessa, porque se chegou ao fim. O terreno pantanoso está naquelas relações que se mantém, apesar de, na realidade, já terem acabado há muito tempo. Aquela zona já para lá da lenta deterioração do relacionamento entre duas pessoas, quando se possui a intimidade mas não a vontade de agradar o outro com esse conhecimento profundo que se tem dele; quando se utilliza a intimidade para magoar, porque é a única coisa que mantém a relação.
O espaço dado pela encenação é preenchido pela intensidade com que os autores exprimem o seu conflito. Questiúnculas que se agigantam com o passar dos anos e das ofensas. Feridas que não fecham nem se esquecem, estando prontas para uma explosão de dor no próximo ajuste de contas. Como é que podemos olhar para uma cena horrível e retirar dela prazer? Quando aquilo que a suporta é a arte. Então percebemos que aquela acção horrível é libertadora e não passível de ser imitada. Foi o que aconteceu ao longo deste espectáculo. O público foi sendo confrontado com os seus próprios fantasmas, conseguindo mesmo, pontualmente, rir de alguns deles, até ao literal ajuste de contas final. O pagamento ao prostituto é o elemento catártico que restabelece a ordem e apazigua o nosso espírito. Margarida Cardeal, detentora de uma intensidade dramática considerável, joga um jogo limpo e transparente. Tiago Rodrigues desfaz demasiadas vezes a personagem quando pisca o olho ao público, obrigando-o a um distanciamento pouco eficaz. Talvez seja um tique que terá ficado do Stan-up Tragedy, espectáculo de que se deveria libertar integralmente e para sempre.
No final fica no público o alívio pela sua relação não ter ainda chegado àquele estado e o aviso de que a diferença entre o aceitável e o lamentável é muito menor do que aquilo que à primeira vista se pode pensar.
No final, um murro no estômago para acordar as emoções e reflectir sobre as mentiras piedosas e as omissões que o nosso espírito nobre nos obriga a omitir. Segundo o autor, “O meu ponto de partida para a escrita desta peça foi imaginar uma relação assim, (pós-)amorosa, despida de toda a sua nobreza, de todos os condicionantes que evitam, na maior parte das vezes, que se vá longe demais nas ofensas, nas palavras brutais e agressivas, só possíveis porque se tem um conhecimento profundo daquilo que é realmente capaz de magoar a outra pessoa. Dizem-se palavras que sabemos irem castigar aquela pessoa que conhecemos como ninguém, o respeito e a consideração já não impedem nada; e a outra pessoa também não vai virar costas e desaparecer da nossa vida por achar que dizer o que dissemos foi ir longe demais, porque também ela está viciada nesse processo de agressão sistemática e obsessiva.” Brutalmente cruel, admiravelmente catártico. Um espectáculo completo onde a forma dá sentido ao conteúdo e o conteúdo preenche a forma.

No comments: