Thursday, August 16, 2007

A arte de bem prantear


A Companhia de Teatro do Algarve tem estado no Teatro Lethes apresentando a sua mais recente produção para o público escolar: Prantos, a partir de textos de Gil Vicente. A resposta dada por alunos que viram o espectáculo é bem significativa do poder da actriz Elisabete Martins.
Durante a tarde, no Teatro Lethes, muitas turmas das escolas secundárias de Faro aderiram ao repto da ACTA, levando os alunos ao espectáculo Prantos, de Gil Vicente, com dramaturgia de José Louro e encenação de Luís Vicente. Antes do espectáculo propriamente dito Luís Vicente, o director da companhia, propôs-se a dar uma pequena aula, contextualizando os alunos, não só na obra que iriam apreciar a seguir mas sobretudo fazendo com que eles percebessem o significado do estar ali no teatro assistindo àquela representação. Os alunos, sempre muito parcos em palavras, referiram depois, num inquérito que lhes foi feito por uma das professoras acompanhantes, que tinham achado muito positiva a aula, pois tinha-os ajudado a compreender melhor o espectáculo que assistiram a seguir.
Nesta fase ainda, Luís Vicente explica que levou para o palco aquilo que de uma maneira geral está escondido. Via-se uma actriz de costas, preparando-se frente a um espelho de camarim, via-se igualmente o técnico de luzes e som, e uma bateria com a respectiva instrumentista, pronta para contracenar com a actriz. Como disse Magda Romão, aluna da Escola Secundária Pinheiro e Rosa, “O encenador pôs em cena o camarim, o técnico de luzes e a baterista porque todos estes componentes do teatro costumam estar escondidos e foi para que nós pudéssemos ver como as coisas se fazem atrás do palco.” De uma maneira geral todos os alunos gostaram deste desocultar do que habitualmente se esconde, sentindo-se assim mais cúmplices do espectáculo.
O espectáculo começa e desde logo os alunos são arrebatados pelo génio interpretativo de Elisabete Martins, interpretando um extracto da Comédia de Rubena, de Gil Vicente. “Ai de mim, de mim roubada e não d’outros roubadores! Ai de mim desventurada!” o mote está dado e o figurino da actriz faz o resto. Um vaporoso vestido de noiva enche a cena e a actriz vai interpretando o texto em diálogo com a bateria, tocada por Sónia Cabrita. Um lamento de alguém que chora a sua sorte de mãe solteira, abandonada por um homem que lhe prometeu amor em troca da sua virtude. E, ontem como hoje, uma união não abençoada é sinónimo de vergonha e desgraça. Essa desgraça acompanha a jovem ao longo da sua vida e aqui, o génio da dramaturgia de José Louro mostra-nos o possível decurso da vida daquela jovem, mostrando-nos num segundo quadro um excerto do Auto da Cananeia. Elisabete Martins, depois de ter trocado o figurino no seu camarim de cena começa as suas falas: “Senhor, filho de David, amereceia-te de mim!” A actriz conseguiu fazer um jogo com o público, em que este repetia esta fala, quase entoando em coro palavras que não sabiam o que significava. Neste pranto os alunos foram um pouco apanhados de surpresa, divertindo-se com a toada em coro mas perdendo completamente a mensagem. O pacto com o diabo, agora muito na moda e motivo de curiosidade, passou completamente ao lado da compreensão destes alunos. O terceiro pranto, o mais conhecido, de Maria Parda, já conseguiu uma compreensão mais ampla da mensagem por parte dos alunos. De facto, a sexagenária alcoólica, apesar de na encenação não ter uma relação tão próxima com o público, toca os adolescentes, pelos exemplos duros com que eles muitas vezes se deparam. Aliás, essa foi uma referência positiva nos comentários dos alunos, como foi o caso de Raquel Agostinho que considerou o espectáculo ter tudo a ver com a juventude porque “fala na bebida, que pode ser um problema, e tudo o que uma adolescente pode passar, como a gravidez.”
Não sendo de puxar ao sentimentalismo, o terceiro pranto tocou os alunos de uma forma muito forte. A bateria foi vista por alguns alunos como algo completamente anacrónico e fora de qualquer sentido mas complementou de forma eficaz o excelente trabalho de actriz de Elisabete Martins. No final, a grande crítica de quase todos os alunos foi a linguagem, que consideraram completamente desadequada aos dias de hoje. Quanto à actriz, se tivessem oportunidade de falar com ela, todos lhe diriam que é dona e senhora de um talento invejável. Alguns, como Vítor Belo, chegariam mesmo ao ponto de lhe dizer que “tem futuro”, e outros, como Pedro Novais, até a aconselhariam a tentar a sua sorte “para além do Teatro Lethes”. Os figurinos de Esmeralda Bisnoca também foram elogiados pelos alunos, embora alguns tivessem dito que no último, “a saia da actriz mostrava coisas que não deviam ser vistas”. Findos os comentários, fica-nos a certeza de que este é um bom espectáculo, capaz de fazer interessar o público mais avesso. A ACTA já mostrou ao público escolar do Algarve que sabe pegar bem em textos de Gil Vicente : Rapsódia Vicentina, Auto da Barca do Inferno, O Velho da Horta, Auto da Índia e agora este Prantos. Cada um com a sua particularidade, todos eles com o cunho da ACTA e a preocupação de chegar ao público escolar. Mas… e as outras disciplinas? Será que só a disciplina de Português continuará a usufruir do privilégio de ter a ACTA como um parceiro cúmplice na motivação das suas aulas? Para quando as disciplinas mais problemáticas como a Matemática, a Física ou mesmo a Biologia? É caso para os docentes destas disciplinas prantearem e dizerem: Senhor… amereceia-te de mim, que a matemática e a física não tiveram um Gil Vicente mas tiveram um Platão, um Aristóteles e até um Einstein repleto de sonhos.

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