Tuesday, August 28, 2007

Subamos as escadas




A Companhia de Dança Qualibó completou está a realizar uma residência artística no Centro de Artes Performativas do Algarve (CAPa). Desse processo resultou um trabalho que foi apresentado à comunidade e que irá ser agendado no próximo Festival de Dança Contemporânea Visioni di (p)Arte, a realizar no próximo mês de Outubro, em Itália.
Sabíamos que íamos assistir a um ensaio aberto. Contudo, mesmo nos ensaios abertos existe uma tensão intraduzível que só existe nos espectáculos. O espectáculo que a Companhia de Dança contemporânea Qualibó partilhou no dia 24 de Agosto no CAPa tinha como tema central a competição entre os seres humanos, utilizando como metáfora a imagem da escada.
O espectáculo Primo Sale, encenado por Lisa Masellis, começa com uma imagem de contraste. Quatro escadotes delimitam o espaço cénico. Há bailarinos que se encontram no cimo dos escadotes, outros no solo, evidenciando a diferença ao nível simbólico. A música de Adolfo La Volpe é intensa, obrigando os corpos a agir, não havendo, no entanto, uma inter acção entre os cinco bailarinos: Francesca Giglio, Giuseppe Lacerenza, Nico Masciullo, Maristella Tanzi e Marlene Vilhena. A imagem que se oferece ao público é a do egocentrismo e do culto da imagem. A rapariga que quer continuar a viver nos seus sonhos, os homens que passam uns pelos outros e nem se olham, a mulher que compra o vertido de lantejoulas e se sente contente consigo mesma, são personagens que jogam o jogo social o melhor que sabem: dissimulando, insinuando, expondo-se, actuando. Os bailarinos são portadores de uma boa técnica, que mostram com uma energia exemplar.
As escadas assumem-se como matriz simbólica da competição social. Os dançarinos sobem escadas, descem escadas, expulsam o outro e assumem o seu lugar. As escadas delimitam um campo de batalha dentro do qual os homens lutam entre si. A luta é violenta e bastante real. No fim a paz é restaurada e a própria luta é assumida como uma brincadeira de crianças. A luta assume aqui o sentido figurativo de uma gestão inadequada da relação inter pessoal. As próprias são também utilizadas para construir um cenário de treino de aptidão física, lembrando os percursos militares. Os actores, simbolizando os homens e as mulheres que assumem um treino diário para vencerem na vida mostram a execução de exercícios de uma forma repetitiva, que levam o espectador a comungar do sentimento de exaustão.
Esta coreografia joga de uma forma muito bem conseguida com o conceito de espaço. Há um fragmento em que as três bailarinas sobem para os três escadotes. Sentam-se no cimo das estruturas, alinhadas, e fazem um jogo teatral muito curioso e divertido. Há um lugar que é indesejado. As bailarinas, chegando a esse lugar, fazem tudo o que podem para se libertar dele, passando-o a outra. Finda essa libertação não se preocupam mais com quem ocupou o lugar causador de sofrimento. Mas a vivência social é cruel e as três bailarinas vão ter de partilhar o mesmo espaço de um escadote. O espaço exíguo é tranformado, através dos movimentos dos corpos, dando a ilusão de que aquele espaço é maior. É, de facto, um trabalho notável ao nível coreográfico.
Há uma cena em que os quatro bailarinos conseguem libertar os seus corpos, simulando dançar numa discoteca, enquanto que a quinta bailarina se escontra enclausurada dentro da gaiola de um escadote. Esta imagem condensa o contraste entre as psisões interiores, que muitas vezes não nos permitem sair dos nossos pequenos mundos e aqueles que voluntariamente se deixam prender em ritmos e movimentos iguais, dando a si mesmos a ilusão de se libertarem. Esta foi uma imagem muito bonita, sobretudo ao nível da conjugação dos corpos dos quatro bailarinos que iam progredindo através de movimentos fluidos. Esses movimentos contrastam com a jovem enclausurada na sua prisão interior, assim como o contraste se pode sentir através da luz. Num outro fragmento coreográfico há um jovem que se transforma em velho e que mostra, de forma muito limpa e credível, essa personagem presa na sua própria velhice. Através da escada conseguimos sentir a solidão de um homem, mesmo que aparentemente estaja rodeado de outros homens, jogando às cartas.
As escadas servem de barreira, separando os bailarinos do público. Construída essa barreira artificial o público consegue ultrapassá-la através da música, construída a partir das respirações ofegantes dos bailarinos. Conseguimos acompanhá-los e respirar com eles, o que também mostra que as barreiras interiores são muito mais profundas e fortes que as barreiras exteriores pois estas são, muitas vezes, ilusões.
Primo Sale é um trabalho assente num conceito claro e construído com rigor. O fragmento no qual assenta a visão coreográfica não destroi a ideia matricial que marca a leitura dramatúrgica, assente na competição e no jogo de cintura que muitas vezes se tem de fazer para ascender socialmente. Ou, simplesmente, quebrar as nossas próprias barreiras para conseguir viver de uma forma mais saudável.
A Companhia de Dança Contemporânea Qualibò trabalha desde 1991, tendo sido o seu primeiro trabalho a coreografia Città come spettacolo. Contudo, só em 2002 a Companhia é oficializada. Desde 2006 organiza o festival de Dança Contemporânea Visioni di (p)Arte, em Bari, Itália, que este ano se realizará entre quatro e sete de Outubro. Nesse festival o grupo envolve as escolas e tenta estimular o aparecimento, não só de jovens bailarinos, mas sobretudo de jovens coreógrafos.
Por sua vez, o grupo Qualibò assume-se como um colectivo “contaminado” por profissionais oriundos de várias áreas da dança. Na sua estrutura encontram-se bailarinos com raízes no teatrodança, new dance, improvisação, artes marciais, assumindo que a diversidade contribui para o enriquecimento de um trabalho. O que, avaliar por este trabalho, é uma visão não só válida como exemplar.

Sunday, August 19, 2007

Lisístrata, ou o que a imaginação quiser!



O quinquagésimo terceiro Festival de Teatro Clássico de Mérida voltou à cidade Património Mundial da Humanidade. Entre Julho e Agosto os amantes do teatro podem dar um pulinho à vizinha Espanha e esquecer-se de que existe uma Silly Season a inundar o Algarve. E são imensos os que querem fugir à imbecilidade que nos é imposta, pois durante o festival os bilhetes esgotam e o público adere em massa aos grandes clássicos.
Cada vez gosto mais de Espanha. Não só por ser um povo que admira e acarinha a sua própria cultura, como por combater a tendência irracional de transformar os meses de Verão, que é a altura em que as pessoas podem enfim concentrar-se mais em obras mais densas, numa estação em que não se pensa, em que o pensamento crítico fica em segundo plano. No Algarve isso verifica-se através das programações mais ligeiras, pelo encerramento para férias de alguns teatros, pela insistência da comédia em detrimento de temas mais trágicos. Por isso, chega o Verão e sente-se a necessidade de fugir para um destino onde tratam o público como uma entidade que continua a usufruir em pleno da sua razão e do seu sentido crítico.
Nem o calor da Estremadura espanhola afastou, durante cerca de um mês e meio, os milhares de pessoas que todos os anos rumam à cidade de Merida, Património Mundial da Humanidade, para se deleitaram com uma apresentação no magnífico teatro Romano. O Teatro romano, com capacidade para cerca de três mil pessoas, enche-se de quinta a domingo, nas noites de Julho e Agosto, permitindo voltar a ouvir as vozes dos clássicos.
Para engrandecer este acontecimento a organização envolve outros espaços da cidade, ligados à mística da Antiguidade Clássica, rentabilizando o evento. Assim, Mérida enche-se de instalações, espectáculos para a infância, espectáculos de dança, que oferecem ao espectador um leque variado de escolhas.
Quanto à encenação de Lisístrata, a heroína criada pelo comediógrafo Aristófanes, vale a pena explorar um pouco a recriação deste tema.
Lisístrata é um texto magnífico que exalta o poder que as mulheres detêm sobre os homens, mesmo que aparentemente sejam mais frágeis ou menos dotadas de engenho. No texto original Lisístrata, uma mulher ateniense, cansada de suportar uma guerra que se arrastava há mais de 10 anos, resolve convocar as mulheres dos países desavindo, fartas também de estarem em guerra, para pensarem numa estratégia de obrigarem os seus maridos a estabelecerem a paz. Combinam então todas, por meio de um juramento sagrado, que irão fazer greve ao sexo e que irão recusar aos seus maridos os legítimos prazeres do casamento. Os homens não aguentam tal restrição e estabelecem, por fim, a paz desejada. Este é um texto de esperança que tem sido reconstituído como um hino à paz e ao amor.
A versão de Manuel Martínez Mediero, encenada por António Corencia, recupera o nome da heroína Lisístrata mas reescreve por completo a obra, retirando-a, quer do seu contexto espacio cultural, quer do seu registo cómico, quer ainda do sentido de esperança que se vive no fim. A Lisístrata de Mediero, datada e machista, adultera por completo o sentido de igualdade que Aristófanes propõe. No contexto de Mediero, Lisístrata é retirada de Atenas e inserido num mundo mais bárbaro: Esparta. Lisístrata espartana é a rainha que apela à greve ao sexo, mas que não é muito bem aceite pelas suas conterrâneas. Mirrina, nesta versão, surge como uma traidora ao seu género e à sua classe, ambicionando mesmo o lugar de esposa do Rei de Esparta. A versão de Mediero contém várias contradições, pois Lisístrata, quando inquirida sobre a criação dos filhos, responde que não iam cair no ridículo de entregar as crianças aos pais para as criar. A paridade passa por todos os outros campos, menos pela educação das crianças. Não deixa de ser curioso que Mediero tenha colocado como fiel aliada da rainha uma prostituta, que luta pelo fim da guerra, usando as mesmas armas para que se acabasse com a guerra. Nesta guerra de mulheres, só as impuras ao nível dos valores, como se veio a revelar Mírrina, sucumbem.
A versão de Mediero assume no texto a violação e a morte de uma jovem rapariga, recuperada na encenação como o Capuchinho Vermelho, que encontra um homem velho e abjecto. Esse facto acaba por se elevar à categoria de símbolo, dando mais força à causa das mulheres, no sentido de se unirem mais e não vacilarem perante os seus desejos. O final, supreendente, mostra uma Mírrina, que em Aristófanes é uma mulher frágil, mas fiel a Lisístrata, como uma traidora da causa, seduzindo o Rei de Esparta, e prometendo-lhe os prazeres do leito, caso este matasse Lisístrata e a elegesse, a ela, Mirrima, como rainha de Esparta. E o facto é que, depois de um discurso inflamado de Lisístrata, pela liberdade como valor fundamental, não apenas de género mas da humanidade, Floripon, o Rei, mata-a, para poder, finalmente, desfrutar dos prazeres da carne com a traidora do reino, que não luta pela paz, pelo bem comum, mas pela sua causa individual. De facto, como assume o encenador António Corencia, “Do autor grego fica o título, e aquilo que serve de ponto de partida: acabar com as guerras que ensanguentam os países e atiram as mulheres para a solidão e para o abandono”.
Com um elenco que reúne trinta actores em público, entre protagonistas e figurantes, temos de dizer que a encenação não foi cuidada, assentando sobretudo na figura de Lisístrata, interpretada por Miriam Diaz-Aroca. Muitos figurantes andavam perdidos pela cena, avançando sem segurança nas cenas que implicavam movimento. O coro dos velhos tinha uns figurinos interessantes, mas a fala que deveria ser em uníssono por vezes fragmentava-se por não haver em todos os intervenientes um sentido de ritmo. Os figurinos de Lisístrata foram concebidos para acentuar a figura da actriz, não respeitando a linha clássica de vestuário. E um pormenor de muito mau gosto foi a personagem do poeta Tirteu, interpretada pelo actor Jorge Lucas, que brincava com a efemenização dos poetas, assumindo-se como homossexual de plumas cor-de-rosa.
Foi pena também não se retirar mais partido do todo do teatro, como fez, por exemplo, Bob Wilson na sua Proserpina. Esse espectáculo deu-nos, de facto, a dimensão do que pode ser a genialidade quando associada a um espaço majestoso.
Lisístrata de Manuel Martinez Mediero não é a Lisístrata de Aristófanes. E se a tendência da dramaturgia contemporânea é reescrever os clássicos, tendo a preocupação de conservar a mensagem original, não me parece decente que um dramaturgo contemporâneo usurpe o nome de uma peça de uma autor clássico para dele fazer o que muito bem quer, adulterando a mensagem original. No fundo, um texto que convidava a uma vivência de exaltação, tendo o sexo como elemento catártico, foi transformado num espectáculo que se serve do sexo como móbil da traição da mentora do espírito da liberdade.
Seja como for, vale a pena ir a Mérida, nem que seja pela discussão destes temas e pelo estímulo ao pensamento crítico. Até para o ano!

