Wednesday, December 12, 2007

Teatro do Ferro - Uma viagem ao nosso interior profundo

Sexta-feira foi o nome de um espectáculo apresentado no Teatro das Figuras pelo grupo Teatro do Ferro, sob a encenação de Igor Gandra. O grande público poderia ter pensado: mais um texto sobre a história do náufrago Robinson Crusoé, que encontra o selvagem ao qual baptiza com o nome do dia da semana encontrado. Mas a partir desta história o Teatro do Ferro convidou o público a fazer uma viagem ao seu interior profundo através de um universo simbólico. O espectáculo foi concebido a partir de uma instalação de Fernanda Fragateiro e de um workshop, ocorrido em Maio passado no Solar do Capitão-Mor, com pessoas de Faro. Nesse workshop encontraram-se pessoas com diferentes experiências e de diversas idades, o que abriu as portas ao ecletismo observado ao nível da evolução do espectáculo final.
O espectáculo começa no exterior do Teatro das Figuras. Os quatro actores aproveitaram o alpendre sobre a fachada principal e reconstruíram a viagem de barco de Crusoé. O público foi convidado a colocar uns auscultadores através dos quais ouvia os sons a ele inerentes. Ao princípio era a música empolgante. Os quatro actores, de cima da plataforma do teatro, mostravam o orgulho dos conquistadores dos mares através de uma coreografia que remeteu de imediato para os símbolos que iriam ser utilizados no espectáculo. Marchando como marinheiros, os actores serviram-se de sacos de plástico brancos, com os quais mostravam pequenos utensílios domésticos que iriam ser fundamentais para a sobrevivência na ilha, como a luneta, a pá, o caldeirão ou o martelo. Depois deste início algo surpreendente o público foi convidado a deslocar-se até à sala de espectáculo, no interior do Teatro das Figuras. A sala tinha-se transformado num imenso espaço onírico, criado pela vasta névoa que nascia do palco. O espaço de representação acolheu os espectadores, que se sentaram numa pequena plataforma ao longo da boca de cena, próximos dos destroços do navio naufragado na ilha. A ilha era constituída por enormes construções em madeira, fruto do empenho de Crusoé ao longo das duas décadas de sobrevivência na ilha. Os espectadores iam ouvindo o texto através dos auscultadores, misturado com as sonoridades fortes da música original. O cenário, construído quase exclusivamente por paletes de madeira, contribuía para a ideia de prisão, da qual partilham muitos ilhéus. A disposição das paletes e o desenho de luz contribuíram para a construção de uma narrativa simbólica, através da qual o espectador poderia viajar através das suas próprias prisões. Os actores seguiam o ritmo forte da música, evoluindo dentro do cenário de grandes dimensões, subindo às árvores, acima de rochedos, de escarpas, permanecendo no areal. Tudo isso lhes foi dado ver através da movimentação coreográfica dos actores e com a ajuda do texto que ia sendo interiorizado através dos auscultadores. Como adereços de cena os actores serviram-se de sacos de plástico brancos. Esses adereços transformavam-se, através de uma linguagem corporal forte e da utilização correcta do adereço, naquilo que se queria ver. Desde pequenos animais até pequenos utensílios domésticos, até à imagem simbólica do sufoco de quem está numa prisão insular e não antevê uma hipótese de se libertar. O desenho de luz, belíssimo, oferece ao público a visão de uma selva através da qual o sol penetra por entre as folhagens. Feita a inserção do público no universo de Crusoé, é convidado mais uma vez a seguir os actores até um espaço por detrás do palco, onde está um pequeno biombo, no qual estão a ser projectadas cenas do filme Sexta-Feira, Vida Selvagem. Esse é o local do encontro entre os dois seres humanos. O receio mútuo, a fuga da tribo dos canibais, o espírito colonizador de Robinson e a capacidade de entrega de Sexta-feira, o ser que começou a partilhar o universo insular do náufrago. A dificuldade de comunicação é exposta através do corpo e da exibição do alfabeto da língua gestual. Sem formar palavras, só através da ostentação do alfabeto, como primeiro passo para a abstracção simbólica de uma comunicação verbal. Robinson é salvo e regressa ao velho mundo. Assim os quatro actores são resgatados por motards, nas traseiras do teatro, após o fim infeliz de sexta-feira. Acenam e partem à boleia dos motociclos, regressando ao seu mundo. O público também regressa ao mundo de Robinson e encontra o universo simbólico repleto de sacos brancos. Os sacos brancos invadiram as lianas, as pequenas casas de madeira, e colaram-se também aos próprios espectadores. A invasão do espaço virgem pelo plástico pode ser a metáfora de uma invasão do homem que está aos poucos a destruir a sua própria essência. Os espectadores partiram com o legado do náufrago nos seus pulsos, assim como à Terra está a ser imposto o legado do Homem contemporâneo.
O isolamento do homem perante os outros e perante o mundo é sustentado simbolicamente através dos auscultadores, que o isolam, mantendo o espectador a assistir a um espectáculo sozinho, no meio de muitos. Outros, iguais, mas mantendo a distância perante si próprios e perante o mundo. Um isolamento de um mundo de plástico, matéria ela própria isolante, que corta a ligação à Natureza e à Terra-Mãe. No fundo, um isolamento perante si próprio.
Sexta-feira é um espectáculo que, mobilizando o grande público, convida a uma reflexão profunda sobre o universo interior do próprio Homem. Náufragos de nós próprios, os actores mostraram que a insularidade é um estado de espírito que pode assaltar qualquer um de nós. Os figurinos neutros evidenciam a figura humana, abrindo o olhar também para a diferença de género, não se circunscrevendo a dramaturgia à figura do homem. As actrizes apresentam um figurino marcadamente feminino dentro da neutralidade, expondo o microcosmos da humanidade, composto pelo masculino e pelo feminino.

A Caverna abre-se ao mundo das sombras


A alegoria da Caverna assume-se como um texto eterno, imagem vezes sem conta recontada, que nos mostra a visão platónica da ascensão ao conhecimento e à visão face a face de um mundo sem filtros, verdadeiro. De Saramago a Matriz, inúmeros foram os criadores que partiram deste texto para a construção da sua própria alegoria de uma realidade que tenta ser mas que apenas parece. A eterna dicotomia entre os dos planos platónicos: o ser e o parecer. A verdade e a ilusão. O Mundo das Ideias e o Mundo das Sombras.
Alfredo Gomes pegou na Alegoria da Caverna pelo lado da condição humana. A alegoria do ser humano, prisioneiro de si próprio, retratado em Sísifo, condenado ao pior dos castigos: trabalhar sem um objectivo. Em Platão, e numa leitura mais imediata, o mito centra-se na conformidade com a realidade existencial e com a assunção de uma realidade aparente, mesmo depois de se saber que esta realidade é uma mentira. Alfredo Gomes trabalhou com os seus alunos esta problemática convidando o público a reflectir sobre a dimensão da mentira ao nível da linguagem e ao nível ontológico. Muito interessante o diálogo de Cocteau mantido pelos quatro prisioneiros, recorrendo à técnica da máscara. A assunção da máscara que se mantém, apesar de se ter tentado tirar está, de facto, engenhosa.
A realidade do faz de conta que se vive ao nível dos gabinetes institucionais, semelhante a um universo kafkiano, revela-se sob a parede opaca que protege os directores-gerais ineptos deste mundo. Mas há quem não se conforme com as respostas administrativas e lute por procurar um mudo onde a realidade se imponha sem as eficientes secretárias que nunca facilitam o acesso ao director-geral, sem falsos vendedores que não falam do perigo do endividamento, sem as ilusões dos centros comerciais, que apenas protelam por um momento a ilusão de felicidade. Há os que insistem em varrer as folhas de diante da porta de casa, mantendo-a limpa, sem outros ornamentos que não ela própria. Os que insistem em manter a sua integridade, apesar de saberem que irá ser uma luta desigual, e os que preferem manter-se nos carreiros de formigas, trabalhando como Sísifo, porque o seu objectivo se reduz a uma ilusão: consumir aos fins-de-semana nos centros comerciais, construídos, justamente, segundo Saramago, sobre as fundações da Caverna de Platão. Apenas faltaram os fatos de treino verdes e roxos de Lobo Antunes, com a subsequente troca inusitada de esposas e proles.
Mas este não é apenas um trabalho sobre a ilusão consumista do homem contemporâneo. É um trabalho feito por adolescentes, para adolescentes, com a coordenação de um professor e que nos fala sobre a capacidade de ultrapassarmos os nossos limites. Limites ao nível da capacidade de sonhar, impostos pelo conformismo. Limites impostos pelas moscas que lavam as mãos, como Pilatos, e que se enxotam constantemente. Ultrapassar o limite de nossa capacidade de acreditarmos em nós próprios e pensarmos que podemos construir um mundo melhor, sem termos de estar a varrer constantemente as folhas da nossa ilusão. Limites ao nível da nossa capacidade de transmitir ao outro mensagens que só conseguem passar através da arte.
Este trabalho da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes abre o olhar ao espectador para os vários níveis ontológicos da teoria platónica do conhecimento. O nível mais básico, das sombras, no qual os serem se querem manter, apesar de saberem que aquela realidade é uma ilusão. O nível seguinte, de alguém que já se libertou da sombra, mas que ainda não consegue despertar completamente para uma realidade sem artifícios. A realidade da varredora que teima em afastar o supérfluo mas que ainda não se dispôs a procurar sair da sua realidade sombria. O terceiro nível de conhecimento revela aquele que já é capaz de olhar para os próprios objectos. Esse homem é capaz de se ver a si próprio como arauto da boa nova, anunciando os males de que padece o mundo, pondo os dedos nas feridas, mas ainda não é aquele que é capaz de olhar para a verdadeira fonte da verdade: o bem. Na realidade, esse é o nível mais complicado de se ultrapassar, uma vez que o homem que o alcançou pensa frequentemente que já é detentor do saber que lhe permite olhar para a realidade sem os filtros da ficção. Mas para se chegar ao quarto nível, propósito possível de alcançar para Platão, é necessário assumir a dor física da perda da ilusão. Recordemo-nos do sofrimento físico de Neo, em Matrix, quando vira as costas à ilusão do seu mundo de faz de conta e assume a realidade sem adereços do mundo real. Uma dor insuportável que o espectador experimenta metaforicamente quando é confrontado directamente com a luz do fundo da Caverna. Uma dor a que se junta a incompreensão dos outros, que se sentem confortáveis na obscuridade da prisão. A dor do esclarecimento e da clarividência é tanto menos suportável quanto maior forem as trevas que reinam sobre o seu mundo. Com textos de Alberto Pimenta, Fernando Pessoa, Gil Vicente, Gonçalo M. Tavares, Jean Cocteau, Jerry Seinfeld, Platão e Spiro Scimone, utilizando como suporte musical compositores como Bernardo Sassetti, Shostakovitch, Philip Glass ou Luciano Berio, a Alegoria da Caverna ou a Problemática de Uma Fotocópia Mal Tirada é um espectáculo que intervém directamente na educação de públicos. Pelos autores e compositores de que se serve, desconhecidos para a maior parte do público adolescente, pela temática que utiliza e pelo génio que desenvolve nos seus actores. Um desenho de luz que brinca com a obscuridade e a sombra e consegue dar ao espectáculo a dimensão onírica que se pretende. A defender este espectáculo estiveram Carolina Tempera, Laura Sena, Levi Nascimento, Mafalda Saraiva, Mariana Catarino, Mariana Pereira, Patrícia Jorge, Pedro Roma, Ricardo Correia, Susana Veloso, Teresa Colaço e Vanessa Santos. A direcção esteve a cargo de Alfredo Gomes e Nídia dos Santos. Mas a grande questão do texto permanece: como decifrar uma fotocópia mal tirada? Podemos dizer que o evento Outonos do Teatro, de Portimão, abriu com chave de ouro. Assim os outros espectáculos possam contribuir igualmente para a educação do público e para a edificação do Homem.

Um texto coreografado


Évora foi palco da 5ª edição dos Encontros de Teatro Ibérico: um evento anual que se inscreveu já no calendário teatral do Inverno eborense, mas cuja dimensão cultural ultrapassa largamente os limites sócio-geográficos da urbe alentejana. De facto, os Encontros de Teatro Ibérico, nascidos em Évora em 2003 (a partir de uma iniciativa conjunta que se mantém entre o Cendrev e o IITM – Instituto Internacional del Teatro del Mediteráneo), são os únicos do seu género na península, ao reunirem espectáculos teatrais dos dois países, realizados com dramaturgia portuguesa e/ou espanhola de criação recente, constituindo um lugar de encontro e de intercâmbio entre as realidades artísticas dos dois países vizinhos, no que à criação teatral e dramatúrgica diz respeito.
Este ano uma das prestações mais interessantes do encontro deveu-se ao grupo Escola de Mulheres, que trabalhou o texto de Teresa Rita Lopes Coisas de Mulheres… e de Homens! Uma peça composta por vários monodiálogos, como Teresa Rita Lopes os define. Reconstruções de momentos um dia qualquer que nasce carregado de projectos que percorrem uma lógica do absurdo e que conduzem normalmente ao desastre ou a novos rumos para a vida. Encenado por Marta Lapa, o espectáculo adoptou o curioso nome Imagina que descalcei o sapato e agora não o consigo enfiar. Esta encenação teve a virtude de mostrar um texto coreografado, interpretado por Isabel Ribas, Marina Albuquerque e Meredith Kitchen. Num espaço de arena as três actrizes jogam as personagens umas com as outras com uma frescura e uma vivaciade pouco usuais. De facto, Teresa Rita Lopes apresenta-se como uma autora próxima, contemporânea, que se presta a uma criação coreográfica de textos que falam do quotidiano. A peça faz a reconstrução de momentos de um dia que nasce carregado de projectos que percorrem uma lógica do absurdo e que conduzem normalmente ao desastre ou a novos rumos para a vida. Da ansiedade no dia do casamento, da descoberta dos primeiros cabelos brancos, da necessidade da hipocondria, da decepção motivada por umas lentes de contacto, dos desgostos amorosos que acabam a ser cantados em ritmo de samba. O espectáculo foi suportado pela música original de João Lucas e pelo desenho de luz de Manuela Jorge.
Surpreendente e arrojado, este espectáculo conseguiu ultrapassar a monótona visão portuguesa e mostrar as coisas de cada um de nós, como o amor, o desamor, as desilusões da vida, de um modo interessante e novo.