Saturday, August 18, 2007

Descobrindo a Fada Formosa


Todos os dias, a empresa de animação ANIMARIS faz dois passeios pela Ria Formosa, que pretendem ser uma autêntica lição de educação ambiental. E para além dos adultos as escolas também podem marcar uma aula diferente e dar a descobrir às crianças os segredos da fada formosa.
Batiam as onze horas na igreja da Sé quando um grupo de visitantes, quase todos estrangeiros, esperava ansiosamente pelo embarque no cais da Porta nova, em Faro, para iniciar a aventura da descoberta da Ria Formosa. Embarcámos na pequena embarcação, um catamaran de 15 metros e fomos apresentados à nossa monitora, Adelaide Fonseca, mais conhecida por Milai, que foi desocultando os pontos de interesse ao longo do passeio. Milai, contadora de histórias, aspirante a fada nos passeios em que se descobre a fada formosa, elucidou-nos sobre o ponto mais a Sul de Portugal.Continental.
Com ela ficámos a saber que o Parque Natural da Ria Formosa foi fundado em 1987, após ter sido considerado uma Reserva Natural desde 1978. Estende-se ao longo de 60Km pela costa algarvia, entre o Ancão (concelho de Loulé) e a Manta Rota (concelho de Vila Real de Sto António). Ocupa, actualmente, uma área de cerca de 18.400 hectares e abrange partes dos concelhos de Faro, Loulé, Olhão, Tavira e Vila Real de Sto António.
A maior parte da sua área é constituída pelo sistema lagunar da Ria Formosa; um cordão de ilhas e penínsulas arenosas, alinhadas paralelamente à costa, protegendo uma laguna que constitui um labirinto de sapais; canais; zona de vasa e ilhotes. O cordão é formado, essencialmente, pela Península do Ancão (que inclui a “ilha de Faro”), as ilhas da Barreta, Deserta, Farol-Culatra, ilhas da Armona-Fuseta, de Tavira, Cabanas e, por fim, Península de Cacela.
Esta área foi classificada como Zona Húmida de Interesse Internacional, pela Convenção de Ramsar.
O passeio pela Ria é agradável, permitindo desfrutar de toda uma multiplicidade de cheiros e matizes que enquadram todos os tons de azul.
A bordo disponibilizam-nos binóculos, através dos quais podemos apreciar mais de perto a fauna que depende do sistema lagunar de sapal que é a Ria Formosa. Ali se podem observar em todo o seu esplendor garças brancas, garças pequenas, maçaricos galegos, andorinhas do mar, Fuselos, Ostraceiros e Corvos marinhos. A nossa monitora ia traduzindo os nomes para inglês, mas de vez em quando também o faz para francês ou castelhano.
O passeio inclui uma visita à ilha deserta, onde o visitante pode deambular pela praia ou então seguir os trilhos e penetrar no coração da ilha.
Um mau cartão de visita é o lixo que acena ao visitante logo que este põe o pé na ilha. Espólio do desleixo de visitantes menos conscienciosos, os sacos esperam pacientemente que uma entidade camarária faça uso do seu dever e os venha, por fim, recolher. Não é um bom sinal para que ensina às crianças as regras básicas da educação e do civismo.
De regresso a Faro os visitantes puderam provar algum do sabor das terras algarvias. A amêndoa, servida em doce fruto ou em licor, fez as delícias dos palatos dos marinheiros de ria. As crianças, quando regressam, preenchem um caderno de actividades relacionadas com o que aprenderam no passeio, pintam os desenhos das aves que reconheceram nos sapais. Regressam mais ricas, porque ficaram detentoras de um saber que não se aprende nos livros mas que a Fada Formosa ajudou a permanecer na sua memória.

*Com Ana Isabel Pacheco

O regresso das Cenas na Rua



Tavira abriu mais um festival Internacional de Teatro e Artes na Rua. Quinze dias cheiinhos de animação com programas para todos os gostos é o que a cidade do Gilão oferece ao seu público. Este ano a autarquia apostou em nove estreias que irão certamente surpreender o transeunte menos atento.
O recém-criado anfiteatro da Praça da República de Tavira foi pequeno para acolher o público que se juntou para admirar Niño Costrini, o artista argentino que desconcerta o público com o seu sentido de humor politicamente incorrecto. Saturados de um humor que se apoia no texto mais ou menos conseguido, na piada fácil, foi uma lufada de ar fresco ver Niño Costrini a roubar gelados aos transeuntes, a lançar o sapato de um espectador para o meio do público, a pedir por tudo para que os pais das crianças as agarrassem, pelo perigo do manuseamento do fogo, a interagir de forma saudável com o público. Excelente nos malabares, contundente no humor, Niño Costrini teve um desempenho excelente, provocando o riso espontâneo nos espectadores que assistiram à abertura do evento.
Dia 5, na Calçada da Galeria pôde-se assistir ao espectáculo O Pai do Gigante, pelo grupo ENTREtanto Teatro. Dia 6 foi a vez do Teatro Extremo actuar no Jardim do Coreto com o espectáculo Velho Palhaço Precisa-se. Sábado e Domingo, foi a vez do grupo sedeado em Tavira, Al-Masrah Teatro, apresentar a sua mais recente produção em estreia absoluta. Trata-se do espectáculo Carne para Cargueiro, baseado numa história verídica e que continua a mexer com o público.
O Teatro das Beiras surgiu na Praça da República dia 9 com o espectáculo de rua Os Piratas, ao que se lhe seguiu o grupo Alatak, que levou a Tavira um espectáculo baseado nas técnicas de vídeo jamming. Dia 11, com honras de fecho será a vez do espectáculo O Empresário, co-produzido pela ACTA e pela orquestra do Algarve ter a sua apresentação na Praça da República.
Herdeira de Faro Capital da Cultura, esta iniciativa permite olhar a cidade de Tavira de uma forma mais cosmopolita, assumindo-se como uma verdadeira cidade europeia.

Friday, August 17, 2007

O empresário - Um espectáculo completo



O espectáculo O Empresário, a partir da obra Der Schauspieldirektor, de Mozart, foi levado à cena três dias seguidos em três cidades algarvias. Este espectáculo, da responsabilidade conjunta da Orquestra do Algarve e da ACTA, assume-se como um espectáculo para as famílias onde a música se encontra com o teatro.
A Orquestra do Algarve e A Companhia de Teatro do Algarve, em associação com o Ópera Estúdio de Lisboa levaram a cena o espectáculo O Empresário, a partir da semi ópera de Mozart Der Schauspieldirektor. A encenação, tradução e dramaturgia estiveram a cargo de Paulo Matos que, com a maestria de um encenador experiente adaptou de forma exemplar o texto de Mozart à realidade contemporânea portuguesa. Os problemas de financiamento das companhias de teatro, a discussão sobre os critérios de qualidade, as cedências a que alguns directores se têm de sujeitar para poderem manter as suas companhias e poderem pagar os salários aos seus actores foram apontados com exactidão, expondo a nu os dramas diários de quem fez sua a profissão de actor.
Luis Vicente apresenta os seus dramas diários num registo sentido e quase comovente. Com o financiamento aceite, começam os malabarismos para se cumprirem todas as exigências do Ministério da Cultura e que, parecendo texto de comédia, de tão absurdas que são, na verdade, são bem reais.
Começa a preparação para o espectáculo com a elaboração do Casting, a que não são alheias todas as discussões inerentes à qualidade que se exige de um actor ou de um cantor, alimentadas pelos assistentes do director da Companhia, João Jonas e Afonso Dias. Os músicos aparecem, vindos do público, para se sujeitarem às audições, submetendo-se de imediato às instruções do maestro. O Casting começa e irrompe voluptuosa e sensual Elisabete Martins, interpretando uma actriz medíocre que se vale da sua ligação com um empresário para conseguir um papel de relevo na companhia. Interpreta Frei Luis de Sousa de forma histriónica e o poder do cheque faz com que ela seja aceite na companhia. Elisabete Martins expõe a sua graça natural neste papel, soltando-se e divertindo a plateia. O empresário Azevedo, interpretado por Luis Miranda também faz as delícias da assistência, com o seu ar assustado e submisso perante a sua insidiosa amante. Tânia Silva está muito consistente na jovem estudante de teatro que interpreta um grande texto clássico, com a sua candura que se transforma em força ao soltar o monólogo da Medeia.
Pelo seu lado, o maestro também parece sucumbir aos encantos de uma cantora que exige para si o papel de prima donna, interpretada por Lara Martins. Quando a cantora é confrontada com outra candidata igualmente virtuosa, Carla Caramujo, há uma disputa entre as duas candidatas a prima donna e acontece um fantástico duelo que tem por base a área da Rainha da Noite, da Flauta Mágica, de Mozart.
Não faltou a homenagem à Revista à Portuguesa pela mão de Glória Fernandes, divertida e solta num dos mais ousados textos levados a palco. Hilariante a reconstrução do clássico português O Costa do Castelo, na cena em que os jovens apaixonados, já envelhecidos, se reconhecem. Fernando Guimarães, para além da voz poderosa que mostrou revelou-se um actor de comédia bastante convincente.
A orquestra encantou nos pequenos trechos musicais que executou e os cantores brindaram os espectadores com as suas vozes de excelência.
Os figurinos de Rafaela Mapril dão ao espectáculo a dignidade que ele merece. Adequadíssimos, fazendo elevar a personagem de dentro do actor. A cenografia de Tó Quintas evoca o ambiente maçónico que se vivia na época de Mozart. A luz de Vasco Mósa realçou, no caso de Loulé, as arcadas do claustro da cerca do castelo onde o espectáculo decorreu. E nem o vento que se fez sentir distraiu o espectador do que era fundamental: o espectáculo.
Os quarenta e dois intervenientes, entre cantores, actores e músicos, contribuíram para que os espectadores regressassem a suas casas mais ricos, mais reconciliados com a vida, não deixando de lado o convite à reflexão.