Cabaret de Ofélia - Uma viagem de múltiplos sentidos


O encontro com a obra de Armando Nascimento Rosa é sempre uma surpresa, pela ousadia com que este autor trabalha os intocáveis mitos do imaginário cultural europeu. Desde os mitos clássicos, como Um Édipo, ou A Última Lição de Hipátia, passando pelo universo judaico-cristão em Maria de Magdala até se centrar no cerne do imaginário português, como no texto O Eunuco de Inês de Castro, ou ainda, Audição – Com Daisy ao vivo no Odre Marítimo, Armando Nascimento Rosa vai desfiando o rosário do outro lado dos textos e da vida, como se fosse o feliz neófito capaz de viajar para além do conteúdo manifesto. Dotado de uma invulgar capacidade de análise e ousadia Armando Nascimento Rosa aprofunda o visível e resgata personagens votadas ao esquecimento, como Ofélia Queiroz, a eterna namorada de Pessoa, ou a poetisa modernista Judith Teixeira. Encenado por Cláudio Hochman, Cabaret de Ofélia reúne personagens singulares como Daisy, assumida como uma artista transformista que criou nome em terras de Vera Cruz como “uma lenda viva da poesia e do music-hall”, como Cecília, a filha adoptiva de Daisy como a esquecida poetisa Judith Teixeira, ou ainda como Mary Burns que Armando Nascimento Rosa reconstitui com a personagem principal de Labareda, a peça desaparecida de Judith. Daisy, por si só, é uma personagem complexa na Dramaturgia de Nascimento Rosa. Como ele próprio afirma no seu estudo Judith Teixeira em Cabaré de Ofélia: O resgate cénico de uma voz dionisíaca “Em Audição, a figura de Daisy Mason Waterfields (este segundo apelido aquático é baptismo meu) era a cicerone xamânica, transexual e hermafrodítica, recriada a partir da figura de enigma nomeada em Soneto já Antigo, e a quem a persona de Álvaro de Campos dedica o poema.” Daisy parte para o Brasil onde encontra uma menina de rua, que perfilha, e que é evocada num poema de Pessoa que, segundo Armando Nascimento Rosa, “confessava a certa altura ter uma afilhada orfã, chamada Cecily, arrancada também ela a Soneto já Antigo”. A partir dessa informação o autor cria todo um enredo de encontro que resgata Cécily das ruas e a apresenta como co-cicerone de Daisy, a sua mãe adoptiva. Juntas contam a história de Judith Teixeira, recriando um trecho de Labareda, o seu texto desaparecido. Bonita e merecida homenagem de Nascimento Rosa a essa poetisa futurista da geração de Orpheu.
O espectáculo, apresentado no salão nobre do Teatro Garcia de Resende, começa com a entrada dos músicos. Excelente formação, composta por um baterista, um contrabaixista e um pianista, (Ulf Ding, João Bastos e Luis Cardoso) que vão acompanhando ao vivo a evolução do Cabaret. A entrada encenada dos músicos, na qual trocam de posições, é já uma antevisão dos cruzamentos que o espectáculo irá sofrer. Os figurinos de Sara Machado da Graça dão ao espectador uma noção de transgressão, necessária para o posterior acompanhamento do espectáculo. Ofélia Queiroz, interpretada por Rosário Gonzaga, assumindo a vetusta idade, entra em cena e junta-se ao público do café teatro. A actriz Catarina Matos assume no espectáculo as suas mágoas quanto à sua condição de mulata, amiúde rejeitada em vários castings. Conta como encontrou Ofélia, não a de Hamlet mas a eterna namorada de Pessoa, e como esta lhe passou a caixa de recordações de Cecília, a menina adoptada por Daisy. O espectáculo, sustentado por um texto inteligente, mostra uma Daisy transformista, interpretada magistralmente por Hugo Sovelas, que, deslizando nos imensos saltos altos, é capaz de divertir e emocionar a assistência. É comovente a cena do encontro de Daisy com Cecília, a partir da qual as duas se tornam inseparáveis, mostrando um olhar maternal, capaz de albergar qualquer menina perdida.
Rosário Gonzaga é uma Judith Teixeira exímia, mostrando o lado dorido de uma poetisa sofrida. A dor partilhada da queima dos livros, protagonizada pela censura, é sentida pelos espectadores através do olhar perturbado da poetisa. Comovente como Rosário Gonzaga consegue mostrar tod o desespero de um autor a quem estão a queimar a obra: Com o seu olhar perturbado recita: “Cheira a carne queimada. A carne de pessoas que foram queimadas vivas na praça. O cheiro é insuportável, é o cheiro da asfixia. Sou uma das que ardeu neste auto-de-fé. Não, não foram só papéis que arderam, foram membros, foram troncos. Foram seios, foram corpos de amantes reduzidos a carvão... Pois se são imorais os meus poemas e falam de vícios da carne abomináveis, então esses mancebos de raça pura que os queimaram lançaram também ao fogo o corpo de quem os escreveu. E com o meu corpo arderam corpos e lugares celebrados nos meus versos e nos versos dos meus parceiros de blasfémia.” Judith Teixeira foi queimada viva na fogueira com os seus livros. Mas, como nos diz Nascimento Rosa, “E quem sabe as luzes do palco incidirão sobre ela com mais intensidade do que as breves linhas que alguns dicionários de literatura hoje lhe consagram? (…) Cabaré de Ofélia tematiza teatralmente esta rasura, procedendo a um resgate de Judith, bem como do que o seu olvido representa, através do poder da cena, para a qual não hesitei em imaginar-lhe os versos que ela teria proferido na praça onde lhe queimaram os livros.”, a personagem de Judith Teixeira sucumbe a um cancro com a mágoa de ter visto os seus escritos destruídos na pira da censura. A trágica história de Mary Burns, a negra albina violentamente assassinada, é recriada por Catarina Matos e Rosário Gonzaga. Fazendo ainda justiça à poetisa maldita, o espectáculo termina com um soneto da sua autoria musicado e cantado por Daisy e Cecília.
Como o autor disse, “Cabaré de Ofélia é antes de mais um experimento em fuga à convergência dramatúrgica num clímax definido que cumula a progressão dramática, próprio da tradição aristotélica. Parodicamente consciente da interpretação falocêntrica que esse singular clímax pode acarretar, esta peça substitui-o, no seu mosaico de sucessão e justaposição cabaréticas, dramáticas e cómicas, numa proliferação de clímaxes, como metáfora dos orgasmos múltiplos que só ao corpo da mulher é dado fruir. Imagino que esta metáfora erótica, projectada em drama, teria por certo agradado à sensualista Judith Teixeira, e por isso estou em crer que o seu fantasma teatral gostará de habitar a partitura virtual que concebi, para acolher a censurada Judith, nesta arte da memória viva tornada espectáculo a que chamamos teatro.”