O prazer de ver o teatro meridional



No dia Internacional do Teatro Loulé recebeu o Teatro Meridional com o seu espectáculo Por Detrás do Montes, encenado por Miguel Seabra. O segundo espectáculo do projecto províncias que procura mostrar a singularidade identitária que marca as diferentes regiões de Portugal. Um espectáculo onde a música e o corpo simbólico tiveram os papéis principais.
A voz profunda e humana começou a tomar conta do cineteatro louletano. Vindas de trás dos espectadores, os cantos intensos e penetrantes invadiram o espaço que já tinha a dimensão vibrante da música de Fernando Mota. Depois da música e das vozes os corpos dos actores começaram a tomar conta da cena, sendo por fim pintados pela luz de Miguel Seabra. O espectáculo Por Detrás dos Montes, encenado por Miguel Seabra, tem como referência o distrito de Bragança, no Nordeste Transmontano. Este é um espectáculo em que se sente a contaminação da matriz cultural transmontana. Como afirmou Natália Luiza, responsável pela dramaturgia do espectáculo, “este espectáculo visa falar de nós, saber de nós, aproximar-nos de uma matriz cultural que, embora comum, sempre esteve por detrás do granito dos Montes e que, sendo naturalmente permeável às exigências do mundo, mantém especificidades muito singulares.
Tal como no espectáculo anterior, não tivemos a veleidade de sustentar o trabalho numa recolha de informação antropológica, histórica, narrativa, mas antes deixarmo-nos contaminar por isso tudo e, pela observação sensorial, pelas sonoridades, pela paisagem, pelos sotaques, pela musicalidade, pelos rostos e pelas estórias. Formulámos então, subjectivamente, a forma como fomos tocados pelo Espírito do Lugar. O que escolhemos tornar narrativa cénica, primeiro intuída, e depois encontrada nos corpos e entendimento dos criadores.” Pelo decurso do espectáculo podemos dizer que esta equipa de criadores foi tocado pelo génio do local. Apesar de não utilizar a palavra como o meio privilegiado da comunicação cénica, o espectador tem a possibilidade de penetrar dentro da alma transmontana através da plasticidade do espectáculo. Como adiante Natália Luiza, o espectáculo “Serve-se e constrói-se nos corpos dos actores – aqui múltiplos no serviço da cena, das intenções e dos gestos, da música, da plasticidade do cenário e dos objectos, como que querendo pôr no lugar do palco, a energia guardada no silêncio das pedras. Põem-se e tiram-se as máscaras, para dizermos deste duplo significado que é a possibilidade de sermos mais outro, neste lugar onde o religioso e o profano, a verdade e a mentira, a ausência e o excesso se jogam na vida, tal como nós a jogamos no teatro.
Não tem um tempo diacrónico, antes fragmentado. Mas o espaço da cena é sempre lá, é aí, onde queremos estar, nesta visitação de quem atravessa e olha o lugar dos montes na geografia de quem os habita. Sabemos, porém, que embora queiramos estar e olhar por dentro das coisas, teremos sempre o olhar do visitante, aquele que é estrangeiro ao verdadeiro segredo. E trabalhar sobre o segredo, como conceito inerente à nossa percepção do lugar, foi uma das linhas condutoras da construção deste espectáculo. Porém, no lugar onde a matéria da intimidade se torna comunicação, queremos reafirmar o privilégio que é sentir, ser e interpretar os sinais de um lugar que é também nossa pertença, na geografia, na história e nos genes.”
Para o espectador foi um grato prazer penetrar nos mistérios do linho, da roca, da oração. Ver a oração transformar-se em coro grego e a máscara tornar-se rosto e corpo, pelo efeito da transformação operada pelo imaginário colectivo. Os tons castanhos e ocres das vestem redimensionam o olhar para a agrura das terras transmontanas. Os caretos impuseram-se na celebração festiva que dava origem à punição social. Uma punição que contribuía para a paz social, acabando tudo no baile da celebração do linho. Miguel Seabra disse a propósito desta sua encenação: “Encenar este espectáculo foi encaminhar invisivelmente uma procura colectiva que descobriu e propôs caminhos, que desenhou mapas, que inquietou certezas adquiridas, que alargou horizontes, que rasgou fronteiras e provocou instabilidades.
Foi fazer um percurso pelos segredos Detrás dos Montes e descobrir um sentido de identidade socialmente mais consciente e culturalmente mais humanizado.” Para o espectador, este foi um espectáculo que contribuiu para descobrir o humano que há dentro de si.

Libertar a partir da prisão

Sexta-Feira, os primeiros dias, foi o nome de uma oficina de criação e experimentação de múltiplas linguagens da cena com uma incidência particular na manipulação de formas e objectos e no movimento. Orientados pelos actores do Teatro do Ferro, os participantes nesta formação souberam libertar a alma de quem com eles partilhou as emoções da clausura.
Há muito tempo que não tinha oportunidade de assistir a um espectáculo tão bonito e intenso como o que aconteceu no Solar do Capitão-Mor no passado dia 12, às 18h00.
Entre 10 e 12 de Maio, entre o Solar do Capitão-Mor e o Teatro das Figuras desenvolveu-se uma experiência em função do colectivo e das suas especificidades. Esse espectáculo, da responsabilidade do Teatro do Ferro, foi o resultado de uma oficina de trabalho intenso que visa a preparação de um trabalho de longo fôlego para Novembro e que se irá chamar Sexta-Feira. Trata-se, como nos anuncia o nosso imaginário colectivo, de um trabalho que irá ter por base o texto Robinson Crusoé.
Para a preparação deste trabalho foi feito um convite à comunidade em geral. Não era preciso qualquer tipo de experiência e não fazia exigências ao nível da idade ou do sexo. Apenas era exigida disponibilidade total durante três dias. Feito o repto um grupo compareceu, com idades compreendidas entre os 9 e os sessenta. O desafio era recriar a sensação do náufrago quando se vê sozinho na ilha, de onde não consegue sair. A ilha torna-se uma prisão. Foi nesse sentimento de estar aprisionado que o grupo trabalhou, construindo as suas prisões interiores, visíveis através de pequenos objectos manufacturados pelos actores, numa oficina de construção de materiais.
No espectáculo entrava-se justamente pela oficina, passagem através da qual o público se confrontava com as ferramentas de que os actores se serviram para os ajudar a conceber os pequenos objectos com os quais iam interagir. Depois dessa passagem pelo mundo material passou-se para o mundo espiritual e simbólico. Este ficava oculto numa pequena sala que estava parcialmente coberta por panejamentos pretos. O público tinha de se posicionar da melhor maneira possível, estando atento à acção, que poderia surgir de qualquer lado. Os actores, um a um, iluminados por um único projector móvel, mostravam a sua relação com a prisão que tinham construído. Um diálogo intenso do actor com o objecto, mantido ao nível do corpo, mostrando que neste caso a palavra era supérflua. Os actores seguiam-se uns aos outros em silêncio e o público, também em silêncio, orientava os seus sentidos da melhor maneira possível. Da sala parcialmente coberta a preto, passámos a outra totalmente coberta de panos pretos, onde aconteceram mais duas interacções com os objectos, mantendo a ideia de prisão e de sufoco claustrofóbico. Depois destes dois momentos voltámos à sala mais clara, onde pudemos também observer uma interacção criada por uma criança. A solução, que foi buscar inspiração ao universo dos fantoches deu também a noção da inacessibilidade a da falta de comunicação que muitas vezes existe entre gerações. Um a um os actores apresentaram o seu conceito de clausura. Um a um, o público foi sendo surpreendido pelas propostas diferentes de interacção com objectos simbólicos, criados por cada actor. Durante toda esta passagem de testemunhos o público foi-se adaptando ao espaço como uma massa orgânica, em silêncio e com um sentido de partilha muito grande. O material (humano e imaterial) que se produziu nestes três primeiros dias de trabalho intenso será integrado no espólio/arquivo-vivo do espectáculo Sexta-Feira e alguns dos participantes poderão mesmo integrar o elenco do espectáculo. No fim o público ficou com a grande curiosidade de ver, em Novembro, o espectáculo concebido pelo Teatro de Ferro, a partir destas oficinas criativas. Esta iniciativa partiu do centro de animação e pedagogia do Teatro das Figuras e, apesar de ter sido o resultado de dois dias de trabalho o público ficou ciente de ter participado num ritual belo e intenso. Exactamente aquilo que precisamos para a vida.

Jovens artistas jovens

O CAPa é um dos 14 parceiros que torna possível em Portugal o Projecto “Jovens Artistas Jovens”. Este projecto já existe noutros países europeus e pretende apoiar os jovens artistas, ganhando também um conhecimento da sua situação real e integrando-os em estruturas (teatros, associações) a nível nacional.
Este projecto vem colmatar uma lacuna, pois pretende fazer um levantamento sobre os grupos de jovens criadores que querem oferecer o seu talento ao país. Através deste projecto, esses artistas poderão ultrapassar algumas dificuldades inerentes aos projectos de jovens que querem colocar os seus projectos na cena nacional.
O projecto “Jovens artistas jovens” é sensível à necessidade que os jovens têm relativamente a uma experiência artística que contemple aspectos de produção e de técnica, que lhes permitam, mais tarde, alcançar autonomia. Pretende-se, por isso, a possibilidade de realizar um trabalho no contexto de uma estrutura que funciona em moldes profissionais, que permitirá dotar os jovens artistas de conhecimentos e ferramentas que lhes podem ser úteis no momento de pensar novas criações.
As entidades organizadoras sentem que “muitas vezes, os jovens artistas trabalham sós e silenciosos. Pensamos que a possibilidade de encontros e discussões com artistas com uma experiência mais firmada e com um olhar diferente sobre a arte pode resultar no enriquecimento exponencial não só dos seus trabalhos, como deles próprios. São eles que ganham de um olhar renovado e mais maduro críticas, questões e estímulos que decerto não os deixarão imunes. (…) Se os jovens artistas permanecerem arredados do público, aquelas que constituem as suas grandes preocupações e as suas maiores apostas ficarão perdidas numa geração sem espelho artístico. ”
Por considerarem que o apoio aos artistas jovens é quase uma obrigação, no sentido em que as estruturas de teatros são veículos de encontro entre comunidades de público, de artistas, de discursos e de olhares, criaram a possibilidade de os artistas se afirmarem através de um concurso a nível nacional, com o intuito de oferecer a possibilidade de um acompanhamento gradual do trabalho artístico e ainda a sua produção. Este seria, assim, o objectivo último do projecto “Jovens Artistas Jovens”. Finalmente, numa tentativa de potenciar ao máximo esta iniciativa, pretende-se que o projecto português “Jovens Artistas Jovens” seja parceiro dos outros projectos congéneres na Europa, de modo a permitir a apresentação de trabalhos e a discussão de questões a nível internacional.
Lá e Cá foi um dos três projectos que ganhou a possibilidade de fazer uma residência artística no CAPa. Desenvolvido por duas jovens artistas, Catarina Vieira e Solange Freitas, estas criativas basearam-se num texto de António Lobo Antunes, Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo e construíram um espectáculo inovador e diferente, falado no feminino. As personagens são complexas, muito ricas de passado e sequiosas de comunicar, por estarem envoltas no silêncio, no esquecimento, num não-lugar familiar e social. «A única coisa que pretendo é que me deixem em paz sozinha comigo ou antes sozinha com isto que não sou eu e em que me tornei» Essa sede de comunicação torna o discurso tenso e ritmado, no qual a pontuação, omissa pela urgência de falar, é compensada pela expressividade e pela poesia. O espectáculo Lá e Cá assenta nesse princípio da incomunicabilidade. Uma mulher aparece sem rosto, com um saco de papel cobrindo-lhe a identidade. Outra mulher chega, igualmente sem identidade. Elegantes, os sapatos, como coturnos, elevam a figura sem rosto. As mulheres penteiam os cabelos que não se vêem sob um saco de papel que oculta o rosto. Dão ao saco uma outra identidade, quando desenham com baton uma outra boca e uns outros olhos.
Tentam “Não se querer enganar, não se deixar ler, não se tornar expressão, ser impassível, não mostrar a cara, esconder os olhos, não ver e não ser visto, filtrar a informação da alma, fingir-se de morto, não mostrar tudo, estar sempre a fugir, ter nove mil caras, fingir-se de morto, ver e não ser visto, ficar na sombra, ser igual ao outro para não ser o outro, não perder o pé ou a cabeça, não sair do mesmo sítio.”
As actrizes dominam o espaço, coberto com cartão, apesar de não o conseguirem ver. Uma delas tenta compor a imagem colocando brincos, mas o cartão começa a rasgar-se. A tentativa de compor o que está desfeito vem através da tentativa de colar o rosto com fita adesiva. A outra mulher fala e vai comendo o papel que lhe cobre o rosto. A identidade descobre-se a partir da palavra e o papel vai-se rasgando em pedaços cada vez mais pequenos, cobrindo o olhar. A relação do corpo com o espaço, construída com o apoio de Luca Aprea, é íntima e permite que o corpo se movimente de olhos fechados num espaço com obstáculos. A boca do corpo revela a fala das profundezas do sentimento de si, que engole o real de forma ampliada. Quando a palavra desoculta o rosto, um espelho devolve a imagem do objecto de conhecimento a si próprio. É comovente a cena em que a actriz se move, ostentando no rosto um espelho que devolve a imagem aos espectadores. Com o espelho, o sujeito pode efectivamente ter nove mil caras, fugindo de si próprio. Do espelho passa-se ao filtro e a uma das cenas mais bonitas do espectáculo. A meio da cena, sobre um balcão, estão dispostos lado a lado seis grandes jarros transparentes cheios de água. Seis infusas uterinas que permitem um olhar filtrado sobre a realidade. Com a luz belíssima de Wagner Borges, os rostos por detrás das infusas ficam deformados e estranhos, dando ao outro o reflexo de uma realidade que não é a sua. Segundo Lobo Antunes, “O inferno consiste em lembrarmo-nos a eternidade inteira”.
As conversas, o social, escondem-se atrás de uma capa de múltiplos rostos, alimentados por conversas fúteis. Quando o rosto se descobre e fita o outro, olhos nos olhos, a sintonia acontece e o corpo responde em simultâneo. O espectáculo acaba quando a cumplicidade é encontrada.
As referências à escrita profunda e complexa de Lobo Antunes tornaram-se evidentes ao longo de todo o espectáculo, que se impôs como uma bonita homenagem ao escritor.
Um espectáculo belíssimo que nos convida a aprofundar a leitura de Lobo Antunes, mas que, sobretudo, nos aguça a curiosidade sobre os projectos que os jovens criadores não podem deixar na gaveta.