Começar com Beckett


No centenário da morte de Samuel Beckett o Teatro do Bolhão levou à cena o texto inédito em Portugal Começar a Acabar .Um texto deprimente sobre a velhice e o abandono, para o qual, paradoxalmente, Beckett pediu o máximo de gargalhadas. Este pedido insólito tem a ver com a máxima beckettiana segundo a qual, “não há nada no mundo mais cómico do que a infelicidade”. A felicidade é ordeira aborrecida. Beckett, influenciado por Shoppenhauer, denuncia de forma implacável a condição humana. Beckett ri-se do nosso ser miserável, recuperando o sentido de tragédia, a partir do qual une a visão apolínea com o sentido dionisíaco risível. Assumindo esta visão dualista da vida, imerso num profundo pessimismo, o percurso do humano acaba quase sempre no desejo de morte.
João Lagarto desenvolve o sentido dionisíaco do texto e contagiou o público com o absurdo da existência da personagem que interpretou. Neste espectáculo o público é apanhado de surpresa no início e fica suspenso no texto até ao fim. Porque o texto de Beckett é forte e humano e porque a personagem é desconcertantemente bela. Um velho mendigo com roupas velhas e gastas a falar do pouco tempo que lhe resta para sobreviver. O monólogo, Beginning to End" (Começar a Acabar) que estreou pela primeira vez em Paris em 1970, é a junção de três narrativas do escritor: Molloy, Malone está a Morrer e O Inominável, e tem como tema principal a inevitabilidade da morte. Na estreia foi interpretado por Jack Macgowran, amigo e compatriota de Beckett, mas, depois da morte daquele actor, três anos depois, nunca mais foi representada. A versão portuguesa, que coube ao teatro do Bolhão, contou com duas canções originais de Jorge Palma, ambas com poemas de Beckett, que foram interpretadas em palco por João Lagarto. As palavras sucederam-se sofridas e contundentes, numa personagem que se baba e mostra a sua decrepitude, iluminado por três lâmpadas, símbolo de uma vida que se vai lentamente apagando. De resto, o desenho de luz de José Carlos Gomes ilustra de forma notável essa decrepitude no corpo e na alma
Aos momentos em que lembra histórias banais, como a descrição hilariante de como se pode chupar 16 seixos diferentes, colocando 4 em cada bolso, sem nunca repetir seixo algum, seguem-se pausas de introspecção profunda em que o homem prestes a morrer se queixa da vida, da falta de amor e da solidão. Uma interpretação notável. Um espectáculo que irá ficar na nossa memória.

Wednesday, November 14, 2007

Um, Dois e... Humor inteligente!


Ainda bem que há programadores que investem em espectáculos de humor que não se reduzem à piada fácil, à graçola com conotações brejeiras ou ao palavrão. Filipe Crawford há muito tempo que tem vindo a mostrar que o humor inteligente existe e o Teatro Lethes tem-no recebido amiúde. Produções como As Andorinhas Ingénuas, de Roland Dubillard As Desventuras de Isabella, o Santo Jogral Francisco, ou Arlequim Servidor de Dois Amos, de Goldoni, sempre com encenações de Filipe Crawford, apresentadas no emblemático teatro de Faro, mostram bem que o binómio divertida e inteligente é possível.
No passado dia 8 de Novembro Filipe Crawford e Rui Paulo apresentaram o espectáculo Monstros Sagrados, baseado nas obras de Roland Dubillard Les Diaboliques e Les Nouveaux Diablogues. É nestas obras, retiradas de sketchs escritos para teatro radiofónico e para café-teatro que o autor cria personagens como o Um e o Dois. Estas personagens vão dialogando ao longo de oito pequenas histórias com diálogos acerca de cenas do dia-a-dia mas que relatam situações absurdas, que todos nós, de quando em vez, vamos vivendo.
Vestidos com um fato escuro de executivo, apresentam pormenores divergentes da sobriedade dominante, como as gravatas, as meias e os suspensórios, todos adereços de cor vermelhos. O desequilíbrio, o pequeno pormenor absurdo no meio de uma vida regrada. Munidos de uma verdadeira cumplicidade cénica Filipe Crawford e Rui Paulo divertem porque retratam os absurdos inerentes ao nosso tempo, como os mitos urbanos. A primeira história, o Papa-Roscas, é o paradigma das crenças contadas pelas avós e que permanecem no nosso imaginário até à idade adulta. O Velho do Saco, o Papão, o Pai do Céu a ralhar com os homens nas noites de tempestade, são exemplos do que o Papa-Roscas representa. Nessa primeira cena o Um e o Dois vão às escuras ao último patamar do prédio para descobrirem o Papa-Roscas. O pássaro mítico de que a avó do Um falava quando lhe contava histórias. Nunca o encontrou mas todos os dias permanece na sua busca, regimentando companheiros para tão inusitada aventura. Conta a história do avô, que viu um papa-rosquinhas no seu berçário, ou seja, no frigorífico, e relata o canto de despedida que esse ser mítico profere antes de morrer. Divertido e poético o Papa-Roscas devolve-nos às memórias do aconchego das histórias da infância e do sonho. A mudança de cena, protagonizada por Guilherme Noronha faz-se iluminada por um desenho projectado no ciclorama identificando a próxima história. Guilherme Noronha assume-se como um “homem sombra”, funcionando como aquele que está lá mas que apenas se adivinha a presença. A segunda história, o suicídio, fala do Jorge, o amigo com o qual nunca se pode contar. Nem um suicídio conseguiu fazer de forma decente, pois falhou a sua intenção. E um amigo não pode destruir assim a confiança dos seus comparças! Esta história, ao contrário dos amigos se congratularem pelo seu companheiro ainda estar vivo, mostra de forma absurda o desencanto que ambos tiveram ao saberem da tentativa falhada do amigo. A mudança de cena foi feita também com ligeireza, mostrando um Guilherme Noronha solto. A dançar enquanto mudava os cubos pretos, a cenografia de base do espectáculo. A noção inadequada do palco do teatro Lethes poderia ter tido um desfecho grave, mas Guilherme Noronha deu a volta por cima à inusitada queda.
A terceira história, apesar de engraçada e absurda retirou o sorriso a alguns espectadores. Talvez não hajam temas tabu na comédia. Mas quando a memória de cerca de 30 anos ainda permanece viva é talvez doloroso estar a assistir a uma história cómica sobre alguém que está a ser torturado. Pode ser por causa de uma esferográfica, pode ser com um ralador de queijo, mas continua a ser um quadro arrepiante de tortura a que o autor não soube dar a volta de modo a ficar suficientemente absurdo para nos rirmos dele. Por isso foi um alívio quando esse quadro acabou e os actores se encontram perdidos no mar. Os três actores simulando dois passageiros num barco formam uma composição forte que suporta imageticamente a comédia do texto. Os outros textos têm como referência o mar e no final do espectáculo os actores apresentam a sua Vitória. A vitória sobre o vício de fumador, sobre a qual se fala entusiasticamente enquanto se fuma um cigarro. Essa é mais uma metáfora dos tempos que correm, uma vez que as personagens da vida ostentam discursivamente as suas pequenas vitórias enquanto a sua prática as esmaga, mostrando exactamente o contrário.
O espectáculo antecipa o final com um falso final, no qual Guilherme Noronha sai da sombra e percorre os quadros nos quais ele era o amigo com o qual nunca se podia contar. Um pouco precipitado e extemporâneo, este final quebrou o ritmo que o espectáculo teve naturalmente, suportado pela cumplicidade desses dois grandes actores que são Filipe Crawford e Rui Paulo, pela música de Quim Tó, pelas ilustrações de Filipe Abranches, pelo desenho de luz de Nuno Gomes e pela assistência de encenação de Guilherme Noronha. Mas, independentemente das opções mais sombrias, o que estes actores ofereceram ao público de Faro foram as delícias de um humor inteligente servido no talento de dois actores.

Thursday, November 1, 2007

O poder da flor


O serviço educativo do Palácio da Galeria de Tavira propôs ao grupo teatro Al-MaSRAH a concepção de um espectáculo que reflectisse a preocupação que deve nascer nos algarvios sobre o perigo da extinção da Tuberaria Major. Essa flor, originária do Algarve, é única no mundo. Desabrocha com os primeiros raios de sol e dura entre seis a oito horas. Espécie que atinge aproximadamente 40 cm, com toiça lenhosa, ramificada. As folhas são contraídas em pecíolo, porém as nervuras não são anastemosadas. As brácteas são largamente ovadas, obtusas. As flores, amarelas com máculas escuras na base, têm de 30 a 50 mm de diâmetro. É um endemismo lusitânico, que ocorre pontualmente no sotavento algarvio, nas clareiras de matos xerofílicos, em pinhais abertos.
Os actores Pedro Ramos, Susana Nunes, Nuno Faísca e Rita Alves brindaram o público que acorreu ao Palácio da Galeria, em Tavira, com um espectáculo diferente. Orgânico, assente na emoção, os quatro actores convidaram o público a fazer um percurso pelas salas do Palácio da Galeria, mostrando exposição de Roberto Santandreu que prende numa imagem eterna a efemeridade da pequena flor.
Há um percurso de emoções, começando com a euforia e a vivacidade típica da infância. Os actores assumem uma postura de criança traquina que nos convida para partilhar das suas brincadeiras. Vestidos com tons de amarelo, como as pétalas da flor, os actores convidam-nos a brincar com o desabrochar da flor. O público segue os actores e vai ter a uma sala onde se ouve o poema de Almada Negreiros sobre a flor desenhada por uma criança. As brincadeiras e a inocência das crianças estão patentes nas acções dos actores. E nós acreditamos que é mesmo com aquelas linhas, com aquelas brincadeiras, que Deus desenhou uma flor.
Na passagem para a sala seguinte seguimos os actores, que nos mostram uma actriz debaixo de um lençol. Como num casulo, a actriz vai-se desocultando, mostrando-se sensual e bela, como a Tuberaria aos primeiros raios da manhã. A sala seguinte mostra-nos o desabrochar da juventude com os quatro actores a ocuparem o espaço de uma maneira aparentemente caótica, de quem quer viver ao máximo o pouco tempo que lhe resta. Os actores correm, saltam, escondem-se debaixo dos bancos, atrás do público, como se estivessem em permanente delírio. O delírio segue para outra sala, onde vemos o simbolismo da flor em todo o seu esplendor. Uma faixa de cetim amarelo que se ergue do chão até ao tecto e que mostra ao espectador a exuberância da flor. E voltamos à sala onde a actriz-flor se nos revela em toda a sua sensualidade e beleza. O auge da floração. Essa exuberância passa para outra sala, onde se pode ler “Tudo é efémero”. Aí assiste-se ao desregramento total, contaminado pelo frémito dionisíaco. O público dispõe-se à volta de uma mesa, repleta de copos, nos quais os actores servem champanhe e convidam o público a partilhar da euforia. A música tem uma forte batida e as luzes são psicadélicas. O strauber fragmenta as imagens dos corpos em delírio e o público partilha a dança com os actores. A dança termina e o público regressa à sala onde a actriz desabrochou de dentro do lençol. Vemo-la a voltar para o casulo, mostrando o fim de um ciclo que se anunciou breve. Efémero. Será? De regresso à sala onde se entra em contacto com a palavra, ouvimos a voz dizer que a flor só é bela porque é efémera, como a estação do ano, anunciando um novo ciclo. Os actores convidam então o público a segui-los, presenciando a sua dificuldade de locomoção. No final despedem-se oferecendo ao público o programa do espectáculo amarelo, dobrado fazendo lembrar uma flor, e sementes, para não deixar morrer o sonho.
As sementes são o potencial que se pode actualizar, se o Homem quiser. O público saiu com dezenas de Tuberaria Major em potência no bolso. Resta agora à sua consciência e à sua vontade a capacidade para transformar a potência em acto, modificando as consciências de forma a evitar a sua extinção.
Um espectáculo que contém, também ele, a essência da flor, porque é efémero. E, tal como a flor, tal como as paixões, só é belo porque é efémero. E, paradoxalmente, é isso que o torna eterno.