Do sublime e do horrível

Numa mesma semana pudemos assistir a dois espectáculos que paradoxalmente tocam as mesmas categorias estéticas mas que as mostraram de maneira inversamente proporcional. O sublime e o horrível foram mostrados no teatro Lethes e no Teatro das Figuras, arriscando o equilíbrio da programação.
As águias voam Legatto foi um recital encenado da responsabilidade da Companhia de música teatral com obras para canto e piano coordenado por Helena Rodrigues.o recital começou no átrio do teatro Lethes com a aparição de um homem, António Laginha, de cartola e capa negra, com um ramo de rosas na mão.
De dentro do teatro ouve-se a voz de Manuela Moniz, cantando o improviso São rosas, Senhores, são Rosas. As rosas vermelhas são cobertas e descobertas pela capa de cetim do misterioso homem, e depois distribuídas a algumas das senhoras presentes. Depois de uns passos de dança, António Laginha convidou os presentes a dirigirem-se para o interior do Teatro Lethes, onde dançou mais um pouco e espalhou as pétalas das rosas até à entrada do teatro. Pisadas as rosas, o público entrou no teatro onde o esperavam no palco Helena Rodrigues ao piano, acompanhando a voz de Manuela Moniz. Não se percebeu muito bem a razão do homem misterioso no recital, que estaria mais equilibrado sem aquela figura excêntrica a dar uns passos de dança entre os espectadores. O cenário é composto por um charriôt ostentando fato de cena cenografados em tamanho gigante. A lógica da inserção de um camarim simbólico no palco é discutível, até porque as duas belas mulheres estavam a apresentar o recital comentado assumindo o palco como espaço de representação e não de preparação do actor. Se houvesse essa intenção os diálogos havidos circunscreviam-se às personagens e não à procura de cumplicidade com o público.
O recital decorreu de forma tranquila, sem convulsões nem aplausos, lembrando uma reunião de famílias aristocratas convidadas para o salão de uma nobre marquesa. A capa posta sobre os ombros da pianista, como se fosse uma transferência de poder deformou a figura elegante de Helena Rodrigues. O vestido branco coberto de rosas lembrava o recital das flores Se as flores fossem eternas eu não queria morrer, que Paula Cardoso Rocha apresentou nos anos 80 no Teatro Nacional D. Maria II, com Eunice Muñoz e Ana Padrão. Isto é, um recital datado, visto, revisto, com um leve cheiro a rosas murchas que não comoveu o público, como se pôde constatar pelo silêncio sepulcral que se fazia sentir entre as canções. Um recital onde o sublime da música e da poesia se transformaram num espectáculo horrível e entediante, porque não soube emocionar o pouco público que acorreu ao teatro Lethes.
Por outro lado, o público de Faro foi presenteado com uma agradável surpresa. Moby Dick, a história do cachalote albino contada por Herman Melville apresentou-se diante do público no Teatro das Figuras. Uma história trágica, sustentada por sentimentos baixos, como a vingança e a sede de destruição, mas apresentada de uma forma sublime.
A encenação de António Pires é sustentada por uma paixão pelo texto de Melville, que considera um dos mais importantes de todos os tempos. Segundo o encenador, este romance “Consegue de uma forma quase perfeita reproduzir a condição humana em toda a sua complexidade”. António Pires socorreu-se de um elenco capaz de se entregar com seriedade e por uma equipa técnica que foi capaz de criar os recursos para alimentar a emoção do espectador. A cenografia de João Mendes Ribeiro permitiu uma realização plástica do espectáculo inovadora e extremamente rica a nível simbólico. Como é que uma prancha, semelhante a um half pipe pode ser ao mesmo tempo proa de navio, convés, crista de onda? É preciso o toque de genialidade que faz acreditar a tornar o invisível visível. A luz de José Álvaro Correia torna a visão do mar credível em todos os seus matizes.
Curiosamente António Pires dá à primeira parte da sua encenação um tom de musical, com coreografias divertidas e canções de marinheiros que contêm a esperança que os conduz para o mar. Na segunda parte, mais sombria, onde se expõem as misérias humanas, não há espaço para cantos. O rapaz do tambor é elevado a remador e caçador de baleias, apagando a música das almas dos marinheiros. O confronto com a baleia branca preenche na totalidade os sentidos quer dos marinheiros, quer dos espectadores.
A dramaturgia de Maria João Cruz acrescenta à obra de Melville a figura da mulher expectante, a mulher que fica em terra a ver os barcos partir e antevê o desastre no mar. A sibila dos pescadores que teme por eles e os espera na praia. A mulher pela qual todos querem voltar. Essa mulher é magistralmente interpretada por Maria Rueff, que sabe comunicar com o público, contando o que vai no coração daqueles duros homens.
António Pires reduz a oito os marinheiros que partem para a caçada à baleia branca. Esses marinheiros são símbolos de categorias humanas, que vão desde a maldade de Ahab até à inocência ambivalente do selvagem. Os nomes bíblicos também encerram em si mesmo uma simbologia, devolvendo à personagem o destino imposto pelo nome. Por exemplo, como nos explica a produção, “Ahab na Bíblia é um dos mais desagradáveis Reis de Israel. Leva o seu povo à perdição por fazê-los adorar um deus pagão. A dada altura, Acab manda matar Naboth para se apoderar da sua vinha. O profeta Elias chama-o à razão e Acab acaba por se arrepender. Morre no cerco de Ramoth e, conforme a profecia de Elias, os cães lambem o seu sangue.” Ahab é justamente a personagem interpretada por Miguel Guilherme. O sanguinário Capitão do navio que, por vingança, quer caçar Moby Dick, a baleia que num confronto anterior lhe tinha levado a perna.
Neste espectáculo a luta entre Ahab e o grande cetáceo simboliza em sentido lato a luta que o homem tem vindo a exercer contra a natureza. Moby Dick encarna todas as espécies ameaçadas, todas as atrocidades de que a natureza tem sido vítima. E a vingança de Moby Dick tem vindo a ser sentida através dos tsunamis, dos tornados, os desastres naturais são a voz da natureza a pedir ao homem que pondere e que mude os seus hábitos. A mulher que preconiza o augúrio previne-nos para pouparmos bem nas nossas candeias porque “em cada litro de óleo há uma gota de sangue humano.” O horrível da miséria humana transformado num espectáculo sublime. O sublime para Kant é a desarmonia em relação as faculdades, pois o sublime assombra, é terrificante e de uma beleza magnífica e absolutamente grande. O sublime surge de uma tensão entre imaginação e razão gerando uma relação conflituosa da imaginação com a razão. Ora, a imaginação por si só acaba no nada, fica um abismo onde poderia perder-se, o impensável, o horror e fazendo com que a razão violente a imaginação, pois a mesma não consegue medir o que é o sublime. Este espectáculo não só foi sublime como também inesquecível.
O pouco público que o Teatro Lethes recebeu para o recital de canto e piano contrastou com as três sessões praticamente esgotadas do Teatro das Figuras para assistir a Moby Dick. O público de Faro já sabe o que deve ver. Assim a programação soubesse o que devia programar.