Stabat Mater - Uma dolorosa beleza




Stabat Mater ("Estava a mãe") corresponde às duas primeiras palavras do hino Mariano, a partir de um poema medieval, que descreve a angústia da Virgem Maria durante a crucificação. Um hino litúrgico que celebra as dores da Mãe de Cristo no calvário quando este sofria o processo de morte.
Este acto de contemplação do sofrimento de Maria inspirou António Tarantino, artista e escritor italiano, escreveu uma Stabat Mater, encenada por Jorge Silva Melo. A relação do hino mariano com a contemporaneidade assenta na contemplação do sofrimento e das mortes alheias, seja nas ruas seja nos pardieiros, seja nas prisões. Esta Mãe Dolorosa é a história de Maria, ex-prostituta, vivendo de expedientes, mãe solteira, plena de uma raiva explosiva contra a sociedade, à procura do filho desaparecido. O texto é um longo monólogo, onde a partir da linguagem de rua dos bairros sociais, destaca-se a hipocrisia, as linhas cruzadas da vida, as entranhas de uma dor que não salva, e da história que apenas se mostra circular, sem evoluir para uma espiral que aprende a contornar os erros do passado. STABAT MATER é a primeira peça de uma tetralogia de António Tarantino, do qual fazem também parte Paixão Segundo João, Vésperas da Virgem Santíssima e Brilharetes, que lhe valeu o mais alto e prestigioso reconhecimento dramatúrgico para a escrita teatral italiana - Prémio Riccione. Foi revelado em Portugal em 2004 com a leitura encenada de A Casa de Ramallah e, em 2005, com a estreia de Paixão Segundo João. Neste texto descobrimos vários cruzamentos, tanto da esfera privada como do plano da política nacional e internacional. Para além de ser uma crítica à hipocrisia social que fecha os olhos à prostituição e envia para o convento meninas abusadas pelos pais, põe o dedo na ferida das instituições que consideram uma bênção para os pobres e os despojados as pensões de sobrevivência e o apoio que um estado de direito tem obrigação de dar aos que mais precisam. Aponta o dedo, com a crueldade imposta, aos serviços sociais que olham com desprezo os indivíduos que apoiam. É muito significativa a imagem do ambientador que se espalha no ar após a visita de um desses enteados da vida. Para que não permaneça a memória da miséria nas consciências confortáveis dos serviços sociais.
Maria sobreviveu sozinha sacrificando-se por um filho que tinha o pior dos males para um pobre: a inteligência. Porque quem é inteligente aspira a uma vida melhor, tanto para si, como para os outros. Quem é inteligente não olha se resigna com a miséria moral que descobre em seu redor. Quem é inteligente torna-se politicamente activo, mesmo que esse acto lhe possa trazer a prisão e a morte. Maria, sem saber, contribuiu para a crucificação do seu filho, porque lhe deu uma educação que lhe permitiu esclarecer-se e pensar que podia lutar por um mundo melhor. Deu-lhe a ideia de liberdade, pela qual se deixou “crucificar” para salvar a humanidade.
Maria sentia-se limpa. Mais limpa do que a mulher do homem que se servia dela e a engravidou. Mais limpa que toda a fauna que vagueava pelas ruas, ao seu redor. Sentia-se limpa porque tudo aquilo que fez, fê-lo com um propósito nobre: criar o seu filho e afastá-lo, tanto quanto possível dos caminhos mais perigosos e vulneráveis, como a homossexualidade, a prostituição, a pederastia, o roubo, a marginalidade. Não foi capaz de o afastar da poesia nem da capacidade de sonhar, perigos bem reais que poder levar um ser humano à perdição.
A encenação de Jorge Silva Melo assentou na figura da actriz. Através da sua encenação Maria João Luís soube transmitir alguma dignidade dentro da miséria moral inquietante em que a sua personagem esbraceja. A sua interpretação foi dolorosamente bela, como a composição do poema mariano. A cenografia, depurada, limita-se a quatro bancos corridos com genuflexório, uns caixotes com roupa e um painel rectangular de cor vermelha que domina a cena. O vermelho, arquétipo do sangue, do sofrimento, do erotismo, encontra reflexo no discurso de Maria: despudorado, repetitivo, mas apaixonado e expressivo. O palavrão faz parte do seu ser rude, assim como a capacidade de implorar pela salvação do seu filho faz parte do seu ser abnegado. O banco da igreja metamorfoseia-se num banco de rua ou num banco de tribunal. O banco corrido, colectivo, institucional, onde Maria passa horas à espera: das preces, dos subsídios, da justiça, do pai do seu filho. A dolorosa mãe, no banco do calvário da justiça, chorando antecipadamente as lágrimas pelo seu filho desaparecido. António Tarantino também nos convida a fazer uma reflexão acerca do flagelo do aborto clandestino, que Maria se recusou a fazer. Recusando-se a dar-lhe a paternidade ao filho, o homem que a engravidou olha com condescendência e uma ligeireza perturbadora a intervenção feita com agulhas de croché, a custos divididos, que o libertaria de qualquer responsabilidade.
Maria João Luís vai passando todos esses contrastes, todas aquelas confusões de sentimentos através do poder da sua interpretação. Com um poder de transfiguração em palco notável, a actriz faz com que qualquer espectador se apiede da sua história, no sentido do estar-com, num sentido do ser-com-o-outro verdadeiramente heideggeriano. E esse sentido existe porque nos revemos na sua história extremamente humana de despojamento e entrega. Como Jorge Silva Melo disse em declarações à imprensa nacional: "Não havia outra actriz em Portugal para fazer isto. É um texto brutal, obsceno, sobre uma mulher que insulta o Mundo inteiro, mas que, afinal, traduz uma enorme procura de amor. É uma forma de dizer 'eu existo, olhem para mim’ é uma peça para ver com compaixão". E nós acrescentamos, através do poema que inspirou esta obra: “Faz, ó Mãe, fonte de amor! / Que eu sinta o espinho da dor, / Para contigo chorar.