O grande equívoco


O Teatro das Figuras convidou as escolas da Região para assistirem ao espectáculo Lilás. Um espectáculo baseado num texto de Jon Fosse produzido pelos Artistas Unidos destinado ao público adolescente. Um espectáculo sem a cor lilás que se ficou pelas intenções.
Quem tivesse assistido à “conversa desfigurada” sobre a adolescência promovida pelo Teatro das Figuras no dia 30 de Janeiro, a propósito do espectáculo Lilás, de Jon Fosse, com tradução Pedro Porto Fernandes dramaturgia Jorge Silva Melo e Miguel Castro Caldas, produzido pelo grupo Artistas Unidos, teria certamente ficado com curiosidade para a interacção que iria ocorrer durante a sua representação. A certeza, a segurança com que o colectivo de actores (António Simão, João Miguel Rodrigues, Paulo Pinto, Pedro Carraça e Sylvie Rocha ) falou sobre os espectáculos para adolescentes, a crítica explícita aos professores que minimizam as capacidades dos jovens, infantilizando-os, a censura a companhias profissionais que descobriram uma nova forma de se afirmar, apresentando espectáculos para adolescentes que visavam sempre os mesmos temas, com um cunho moralista, indiciava um espectáculo que tivesse tido de facto uma preocupação séria para com a faixa etária dos 14 aos 18 anos, independentemente de acreditarmos se o conceito de adolescência é uma fase construída artificialmente ou se assume como um estágio específico de passagem, onde se muda a pele. A facilidade com que António Simão criticou os professores que fazem uma reescrita dos temas vicentinos, de acordo com a qual adoptam objectos do contemporâneo para as suas personagens, fez-nos pensar que estes actores tinham de facto encontrado uma escrita assumidamente contemporânea e forte, que iria finalmente impressionar os jovens. Aliás, toda a descrição da descoberta das novas dramaturgias motivaram os três professores de teatro, que já há mais de uma década trabalham com adolescentes, e que constituíam a quase totalidade do público da tal conversa desfigurada, para assistirem com um outro olhar ao espectáculo Lilás.
Os actores marcaram o diálogo insistindo no facto de que a peça de Jon Fosse era suficientemente aberta para emocionar crianças, jovens e adultos, apesar do discurso que se encontra nos textos cedidos pela produção dos Artistas Unidos afirmar peremptoriamente que “este não é um espectáculo para crianças”. De facto, se escutarmos a voz do próprio Jon Fosse, ele diz-nos a propósito da sua escrita na revista nº 4 dos Artistas Unidos: “Eu escrevo quase sem ponto de partida, sem imagem, sem plano, escrevo só. Vou escrevendo, variações. Há um momento em que tudo tem de se resolver. Se calhar é por isso que as coisas acontecem tão abruptamente no final das minhas peças. (…) [As minhas personagens nunca têm cara,] são vozes. Sou muito pouco visual. A não ser para as didascálias, que têm a ver com os movimentos dos corpos no espaço. Não escrevo personagens no sentido tradicional do termo. Escrevo partes do humano.”
No entanto, a passagem destas boas intenções para o plano do real do espectáculo revelaram-se estéreis e improdutivas. Quando um adolescente chega ao pé do professor que o levou ao teatro e lhe diz: “professor, eu tinha preferido ir à aula de História”, podemos ser levados a pensar que aquele aluno é um amante incondicional da História. Mas quando vemos uma turma de alunos médios dizer: “professor, para vermos isto, mais vale ficarmos nas aulas”, é caso para reflectirmos no que terá acontecido num espectáculo de uma produção concebida para a adolescência, a partir de um texto de um dramaturgo que escreve para a adolescência, com actores que tudo sabem teoricamente sobre a adolescência. De facto, o que faltou foi um espectáculo para a adolescência. A cenografia de Rita Lopes Alves foi o primeiro elemento que despertou a atenção do público -1600 jovens da região que esgotaram o teatro das figuras nos dois dias de espectáculo destinados às escolas. Ouviu-se dizer: “Olha, que bonito!” Uma divisão de paredes gastas e sujas repleta de latas vazias pelo chão e instrumentos de uma banda um pouco ao abandono pelo espaço. A luz de Pedro Domingos intensificou a ambiência decadente pedida pelo texto. Os actores António Simão e Sylvie Rocha entraram em cena tentando impor a sua presença ao difícil público de jovens. Jon Fosse designou-os como O Rapaz e A Rapariga numa clara tentativa de lhes retirar a identidade, integrando-os na grande categoria dos adolescentes. Sylvie Rocha faz um uso adequado da sua figura frágil e delgada e, como excelente actriz, é convincente no seu papel de adolescente. António Simão precisaria de um pouco mais que de uma figura adequada para ser convincente como adolescente, mas não o conseguiu. O seu corpo desajeitado poderia corresponder de alguma forma ao corpo em formação do adolescente mas a sua representação falsa descolou os jovens do sentido da sua personagem. Esta primeira cena, fundamental para a criação do sentido dramático do espectáculo foi totalmente destruída por não ter havido uma presença em cena que cativasse o público. O texto, minimal, repetitivo, dá conta desse desconforto imposto por uma moralidade vigente. É interessante o jogo de silêncios incómodos criados entre o Rapaz e a Rapariga mas um espectáculo que assenta nas pausas, nos silêncios, na linguagem gestual, tem necessariamente de ter actores credíveis. A partir do momento em que os adolescentes vêem actores na casa dos trinta anos a encarnar de forma pouco credível miúdos de 15 anos, desligam-se do espectáculo. Quando as didascálias são cumpridas ao milímetro, mostrando hábitos nórdicos que não têm referência entre os países mediterrânicos, como o ritual do descalçar os sapatos à entrada de uma cave suja e imunda para calçar outros sapatos, é o sentido do texto que se suja. De facto, é natural que os alunos tivessem perguntado: “por que é que eles andavam sempre a calçar e a descalçar os sapatos?” E o sentido ficou-se por aí. Quando o namorado da Rapariga, o Baterista, chega à cave a tensão aumenta. A sombra da moralidade burguesa da posse começa a fazer-se sentir e mesmo depois da saída da Rapariga há uma luta de demarcação de terreno entre o Baterista e o Rapaz, que leva este último a querer abandonar o projecto da banda. Um sonho alimentado de instrumentos em segunda mão e de um tema composto pelo Rapaz, inspirado pelo desgosto extremo da perda da única pessoa que o amparou: a avó. Perdidos na vida, abandonados a si próprios, estes jovens explodem de acordo com o grau da sua emoção. Os outros membros da banda chegam, cumprem o ritual dos sapatos, tocam um fragmento de uma música e seguem à procura de outro guitarrista para a banda. Porque ninguém é insubstituível. Nem mesmo o Rapaz que compôs o tema sofrido dedicado à avó. Nesta cena, o encenador João Miguel Rodrigues teve o bom senso de se pôr a si próprio a tocar de costas para o público, para não o chocar com a evidência da distância imensa que vai de si à adolescência. A luta de machos desenvolvida pelo Rapaz e pelo Baterista fica resolvida com a desistência do baterista pelo projecto da banda. Com essa desistência o Baterista desinteressa-se pela posse da rapariga, cuja reputação a maledicência, que, pelos vistos é um fenómeno também partilhado pelos países do 1º mundo, já tinha destruído. Num projecto que tenta não tomar posições moralistas, a suspeita de infidelidade causada pelo simples facto da Rapariga estar numa mesa de café a conversar com outro rapaz, é no mínimo estranha.
A última cena passa-se entre o Rapaz e a Rapariga. Esta regressa à cave sombria e é agredida pelo Rapaz. Como qualquer adolescente mediterrânico o Rapaz sente uma posse inexplicável pela Rapariga que é objecto de desejo. No entanto, o facto da Rapariga não se debater perante a agressão do Rapaz, criando uma suspensão de movimento, retira verdade à cena. Mais inverosímil é a posterior reacção da Rapariga que afaga o rosto do seu agressor, saindo da cena de mãos dadas com o seu agressor. Será que Jon Fosse está a voltar à moralidade do “quanto mais me bates, mais gosto de ti?” Teria sido extremamente anti pedagógica, se não tivesse sido patética, a visão de uma rapariga, que para além de não se defender, ainda saía com um ar apaziguado com um rapaz depois de ter sido agredida por ele.
Depois de assistirmos ao espectáculo, e a avaliar pelas vaias que se ouviram, podemos reflectir sobre várias coisas: o que é que esta novíssima dramaturgia emergente destinada à adolescência tem a ver com a adolescência? Será o facto de uns actores de trinta anos representarem pessoas de 15 anos num cenário decadente? Qual foi a mais valia para os 1600 alunos da região? Ver os actores dos Artistas Unidos a descalçarem-se quando entram em casa? E o resto? O plano formativo? O que é que um espectáculo desprovido de sentido pode dizer aos jovens? É uma opção discutível mas válida fazer espectáculos para adolescentes sem lhe impor um cunho moralista. Outra coisa é fazer um espectáculo amoral e catalogá-lo como um espectáculo sobre adolescentes criado sob a égide de um projecto para dramaturgias juvenis.
Os jovens algarvios não ficaram emocionados com o espectáculo. Não tanto pelo facto de serem menos sensíveis a caves decadentes ou a silêncios intensos, mas por terem vindo a ser, desde há cerca de seis anos, formados para o teatro pelo protocolo que a companhia de teatro do Algarve (ACTA) estabeleceu com a Direcção Regional de Educação do Algarve. Espectáculos como O Longo Sono da Heroína, o Auto da Frequentada, ou o recente Nexo dos Sexos, com encenação de Ana Baião, tratam os adolescentes de igual para igual sem falsos moralismos, falando de todos os temas olhos nos olhos. Depois de verem os espectáculos da ACTA os jovens desejam voltar ao teatro, apesar de todas as possíveis incongruências dramatúrgicas que alguma elite bem pensante rejeita. E para que não haja um hiato formativo, os alunos que vêem os espectáculos da ACTA recebem gratuitamente um programa elaborado, concebido por técnicos especializados. Este trabalho de sapa aberto pela ACTA permitiu aos jovens que viram o espectáculo Lilás não se curvarem perante a sabedoria elitista de um grupo da capital. Tanta preocupação em fazer uma dramaturgia para adolescentes e nem um opúsculo entregue à entrada com contributos para a leitura do espectáculo. Pelo menos, para explicar a razão do nome do espectáculo. Lilás não teve a ver neste espectáculo com movimentos feministas nem com a tranquilidade proposta pelo significado da cor. Lilás é uma variação do roxo, a cor do sofrimento. O sofrimento necessário à transformação para um outro estado.
O problema de fundo é um problema estruturante. É um problema de se confiar nas estruturas que podem ser parceiras na educação dos jovens. Uma programação que se preocupa com as questões verdadeiramente estruturantes tem de estar atenta aos espectáculos para os quais lança reptos aos professores/formadores. E as questões que se colocam depois de visto o espectáculo Lilás passam por saber se os programadores viram o espectáculo antes de o agendar. Se não o viram, é grave, pois quando estamos a entrar no campo da educação/formação não podemos ser levianos ao ponto de confiar apenas no nome de um grupo que não está no terreno com os adolescentes. Se viram o espectáculo, então teria sido melhor que se fizessem acompanhar de um técnico de educação que trabalha todos os dias com adolescentes. Esse técnico teria dito ao senhor programador responsável pela Educação e Formação: Isto é um grande equívoco, pois este não é um espectáculo para adolescentes. E se é para ver isto, será melhor ficarem na aula de História.