Sunday, October 14, 2007

Criadores com direito a programadores


Nos dias que correm, em que os limites e as fronteiras entre as artes se esbatem, perguntamos amiúde: será que ainda haverá alguma coisa de original para apresentar? Será que ainda haverá coisas por explorar dentro das Artes Performativas? E por mais que o nosso pessimismo nos impele a dizer que não, a capacidade criativa do ser humano não pára de nos surpreender. Essa capacidade criativa está bem patente nos trabalhos que têm vindo a ser criados ao nível da dança contemporânea, na qual os criadores se servem de múltiplos suportes para expressar novas linguagem ao nível do corpo e da relação com o eu, o outro, o mundo, os objectos do quotidiano.
A Associação cultural DeVIR, como único representante nacional da IDEE e membro associado desta rede europeia, trouxe ao teatro das Figuras, perante uma galeria de programadores internacionais durante dois dias, nove trabalhos de criadores portugueses, representativos de uma geração de coreógrafos emergentes.
O programa foi diversificado e rico, dando conta do leque imenso que abrange a criação em Portugal. A Plataforma teve início com um trabalho de Sara Vaz, bailarina formada pelo Conservatório Nacional de Lisboa. Este criadora concebeu o seu primeiro solo, Odete, Odile, em 2006. Esta criação parte do bailado O Lago dos Cisnes como pretexto para a transgressão de um universo clássico, redescobrindo o outro lado do sentido maniqueísta do cisne branco e do cisne preto. Sara Vaz começa o espectáculo com a assunção do trabalho dos pés, elevados a categoria estética e destacados num écran, à medida que estão a ser filmados em tempo real. Os pés, como base de sustentação do corpo, afirmam-se como paradigma do movimento nas inúmeras colocações que se modificam à medida que o corpo adopta novas posturas.
Dos pés Sara Vaz passa para a assunção dos dedos e brinca. Regressando ao imaginário das crianças, reconstrói uma história coreografada nas pontas dos dedos. Com muito humor a sentido crítico, os dedos, mostrados em écran gigante, dançam ao som dos compassos imortalizados de Tchaikovski os passos que nos habituámos a ver no Lago dos Cisnes. O corpo é finalmente libertado e a bailarina revisita os passos básicos da dança clássica, enriquecendo-os com o peso do corpo, brincando com o eixo gravitacional que, ao invés de se elevar, a puxa em direcção ao solo. A bóia pode ser uma solução recorrente na caracterização do Lago dos Cisnes mas funciona como elemento de transgressão que prepara o lado lunar do cisne.
Sara Vaz começa por explorar o universo do cisne branco, repleto de sonhos, que se elevam como num balão de hélio, mas também de dúvidas, patentes no corpo que se transforma. Um corpo que cai, que se magoa, que se prostra exausto para dele renascer o outro lado do cisne: o lado obscuro de Odile. Obscuro porque ainda é projecto de procura. Uma procura que também se eleva em hélio mas que arrisca mais na mistura que ao mesmo tempo suja a clareza do corpo e da música, mas purifica numa catarse somática.
Um universo feminino intensamente explorado, no qual a transgressão rompe o percurso clássico, abrindo um percurso autêntico de procura e descoberta assinalável.
A segunda proposta, Ícones, de Victor Hugo Pontes, assenta no conceito de imagem parada, como se de fotogramas se tratasse. A coreografia, interpretada por Joana Antunes, Ricardo Machado e Flávio Rodrigues, foi concebida tendo por base a história que se pode criar a partir da imagem visível na fotografia. Mordaz, crítica e satírica, esta proposta de Victor Hugo Pontes brinca com a ideia dos papéis assumidos socialmente e dos múltiplos papéis que as personagens sociais podem jogar. Um jogo de apropriação e troca de papéis, onde o ornamento visível deixa de ter o papel principal. Quando a personagem se despe da sua máscara social pode assumir qualquer função, pois o estatuto que lhe está inerente desapareceu. A nudez aparece neste trabalho como a depuração da categoria social, elevando a personagem a si mesma. Faltou a queda dos saltos altos da personagem feminina para que a empatia entre as três personagem funcionasse a cem por cento, pois se a depuração nos homens foi total, qual a razão da manutenção do adereço por excelência na personagem feminina? O ícone manteve-se e não deu origem a uma transfiguração total, o que foi pena.
Última chamada foi a proposta de Rafael Alvarez, que construiu um trabalho assente num imaginário masculino onde os objectos pessoais assumem o papel principal. É à volta da ideia de viagem e de percurso que toda a coreografia gira. A mudança de objectos pessoais consoante o percurso, o assumir de pequenos gestos como o beber água ou a leitura de um mapa constituem a construção de um imaginário de ser selvagem que se reconcilia consigo próprio quando está sozinho com o universo. Steinbeck está presente neste imaginário, assim como Kerouack. A fecundação da terra, a assunção da liberdade no imaginário da viagem constituem o todo interessante deste trabalho. Ter tudo no bolso e poder ser tudo o que se quiser é o passaporte para a viagem que nos abre o sonho.
A quarta proposta de dia 7 de Outubro, pré Ego Skin, foi concebida por Amélia Bentes e interpretada pela própria coreógrafa e por Ludger Lamers. Este trabalho pretende aprofundar o conceito de Ego, enquanto auto-imagem, aprofundando o sentido de corpo-pele. A concepção do vídeo de Catarina Barata está francamente bem conseguida, uma vez que nos mostra as múltiplas possibilidades de mistura e intrusão entre Um e o Outro. Complementar ao vídeo a coreografia mostra uma tentativa de moldagem da pele de Um ao Outro, sobressaindo para além de ideia de complementaridade, a ideia de equilíbrio. Nesta coreografia é nítida a noção de intersubjectividade, na medida em que Um só existe realmente se tiver no Outro a construção da sua própria imagem. Eu só existo enquanto construção gnoseológica e sensitiva do Outro, senão esvaio-me no vazio do meu próprio sentido.
O tempo de composição das figuras e a assunção do aconchego é o bastante, permitindo ao espectador a sua própria construção do equilíbrio interior. Ao som da música de Goodspeed You Black Emperor a construção conceptual tomou forma e mostrou composições de corpos em descoberta e em equilíbrio. Numa palavra, pode descrever-se este trabalho como notável.
No dia 8 de Outubro as cinco propostas dos criadores portugueses para a Plataforma de Dança tiveram lugar no Centro de Artes Performativas do Algarve (CAPa). O embate inicial foi com a proposta de Luis Guerra, Ser Humano. Com música de Rogério C. Pires e Tiago Cerqueira este trabalho propõem-se tratar o corpo como elemento poroso e permeável a todo o tipo de influências. Com uma performance admirável, Luís Guerra mostra o corpo afectado pelo sonho, pelo pesadelo, pela esperança e pelo desespero. A imagem de Luís Guerra é contrastada pela imagem de uma criança omnipresente e luminosa num suporte vídeo. Do sublime e do horrível parece ser o mote que suportou este trabalho, e que conseguiu tocar o espectador.
As propostas de João Costa, Carolina Ramos e Tânia Carvalho não trouxeram nenhuma mais valia ao universo dos criadores portugueses, uma vez que os trabalhos se mantiveram muito próximos do que se tem feito ao nível da dança contemporânea nos últimos 20 anos.
O último trabalho, O Labirinto, a Morte e o Público,da responsabilidade de João Samões, propõe-se “explorar a criação de um evento de criatividade colectiva assente numa pesquisa experimental sobre a partilha do sentimento de tragédia.”
A partir da ideia de morte desenvolveu-se a relação entre o culto dos mortos, a assunção do próprio morto no velório e o ressurgimento da esperança e da vida através das dádivas da Terra. O tempo do velório é um tempo de espera que custa a passar, em contraste com a mudança cénica operada pelo público, o depositar da flor, num gesto que poderia ser visto como de despedida ao morto evidencia-se como o regresso da esperança com o florir interior. O culto dos mortos, desde tempos imemoriais que tem como função, não apenas apaziguar os espíritos prestando-lhes homenagem, mas recordar aos vivos o seu lugar e o seu papel na Terra. Este trabalho trouxe de facto algo de novo à plataforma de criadores de dança, tendo lidado com o culto dos mortos com a naturalidade com que ele é assumido pelos diferentes povos.
A plataforma de criadores portugueses mostrou um pequeno núcleo de coreógrafos que contribuíram para afirmar, uma vez mais, a imagem de Portugal nos destinos da dança contemporânea.

Monday, September 24, 2007

Terpsicore desceu a Faro






O Teatro das Figuras vestiu-se de gala para receber mais uma festa da dança. Terpsícore foi a musa que deu o nome ao espectáculo de dia 23 de Setembro, assinalando o terceiro aniversário da Companhia de Dança do Algarve.
Se na gíria do teatro se costuma dizer que “desceu o santo” quando um actor desempenhou excepcionalmente bem a sua função, neste caso podemos dizer que a musa desceu sobre os bailarinos que dançaram no Teatro das Figuras. A Companhia de Dança do Algarve convidou mais quatro Companhias de Dança para se juntarem a esta festa: a Companhia Nacional de Bailado, a Hamburg Ballett, a Royal Swedish Ballet e o Teatro-Ópera de Saratov.
Dentro da chamada “dança para a família” o público pôde assistir a um programa extenso e eclético, onde se conseguiu entrar no mesmo espírito, dançando na diferença.
Assinalou-se uma evolução considerável nos bailarinos da Companhia de Dança do Algarve que aos poucos vai perdendo a característica de escola de dança que lhe é inerente, emancipando-se, conquistando um nível semelhante ao das grandes companhias de dança da Europa. A par da frescura e da alegria mostrada pelos bailarinos da Companhia de Dança do Algarve foi estimulante assistir a números de outras companhias, cujos bailarinos já atingiram um grau de maturidade considerável. Assinalamos o Adagio do bailado Romeu e Julieta pelos bailarinos Natalia Kolosova e Danil Kurenov do Teatro-ópera de Saratov, cuja delicadeza e expressão consegue libertar o espírito e viajar para o sentido da obra emblemática de Shakespeare. Ou a prestação de Barbora Hruskova e Carlos Labiós, da Companhia Nacional de Bailado, com o Pas de Deux do bailado O Lago dos Cisnes. Ter acesso aos clássicos revisitados é sempre um ponto de partido que predispõe o espírito para a libertação da contemporaneidade. Essa libertação começou com Alexandre Fernandes, da Companhia Nacional de Bailado, que ao dançar o tema Changes in the end, de Muse, provocou desde logo uma cisão entre o clássico e o contemporânea, admitindo para a sua coreografia elementos acrobáticos e passos da “capoeira” com a marcação e a postura clássica da dança.
Numa linha mais pós-moderna tivemos a prestação da Comapnha Hamburgo Ballett, com os bailarinos Heather Jurgensen e Yaroslav Ivanenko. Uma das mais surpreendentes e sentidas prestações da noite. Ao som de Gurdjieff, a coreografia Invisible Grace, deYaroslav Ivanenko elevou-se na noite, penetrando de rompante nos espíritos desprevenidos dos espectadores.
Também do Hamburg Ballett, a coreografia Ne m’oublie pas, de Yaroslav Ivanenko dançada por Heather Jurgensen e Yaroslav Ivanenko, com música de Yann Tiersen, mostrou de forma sentida uma relação de proximidade e afastamento entre duas pessoas apaixonadas. O sentimento posto no corpo, na delicadeza do gesto, na expressão do rosto, mostravam uma coreografia de bailarinos que são também actores que representam e transmitem emoções.
Mas o ponto alto da noite foi a prestação de Marie Lindqvist e Dragos Mihalcea, da Royal Swedish Ballet, que dançaram uma coreografia de Krystof Pastor ao com das Variações de Goldber de J. S. Bach. A fusão dos corpos com a música conseguiu emocionar de uma forma que toca o sublime. Esse sentimento comum que assalta qualquer pessoa, mesmo que não seja um espectador entendido na área da dança.
O espectáculo terminou em apoteose com os bailarinos da Companhia de Dança do Algarve dançando a coreografia de Natalia Abramova Jota, com música de Minkus.
Foi uma festa bonita que ultrapassou o mero entretenimento pois apesar de ser um espectáculo constituído por fragmentos, a dança conseguiu entrar de rompante na emoção dos espectadores. Terpsícore desceu à cidade e juntou-se à festa da Companhia de Dança do Algarve.