O teatro e os adolescentes


Depois de quase um ano na estrada as escolas e os gabinetes de apoio aos jovens continuam a solicitar ajuda à ACTA para ir falar com os adolescentes sobre sexo. O espectáculo O Nexo dos Sexus é o exemplo de um espectáculo interactivo que coloca o jovem no centro da acção e põe o dedo na ferida de uma educação para os afectos ainda muito deficitária nas nossas escolas.
Os olhares dos adolescentes inquietavam-se quando a equipa da ACTA os dividia em grupos de género mistos antes de entrarem na sala de representação. Depois de acomodados no exíguo auditório os alunos foram informados das regras: “Se vocês não nos ajudarem, não irá acontecer nada. Este espectáculo é interactivo”. Os adolescentes agitaram-se nas cadeiras. Não gostam muito da palavra interactivo. É uma palavra que os retira da passividade escolástica a que o sistema de ensino os habituou. Quando vêem entrar os actores ao som da música de Piazzolla respiram de alívio. Os actores falam de coisas que os fazem sorrir. Do crescimento do corpo, do desejo acrescer, do querer tocar e… dessas horríveis borbulhas que são a vergonha da sua cara. A partir de um momento, como uma fotografia, os alunos são levados e reflectir sobre a homossexualidade. São confrontados com o drama de um pai que descobre que o filho tem uma opção sexual diferente. Os alunos intervêm, as opiniões dividem-se, são convidados a discutir em grupo e a mostrarem as suas conclusões. Estão entusiasmados porque finalmente falam, reflectem, e são ouvidos. Os mais audazes mostram um monólogo e são aplaudidos pelos colegas. São levados a sério porque se comportaram com a seriedade que o tema merece. Outro momento mágico, instantâneo fotográfico com figurinos de Klimt e alguma ousadia. Fala-se do querer tocar, do desejo e das regras da protecção. Mais uma vez os alunos discutiram situações de risco em grupo, mais uma vez as mostraram sem falsas moralidades. O brilho no olhar continuou, assim como a pertinência da questão: usar ou não usar preservativo. Pelas respostas pudemos perceber que ainda há um grande sentimento de vergonha em ir comprar preservativos à farmácia. Por outro lado, o uso do preservativo nesta faixa etária é um hábito que, pelo menos a nível teórico, já está implementado. O público deixou de sorrir quando ouviu a personagem da mãe falar com um ar sofrido das portas que a filha impôs entre as duas e que se recusa a abrir. Portas que permanecem fechadas perante as dúvidas, os medos, e mesmo a confissão de uma gravidez adolescente. Os grupos voltam a reunir, os diálogos refazem-se antes da porta ficar fechada, e os educadores podem perceber o conflito, por vezes leve, outras vezes agudo, que continua a existir entre mães e filhas. As soluções para o caso da gravidez passam, na sua maior parte, pela aceitação da situação e pela mudança de vida originada pela vinda de uma criança à vida da rapariga.
O Nexo dos Sexus, com autoria e encenação de Ana Paula Baião, é uma poderosa ferramenta para trabalhar com os adolescentes a educação para a saúde e para os afectos, e um útil termómetro pedagógico que ajuda os professores a perceber como está o estado de saúde e educação sexual dos seus alunos. Concebido a partir do célebre quadro de Klimt O Beijo, o espectáculo, segundo Paula Baião, “retrata o encontro afectivo de dois seres que atravessam uma mesma fase de descoberta, de vários sentimentos, entre eles o enamoramento e o amor.” Esta fase da adolescência é fndamental para o futuro do indivíduo pois, como diz Bouça no seu estudo Madrugada de Lágrimas, “Nesta fase de crescimento definem-se valores próprios que vão nortear todo o projecto de vida que abrangem e reflectem o modo como estas diferentes etapas foram sendo vividas e ultrapassadas. Todo este processo lento, mas nada pacífico, é o tempo em que se move o adolescente e, para o concretizar, precisa de liberdade, limites e confiança.”
Foram com estes três conceitos que os adolescentes das escolas do Algarve têm podido privar, pois os quatro actores – Ana Gabriel, João Jonas, Mário Spencer e Tânia Silva, com a autoridade proporcionada pela maturidade que lhes advém do terreno, foram monitores excelentes e parceiros privilegiados na construção de um espaço de diálogo no qual se pode falar seriamente de sexo e de afectos. É necessária a construção desse espaço efectivo, porque o que aconteceu no nosso país tem sido pouco substancial.
No plano legal, assistimos à produção de legislação cujo objecto foi a educação sexual. Foi o caso da Lei 3/84, da Lei 120/99 e do DL 259/2000. No âmbito dessa legislação criaram-se várias iniciativas, como a criação da disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social e a elaboração dos respectivos programas pelo Instituto de Inovação Educacional que integraram uma componente de educação sexual (1990-1991), a criação do Programa de Promoção e Educação para a Saúde que integrou, desde o princípio, a educação sexual como uma das suas vertentes de actuação no âmbito da educação e promoção da saúde a criação do PEPT – Programa Educação para Todos que também integrou a educação sexual como uma das suas componentes, a criação da Rede de Escolas Promotoras de Saúde e o estabelecimento da sua comissão coordenadora, a realização do Projecto Experimental “Educação sexual e promoção da saúde nas escolas” pelo PPES e pela APF com o apoio técnico do Ministério da Saúde (1995-1998), a publicação do “Plano de acção Inter-ministerial para a educação sexual e planeamento familiar” (Outubro de 1998) a inclusão parcial da educação sexual nos documentos orientadores do ensino básico a elaboração e posterior publicação em 2000 do documento “Linhas Orientadoras de Educação Sexual em Meio Escolar” (1998-2000) a celebração do protocolo com a APF em Outubro de 2000 e com o MDV e a FFCS em Dezembro de 2003 o envolvimento activo da CCPES na promoção da educação sexual no âmbito da educação para a saúde, sobretudo nos anos lectivos de 2000/2001 e 2001/2002.
Para além destes progressos, e segundo dados da Associação para o Planeamento Familiar, foi ministrada formação em educação sexual a centenas ou mesmo milhares de professores quer pelas estruturas centrais do ME, sobretudo o DEB (Departamento de Ensino Básico) e a CCPES, quer pelos centros acreditados para a formação contínua de professores, entre os quais a APF, quer nos cursos de formação inicial de professores e na formação pós graduada promovida por algumas universidades e escolas superiores de educação.
No entanto, e em sentido inverso a estas dinâmicas, em 2002/2003 iniciou-se um processo de desmantelamento da CCPES e o Estado pareceu preferir delegar nas ONG uma obrigação que lhe cabia fundamentalmente, demitindo-se de ter uma política activa nesta área. Mesmo assim, não foi posto em causa o quadro legal existente, nem foram produzidos novos documentos legais ou quaisquer orientações curriculares nestas matérias.
No entanto, apesar de todas estas iniciativas e de todo este esforço institucional, continua a falar-se muito pouco de educação sexual nas aulas. Valha-nos o Teatro e valham-nos estes criativos algarvios que, no seu esforço de ampararem os adolescentes, amparam também os seus formadores.

Serviço educativo do Teatro das Figuras: Uma verdadeira educação de públicos

O Serviço educativo do Teatro das Figuras continua a apostar na programação de qualidade para os sectores da Infância e Juventude. Esse investimento essencial na formação e educação de públicos trouxe-nos em Julho o produzido pelo VATE (Vamos Apanhar o Teatro) “O Livro em Branco”, uma história maravilhosa, inserida no livro de Jorge Bucay Contos para Pensar, sobre a capacidade de se retirar prazer da vida.
Encenado por Patrícia Amaral, este conto com prováveis raízes sul-americanas, normalmente conhecido como “O Procurador”, é interpretado por Déborah Benveniste, que ajuda o espectador a mergulhar na magia dos objectos.
Déborah Benveniste é uma manipuladora de objectos exímia. Das suas mãos os candeeiros, os lençóis, os objectos mais inusitados ganham vida e transformam-se em personagens. O espectáculo, que começa com os pés da actriz, vai ganhando corpo e forma através de toda a corporalidade investida na encenação. O corpo transforma-se na própria dramaturgia, portadora da mensagem principal para as crianças.
Como é que um conto para crianças pode começar num cemitério? Depende da genialidade do argumento e da capacidade de o pôr em cena. Neste caso houve um casamento feliz entre a história do Livro em Branco, o conhecimento profundo no trabalho pedagógico com crianças de Patrícia Amaral e o saber fazer de Déborah Benveniste. Esta confluência de saberes transformou uma simples arca com alguns objecto escondidos num dos espectáculos mais conseguidos para o público infantil. As crianças vibram e percebem que na vida temos de assinalar e guardar os momentos de prazer intenso para que nos possamos despedir da nossa existência com a sensação de dever cumprido e o reconhecimento dos demais. Um cemitério onde aparentemente só tinham morrido crianças era, afinal, o último cofre dos momentos de prazer intenso.
Para além de uma mensagem positiva da vida este espectáculo motiva, não propriamente à leitura, mas à escrita. A uma escrita que ultrapassa o simples diário. Uma escrita que implica escolhas, preparando as crianças para aquilo que irá ser determinante na sua vida: as suas opções. Quais os momentos de toda a minha vida que irei seleccionar para ficarem registados? Os que me deram intenso prazer. Então vamos fazer por encher um livro inteiro de coisas boas para que depois, no fim, se lembrem de nós com saudade e admiração. E nos consigam agradecer por isso.
Esta primeira encenação de Patrícia Amaral para o VATE mostra uma sensibilidade diferente, que resultou em pleno com as crianças, e que se espera seja a linha de continuidade para os próximos projectos com os mais novos. Através deste espectáculo pode ver-se como com uma boa encenação, uma boa actriz e meia dúzia de adereços se consegue construir todo um imaginário que fica presente na memória das crianças. E a urgência com que ficam, depois do espectáculo, de comprar um livro em branco para construírem a sua própria história foi bem a prova de que esta produção está no caminho certo. A não perder no autocarro do sonho, para crianças de todas as idades.

Dois homens, um coração


Algumas das culturas mais ancestrais e recônditas tinham uma forma sui generis de lidar com os seus velhos. O abandono era quase sempre a solução escolhida, fosse qual fosse o pretexto mais ou menos bem intencionado que estivesse por detrás. Se para os esquimós o abandono aos ursos polares fazia parte integrante do ciclo de vida, alimentando a ideia do espírito que regressa sob a forma de alimento, outras há em que o pretexto para o abandono dos velhos é simplesmente o seu direito ao descanso. A nossa sociedade ocidental, regida por valores humanistas não abandona os velhos; cria instituições onde estes podem conviver e ser acarinhados por pessoas que estão preparadas para lidar com os seus males. Mas, como de boas intenções está o inferno cheio, sabemos que a realidade é bem diferente e os valores humanistas esvaziam-se de sentido quando as instituições da terceira idade se transformam no monte do repouso documentado no belíssimo filme de Shohei Imamura A Balada de Narayama.
O texto de Lutz Hübner O Coração de um Pugilista recebeu o prémio para o melhor espectáculo juvenil em 1998. A partir da tradução de Vera San Payo de Lemos Paulo Moreira fez uma dramaturgia adequada ao universo português e deu ao espectáculo uma dimensão mais abrangente designando-o por O Coração de um Homem. A encenação de Paulo Moreira assenta no trabalho dos actores mas também na simbologia do espaço e na envolvência musical. Há uma preocupação por parte do encenador em seguir uma sequência lógica de apontamentos musicais que vão marcando a evolução das duas personagens. Ao princípio ouvimos um rap urbano, indicando a predominância da personagem mais jovem, Jojó, interpretada por João Jonas, que se vai transformando ao longo do desenvolvimento do espectáculo. No fim, não é casual o regresso aos anos 70 com o tema de Simon e Garfunkel Old Friends.
A cenografia, assinada também por Tó Quintas, dá à partida ao espectador uma dimensão muito clara do jogo dramático que vai acontecer. A cena é marcada visualmente por uma estrutura em ferro. Na boca de cena, que marca a quarta parede simbolizando uma grade de segurança que guarda os casos de internamento considerados perigosos. Por detrás da barreira de segurança está um homem de meia idade, interpretado por Afonso Dias, com uma postura de abandono no meio do seu lúgubre e tosco mobiliário. Está vestido de forma digna e apresentável, sem os recorrentes pijamas habituais nos ocupantes dos chamados “lares de terceira idade”. Esta visão sde solidão é cortada pela entrada do actor mais jovem, um marginal a cumprir uma pena de serviço comunitário por roubo de um mota. O jovem, Jojó fala. Tem necessidade de falar, de comunicar com alguém e vai dizendo o que lhe vai na alma. Mesmo que o outro não lhe responda. Aquela cela tem o efeito de um confessionário psicanalítico, no qual o jovem, medindo os efeitos das suas palavras nas reacções do velho, altera o discurso e muda de direcção. Fala da sua falta de integração, da sua inocência perdida, da rapariga dos seus sonhos. O homem mais velho escuta e, como bom analista, não diz nada. Por vezes pigarreia mas mantém-se atento a todo o discurso. Até que há um momento em que a colisão é inevitável. Jojó irado, colérico com as injustiças dos colegas e o velho, com aquela sapiência de quem controla o Tempo ampara-o e começa a interacção mais verbal. Leo, assim se chama o velho, diz-lhe que Jojó tem carácter. Essa é a pedra de toque para que a relação comece a funcionar. Dá-lhe alguns conselhos sobre como o jovem se deve defender dos seus agressores. É nesse momento que Jojó descobre que Leo foi um pugilista famoso. Um pugilista de coração grande, pois não gostava de magoar os adversários. E os conselhos partiram da defesa perante o agressor para o ataque pelo objecto de desejo. Leo dá ao rapaz algumas regras básicas para conquistar o coração de uma mulher. Conselhos que Jojó a princípio rejeita mas que aos poucos vai aplicando. A relação adensa-se, incluindo planos de fuga para uma vida onde a esperança consegue ter lugar. O final, surpreendente, abre as portas da esperança, não só aos protagonistas do espectáculo como a todos os espectadores.
A adaptação dramatúrgica de Paulo Moreira, com referências à Guerra Colonial e a códigos decifráveis num universo lisboeta contribui para a aproximação do espectador a uma realidade que também lhe pertence.
Quanto às interpretações, é de destacar a contracena que evidencia as tensões na altura certa. João Jonas mostra muito bem a mudança de atitude ao longo do espectáculo: o seu coração vai abrindo e, de puto com todos os tiques que a marginalidade impõe, vai mostrando o homem generoso que esconde. Afonso Dias é o grande protagonista desta história. Desde os silêncios, as pausas, até à relação de camaradagem quase paternal que tem com Jojó, tudo é estudado ao pormenor. E tudo é feito no tempo certo. Sem exageros, sem o andar alquebrado que muitas vezes se vê nas personagens dos velhos, com a dignidade de um grande actor. Mesmo quando mostrou a personagem alterada por drogas calmantes, a postura não foi excessiva, exibindo o descontrole da fala na medida exacta.
Com este espectáculo verifica-se, uma vez mais, a linha inovadora que vem marcando a diferença nos espectáculos da ACTA. Paulo Moreira consegue transformar um texto medíocre num bom espectáculo. Neste caso, soube retirar de um bom texto os elementos essenciais para com ele construir um excelente espectáculo. A não perder, certamente.

Trabalhando a solidão dos homens


Figueira Cid encenou o texto Regarde les femmes passer, de Yves Reynaud. O espectáculo daí resultante, Mulheres que passam, mostra o bom teatro que é possível fazer com poucos recursos mas com muito talento.
O olhar curioso sobre o espectáculo Mulheres que passam, de Yves Reynaud, com encenação de Figueira Cid, pelo grupo de teatro A bruxa, de Évora, começa quando nos entregam o bonito programa à entrada. Um programa pleno de bom gosto, com uma imagem de João Cutileiro na capa e a informação adequada para o espectador se ir ambientando à temática do espectáculo: a solidão de um homem e a dificuldade de encontrar alguém com quem possa viver, não por uma noite, mas para a vida.
O espaço cénico está imerso nos opostos branco e preto. O chão, os móveis, revestem-se todos de um xadrez geométrico e constante.
O espectáculo começa com a personagem principal a abrir o guarda-fatos, de onde surge. Fuma um cigarro enquanto descreve a sua vida banal de homem solitário. O efeito da luz cénica, acompanhando a variação de intensidade da luz do cigarro é muito bonito. O homem, Paul, interpretado pelo actor Celino Penderlico, sai do seu uterino esconderijo. Um esconderijo de si próprio, onde se sente protegido, sem ter de se expor perante o outro. O homem sai do seu guarda-fatos e depara-se consigo próprio, frente ao espelho. Escreve uma carta aos pais, informando-os da sua intenção de encontrar uma mulher com quem partilhar a vida. Os seus gestos quotidianos indicam a ansiedade de quem parte para a conquista de uma mulher: escolhe roupa, muda de roupa, engoma a roupa, sai de casa, volta a casa, veste o casaco, despe o casaco, arranja o cabelo, faz planos. O seu mobiliário reduz-se a uns bancos geométricos que se transformam em caixinhas de surpresas que se abrem mostrando os objectos do quotidiano, necessários a uma vida moderna. A tábua de engomar, o fogão, a cama, ao princípio ocultados, desocultam-se à medida que a personagem deles vai precisando, permanecendo em evidência mesmo de pois de terem sido utilizados. À medida que a ansiedade vai aumentando e a depressão vai tomando conta de Paul, o seu quotidiano vai-se tornando caótico.
A contracenar com o actor está a música, sempre presente no violino de Ângela Fortes. Os sons retirados do violino intensificam as emoções que o homem solitário vai desenvolvendo ao longo da sua busca. Há uma ambiência criada pela música de inspiração francesa que evoca a procura do romance e da sedução. No entanto, a abordagem que este homem faz às mulheres, assusta-as, pondo-as em fuga à primeira fala menos adequada. Paul observa os pombos no seu ritual de acasalamento e quer reproduzir todo aquele comportamento para o universo humano. Desajeitado, não consegue fazer devidamente a corte às mulheres que lhe parecem interessantes, sendo progressivamente rejeitado por todas elas.
A tensão adensa-se e Paul acaba por comemorar o seu trigésimo segundo aniversário sozinho. As mulheres não gostam sequer que Paul se aproxime das suas conversas, que gostariam de manter no seu íntimo. Paul começa a ter um comportamento disfuncional face à realidade. É incapaz de se levantar para ir trabalhar, é incapaz de encarar as pessoas felizes na rua, é incapaz se de ver a si próprio como um ser humano integrado. Falta-lhe o complemento. É despedido e começa a completa degradação da sua pessoa.
O peixe que guarda num aquário e que nada no seu espaço limitado começa também a sufocar pela falta inesperada do seu elemento vital, a água. Quase no último arquejo, Paul recolhe o peixe e devolve-o à vida. Foi um adiamento do inevitável. Depois de desempregado, fica ainda mais difícil encontrar uma companheira que o queira para partilhar os seus dias. Brinca com uma boneca insuflável mas aquilo que Paul procura é o carinho, o companheirismo que uma mulher lhe poderia dar. O desemprego vai implicar o corte de bens necessários como a luz. Paul ilumina-se à luz de velas e já nem se alimenta convenientemente. Tem medo de sair à rua, vivendo obcecado com o enfrentar de pessoas normais e enquadradas socialmente.
A pressão é demasiada e Paul decide reencontra-se com os outros de uma maneira trágica, atirando-se da sua janela, perdendo de vez o ânimo que o alimentava. No fim, as pernas de uma mulher passam na janela de Paul. Metáfora da sensualidade libertadora que conduziu Paul para fora de si próprio.
Mulheres que Passam é um espectáculo que toca o público. Um desenho de luz apuradíssimo, também da autoria de Figueira Cid, um suporte musical intenso que cria no espectador a empatia necessária para a compreensão do estado de alma da personagem, um actor que sabe transmitir verdade e a assinatura de Figueira Cid na encenação tornaram este espectáculo num momento de raro prazer para quem teve a possibilidade de a ele assistir. Um dos poucos momentos de intenso prazer estético encontrado nos últimos tempos. Só uma questão de pormenor: foi preciso deslocarmo-nos a Évora para podermos ter acesso a esta obra. Mas no fim de contas, o que são duas horas quando nos espera um momento de raro prazer executado por profissionais de excelência? Nada.

D. Giovanni em Faro


A personagem de Don Juan, na qual está baseada a ópera Don Giovanni de Mozart, foi apresentada ao mundo em 1630 através da obra El Burlador de Sevilla do monge e dramaturgo espanhol Tirso de Molina. Uma peça bem escrita mas que nunca foi considerada importante durante a vida de Molina. A personagem de Don Juan, contudo, fascinou a Europa por séculos vindouros, aparecendo em milhares de peças, histórias, poemas épicos, óperas, e investigações filosóficas sob diversos nomes — entre eles Soren Kierkegaard. Aspectos muito significativos do universo simbólico de Soren Kierkegaard são analisados em função de determinadas figuras da misoginia romântica: na sua reelaboração kierkgaardiana, os mitos de D. Juan e Abraão aparecem como variantes de um mesmo esquema ideológico, caracterizado por três estádios. O primeiro era o estético e caracterizava-se pela busca da diversidade, cuja personagem arquetípica é o sedutor insaciável Dom Juan. Mas um ponto, diz Kierkegaard, será comum no caráter dos estéticos: “o desejo”. Este desejo poderia passar pela satisfação sentimental, material, entre outros, mas em última instância, o desejo erótico.
Em Itália, a história foi adoptada pela Commedia dell’arte, exibindo máscaras e muitas piadas burlescas, enfatizando as proezas sexuais de Don Juan. O sedutor italiano transformou-se num homem egocêntrico, controlado pelos seus apetites vorazes e implacável na conquista dos seus prazeres sexuais. Preguiçoso, obcecado com a beleza, desvalorizando qualquer coisa que não fosse o seu prazer pessoal, Don Juan é uma personagem da era do vazio. Eliminou a transcendência da sua vida e ridiculariza qualquer sentimento religioso. A sua obsessão pelas mulheres advém da sua permanência no estádio estético kierkegaardeano. Da Ponte, em 1787, apropriou-se de todas as narrações de Don Juan que precederam seu libreto, desde Molina e Molière à commedia dell’arte, acrescentando pormenores da sua lavra, como a ambígua personagem de Donna Anna.
No ensaio geral que a produção destinou aos jornalistas pôde apreciar-se a que encenação da ópera D. Giovanni, assinada por Paulo Matos, teve alguns pormenores interessantes, embora por vezes o arrojo ultrapassasse os limites da compreensão de um público menos atento. O plano inclinado sobre o qual os cantores evoluíam era uma boa solução cénica, pois dava ao espectador a ideia de desequilíbrio, patente na personagem de D. Giovanni, interpretada por Nicola Ebau. Desequilíbrio porque em constante busca, não da beleza ideal, mas da variedade, vangloriando-se do elevado número de conquistas. A cor inicial púrpura também era indiciadora de uma trama que implicaria sofrimento. No entanto, a pantalha, quando não se debatia com problemas técnicos, apresentava imagens dentro do universo kitch, como a sucessão de olhares na descrição das mulheres feita por Leporello, defendido por João Merino a D. Elvira, interpretada magistralmente por Ana Ester Neves, ou as duas luas na romântica cena da varanda, para reforçar o engano a que a sonhadora dama abandonada estava a ser sujeita.
Mas para quê uma pantalha luminosa quando esta não vai para além do clássico telão setecentista?
Da encenação arrojada de Paulo Matos, pelo menos na sessão a que a imprensa teve direito, o que causou mais perturbação foi o jogo de luz entre o plano inclinado e o chão do teatro, cujos focos estavam apontados directamente para o olhar do espectador. Mesmo as alterações de humor apontadas dramaturgicamente não justificam esse incómodo luminoso. Teria sido este, um dos inovadores “elementos de irreverência” a que Paulo Matos se referiu entusiasticamente quando referiu “Um desses elementos [de irreverência] é o jogo de luzes e a sua interacção com o som, quase revolucionário graças a um inovador programa informático?” Pelo menos, a legendagem estava discreta e andava a par das falas dos cantores.
Relativamente ao trabalho das personagens, o jogo entre os cantores estava conseguido na sua generalidade, principalmente na dupla Giovanni/Leporello. De resto, D. Giovanni fazia inteira justiça a qualquer imagem do leviano sedutor. No entanto, o jogo da sensualidade estava muito contido, mostrando um pudor que esta obra não pede e uma encenação contemporânea não justifica. Houve apenas um beijo convincente, ocorrido entre dois figurantes. Mesmo as imagens das mulheres a verde-alface e cor-de-rosa choque no écran luminoso só mostravam olhares e rostos, o que era uma visão muito subtil e romântica daquilo que D. Juan verdadeiramente buscava. No entanto, a alusão à contemporaneidade quando Leporello fala na agenda electrónica, referindo-se ao livro onde anotava os nomes das amantes do seu amo, é inteligente e bem conseguida.
A cenografia concebida por Tó Quintas tinha soluções interessantes, como a varanda basculante que oscilava ao ritmo da emoção de D. Elvira, sobre os dois homens e sob as duas luas. Menos conseguido pareceu o desenrolar de uma tira de pano simbolizando a cortina do quarto da criada, debaixo da varanda de Elvira. O recurso ao puzzle quando o chão se abre e arrasta D. Giovanni para o inferno pelo pecado da sua obstinação está muito bem achado, conseguindo o efeito de um “grand final”.
Os cantores, principalmente os oito solistas, estiveram magníficos na sua interpretação, acompanhando a orquestra num todo harmónico que emocionou. Quando ouvimos a voz do Commendatore, interpretado por David Ruela, percebemos como será a voz da maldição que acaba por arrastar D. Giovanni para o castigo exigido pela sua morte.
Dos figurinos assinados por Esmeralda Bisnoca seria melhor nem falar, pois quando se fala de ousadia não se fala de desleixo, que foi o que aconteceu com o que nos foi dado ver no ensaio de imprensa, destinado a captar imagens na ópera na sua versão final. Um horror a que os cantores não deveriam ser sujeitos. Podemos perguntar-nos porque razão D. Anna, interpretada por Sandra Medeiros, enverga um traje vermelho durante toda a ópera, que a desfavorece, quando está de luto pelo pai. Espera um ano antes de casar com o seu amado, porque está de luto mas entretanto usa vermelho? Podemos perguntar-nos porque razão D. Elvira aparece com uma saia comprida e uma camisa de ganga por cima. O abandono é visível, mas não joga de forma coerente com a dramaturgia cénica dos outros intérpretes. Podemos perguntar-nos também por que razão os fatos das meninas que foram ao casamento de Zerlina / Sara Braga Simões, parecem reciclados de uma arca com vestidos abandonados. E que dizer das cabeleiras das “três graças” convidadas para a orgia de D. Giovanni? Como as raparigas não se sentiam bem com as avantajadas cabeleiras deixaram cair no esquecimento a sensualidade pedida para aquela cena. E poderíamos continuar até à última personagem. A única personagem vestida com um figurino coerente com a encenação era a de D. Giovanni. De resto era uma agressão tão grande à sensibilidade cénica que apetecia fechar os olhos para usufruir em pleno da música de Mozart. Uma encenação arrojada merecia figurinos à altura e pior que aquilo que se viu no Teatro das Figuras é difícil imaginar.
Quanto à música, é interessante notar que, embora advindo de uma história que se tornou muito popular, o tratamento musical que Mozart dá à ópera é extremamente elaborado.Na cena da festa, Mozart concebe uma composição onde, de um lado, os camponeses dançam ao som de um conjunto musical (músicos da orquestra que se deslocam para o palco, vestidos com trajes compatíveis, normalmente ambientada no Século XVIII), enquanto os demais convivas, nobres, dançam um minueto, ao som do restante da orquestra. Duas melodias que se complementam em todos os instantes. A graça e a perfeita sintonia em que ambas as "festas" evoluem e se desenvolvem é um dos muitos toques de genialidade deste compositor brilhante para essa genial ópera. Osvaldo Ferreira recriou de forma igualmente genial essa sintonia de diferentes com a inclusão da bateria que marcava o contratempo na cena do baile.
Mas uma pergunta fica no ar: será que de facto D. Giovanni é mesmo o anti herói? E a essência do humano não se realizará também no estádio estético? Qual o sentido do castigo de D. Giovanni? Teria por ter sido não só um déspota com as mulheres mas também com Leporello, simbolizando a eterna dialéctica do senhor e do escravo? Não será por acaso que Saramago absolve a figura de D. Giovanni. Para este escritor, o mítico sedutor “é o homem que, no final da ópera de Mozart, por uma questão de dignidade, se recusa a aceitar a possibilidade de salvar a alma pela cómoda e tantas vezes hipócrita via de um arrependimento de última hora”.
Ultrapassando a necessária e urgente mudança de figurinos, D. Giovanni é um trabalho que dignifica o Algarve. A ver ou a rever na digressão anunciada pela Região.

A arte do mastro num solo de jazz



Dois homens. Um mastro chinês e música. Fazer um espectáculo a partir destes elementos pode não ser difícil. Fazer um espectáculo que toque em diversas dimensões do ser humano, já precisa de ter como condimento alguma genialidade. Foi isto que aconteceu no dia 5 de Novembro, no Teatro Municipal de Faro. João Paulo Pereira dos Santos, formado pelo Centre National dês Arts du Cirque, teve um encontro ditoso como o músico Guillaume Dutrieux. Desse encontro nasceu uma proposta de linguagens alternativas que deu origem a um espectáculo, Peut-être, baseado nas técnicas circences mas que, em vez de nos fazer pensar no sentido decadente do velho circo, nos abre os horizontes para um cruzamento entre o possível e o impossível. Tudo na vida é um Peut-être, até termos a vontade de arriscar. O músico, de patins, abre-nos a atenção para a instabilidade do plano horizontal, que calcorreamos quotidianamente sem pensar. O jovem artista circence mostra-nos uma relação com o mastro japonês de tal forma que somos levados a pensar que a estabilidade perdida no plano horizontal é reencontrada no plano vertical. É fácil trepar, andar pelo mastro, fazendo parecer a Pipi das Meias Altas uma invenção bacoca e absurda. Com momentos poético, em que se ouve um contrabaixo ou um trompete deitado à luz de um candeeiro de rua, este espectáculo brinca também com a imagem duplicada numa tela onde se projectam reproduções gravadas em vídeo. João Paulo Pereira dos Santos brinca com o seu duplo como Peter Pan brincava com a sua sombra. Matéria / Anti-matéria, o par que em física se anula mas que no palco se completam, deixando mesmo no espectador uma sensação de ambivalência e estranheza ao procurar qual é o real e qual é o virtual. O próprio artista do mastro se chega a sentir desalentado ao ver a sua imagem virtual realizar as suas próprias proezas. Desafio que ele agarra, lutando contra a sua própria projecção, vencendo a tela e assumindo-se como o único rei e senhor do mastro. A música também dialoga ora sob o formato acústico ora digital, deixando ao músico espaço de manobra para interagir com o artista do mastro de uma forma muito mais livre. Quarenta e cinco minutos de ilusões de óptica e de som, que contribuíram para uma reescrita da nossa lógica cartesiana. Afinal são os sentidos que nos estarão a enganar ou será a própria razão?

Companhia 111 descreveu o infinito


Depois do volume e do plano, este espectáculo que completa a trilogia do espaço explora a linha. Uma linha, ou utilizando uma linguagem matematicamente correcta, uma recta, insere-se num intervalo que inclui todos os pontos que se estendem de menos infinito a mais infinito. O que a Companhia 111 pretendeu com este espectáculo foi explorar os limites desse símbolo do humano: a linha contém em si algo de humano, uma vez que a vemos como algo de poderoso e frágil ao mesmo tempo. E de facto, o espectáculo inicia-se com um extraordinário bailado de varas no espaço, manipuladas como se fossem marionetas, com uma grande precisão geométrica que nos recorda um caleidoscópio de formas que nos oferecem ao olhar mudanças dentro de um esquema geométrico muito preciso, seguindo aquilo que Schlemmer chamou, a propósito do jogo caleidoscópico, “a festa dos olhos”.
A ideia original de Arélien Bory tomou corpo através da encenação de Phil Soltanoff. A partir da apresentação destas linhas, semi-rectas, surge a figura humana igualmente fragmentada. Deslizando ao longo de linhas no chão, surgem mão, braços, cabeças, corpos, à procura da sua completude. E neste momento começamos a ver uma técnica corpora extremamente trabalhada, posta ao serviço de um conceito. Neste caso, o conceito de linha, dentro do espaço.
As linhas são exploradas ao máximo e servem de pretexto para o jogo teatral, para a dança, para o cinema, para os jogos de computador. O ser humano torna-se ele próprio linha assumido tanto a verticalidade, como a horizontalidade apoiando-se no mastro vertical, construindo outras figuras geométricas. As linhas permitem que a figura humana dance com elas, que contracenem com elas, que brinquem com elas. As linhas ameaçam, encurralam, mas ao mesmo tempo libertam. Não só os mastros, gigantes ou pequenos que se apresentaram no palco, mas a própria verticalidade sustentada pela coluna vertebral. Não é por acaso que uma pessoa de princípios é referida como uma pessoa com coluna vertebral, que não se verga nem quebra a linha. O próprio pensamento é amiúde descrito como uma linha, perseguindo um fio condutor, talvez porque a tridimensionalidade que nos enforma condicione a nossa maneira de olhar para o mundo. Neste espectáculo Aurélien Bory redimensiona o nosso olhar para um olhar inicial, puro e matemático, dando corpo ao conceito de cronologia, de velocidade, regressando ao conceito pitagórico da realidade ser efectivamente expressa por números e estruturas geométricas, não só a um nível metafórico, mas na sua essência.
Afastando-se do universo matemático de Flatland de Abbot, no qual a linha representava o elemento feminino desprezado pela comunidade machista dos sólidos geométricos Plus ou moins l’infinit redirecciona-nos o olhar para a beleza de um mundo orquestrado a partir de duas linguagens universais: a matemática e a arte. Mais uma vez redescobrimos o conceito de Novo Circo. Um conceito que rompe com o s números que se sucedem e nos quais há uma procura da técnica apurada que nos surpreende para um novo conceito que propões aos artistas servirem-se de diversas linguagem e técnicas, submetando-as a um conceito. Neste caso foi o conceito de espaço, com Aurélia Thierrèe, no seu Oratório, foi o conceito de transgressão das leis da física e a exploração do absurdo. Num país como a França, que desde a década de oitenta apoia o Novo Circo, tendo inclusivamente uma escola superior que forma jovens nesta visão global do espectáculo, é previsível que surjam espectáculos desta natureza, que nos conduzem o olhar para o belo através de artistas que surpreendem pelo seu desafio constante às leis da gravidade. Como Portugal tem tido um atraso de cerca de 30 anos relativamente ao resto da Europa talvez agora se possa vislumbrar a esperança de um investimento sério do poder político nesta área.
Este espectáculo contou com a participação de Olivier Alenda, Aurélien Bory, Pierre Cartonnet, Julien Cassier, Aurélius Lorenzi, e Sodadeth San em cima do palco. Atrás do palco houve uma imensa equipa de técnicos que permitiram o desenvolvimento do espectáculo, como Tristan Baudoin, Stéphane Ley, Frédéric Stoll e Arno Veyrat. A música foi concebida por três criadores: Olivier Alenda, Julien Cassier e o própiro encenador Phil Soltanoff. A par da luz, desenhada por Arno Veyrat, contribuíram para a construção de ambiências muito especiais e fazer deste espectáculo um delírio para os sentidos.