Thursday, September 20, 2007

Hamlet Light ou o desejo de teatro

E se em vez de mostrar um texto clássico, revisitado ao longo dos séculos de mil e uma maneiras, incutíssemos no espectador o desejo de ir ao teatro? Como fazer surgir esse desejo numa sociedade na qual as pessoas em dez saídas escolhem nove delas para ir ao cinema?
Talvez tenham sido estas questões pertinentes que despoletaram a ideia deste espectáculo que foi um dos vencedores do concurso Jovens Artistas Jovens. Este concurso decorreu durante o ano de 2006, com o envolvimento de várias estruturas a nível nacional. Este projecto teve como objectivo conhecer a situação dos jovens criadores no território nacional, permitindo que os 3 trabalhos seleccionados pudessem ter o apoio das estruturas envolvidas no sentido de poderem produzir, e apresentar os respectivos espectáculos ao público.
Todo este espectáculo partiu de uma questão: “Não será preciso esquecer o teatro para gostar dele?” E é a partir desta dialéctica ontológica que se constrói o interesse deste projecto. É preciso um distanciamento, um quase esquecimento para começar a surgir em nós a necessidade, o desejo de teatro.
O projecto de Vvoitek Ziemilski, e de toda uma equipa de 14 pessoas, envolve meios áudio, vídeo e de criação multimédia que se juntam a este repto difícil de criar no espectador o desejo de teatro.
No espectáculo Vvoitek Ziemilski reclama para si o papel de narrador: por um lado vai explicando os passos que são precisos dar para se construir o filme publicitário deste espectáculo de teatro. Por outro, vai dando conta ao espectador da cena que está a ser trabalhada. Hamlet é uma peça escrita há seis séculos, que pressupõe um conhecimento da sua estrutura por parte do espectador. As cenas filmadas não são sequenciais, dando ao espectador a oportunidade de reconstruir o puzzle na sua cabeça. Os actores apresentam-se frente a uma pantalha luminosa, de cor cinzenta, completamente neutra, ao fundo do palco. Dizem como se chamam e que papéis irão desempenhar. A seguir deixam filmar os seus olhares em close-up. Na boca de cena encontra-se um écran que vai informando o espectador da montagem em tempo real do filme publicitário sobre o espectáculo. De repente, quando a acção se começa a centrar em Laertes, o espectador começa a ver a pantalha do fundo a mudar de cores e de textura. Esse é o resultado da criação em tempo real de composições que estão a ser construídas numa mesa de montagem de efeitos por Verónica Conte. Aos poucos, cena a cena, vai aparecendo no écran a cenografia adequada a cada emoção. A cenografia torna-se um elemento não de criação antecipada mas concebida no momento da representação. Na pantalha vê-se fruta a cair, fios enleados que se vão desembaraçando, linhas e números que mostram a construção de uma intriga, platas verdes, pó preto, um copo detentor de um líquido ao qual se juntou um pó estranho. Estas e muitas outras imagens vão ajudando o espectador a criar a ambiência adequada a cada fragmento da peça de Shakespeare. E como é de fragmentos que se trata, a composição estética é fundamental para a reconstrução do todo emocional. Ofélia chega junto de Hamlet para lhe devolver as cartas que este lhe havia escrito. Cartas nas quais lhe prometia amor eterno. Ofélia devolve-lhe um punhado de varas de madeira que caem no chão ruidosamente. Que melhor adereço serviria para mostrar o coração partido de uma rapariga apaixonada e o desinteresse frio e duro de um homem que tem o cérebro atribulado por uma miríade de problemas? As varas de madeiras são o símbolo perfeito para mostrarem a junção de um amor ferido e o desejo de vingança. O contorno de Ofélia é marcado no chão, com a marca do morto. A imagem do contorno fica, sem o corpo, mostrando que a nossa memória é curta e que nos esquecemos depressa dos nossos mortos.
As cenas do quarto da rainha, da relação ainda erótica entre Ofélia e Hamlet, são de uma beleza inquietante, fazendo exaltar a sensualidade de uma forma limpa e perturbante.
Todos os fragmentos foram criados com cuidado e encontram-se plenos de símbolos. A música, a cenografia, os adereços, os ângulos com que são filmados contribuem para que cada cena de per si se torne completa.
No final o resultado é surpreendente. Depois de uma pausa de dez minutos o público pôde assistir a dois filmes publicitários, realizados e montados à sua frente: um de cariz mais clássico e outro que rompe os cânones mais convencionais. Depois de ter assistido a todo o processo de criação o público é brindado com dois trailers que podem suscitar no espectador menos atento o desejo de teatro. E se em cada dez saídas, aumentar o número de uma para duas saídas com o objectivo de ir ao teatro, só por isso valeu a pena.

Monday, September 3, 2007

Dançando com a luz


A abrir Setembro, o Teatro das Figuras recebeu o Quórum Ballet. Este grupo veio apresentar o espectáculo Relações. Um mesmo conceito para duas visões coreográficas distintas.

O espectáculo Relações desenrolou-se partir do conceito que lhe dá o nome. A partir desse conceito dois coreógrafos desenharam duas coreografias distintas mas igualmente notáveis. A visão inicial marca seis corpos junto ao solo, afastados uns dos outros, dando a sensação de nudez. Eram accionados pela luz e pela música. Primeiro, como se de um nascimento se tratasse, há um sentimento de dor no agir. Depois o agir começa a ser mais fluido e passa a ser possível a interacção. Primeiro a pares, depois em grupos. Os corpos reconhecem-se e interagem de forma natural, como se todos os elementos pertencessem ao mesmo corpo. A queda das roupas e subsequente veste por parte dos bailarinos marca de alguma forma o fim da inocência e o início da formação de barreiras entre os indivíduos. Os outros fogem e há um ser que fica sozinho. Primeiro dança mas depois tem de lutar com bolas gigantes: escudos invisíveis das mascares sociais. E essas armas sociais prolongam-se para além do primeiro bailarino. Por detrás do pano, para onde os outros conseguiram fugir, os escudos sociais não deixam de actuar. Primeiro a bailarina usa-as confortavelmente mas depois as bolas gigantes viram-se contra ela, obrigando-a a movimentos esquivos, como quem se furta a uma agressão. Quando o pano é levantado os bailarinos arremessam as bolas para o público, libertando-se do peso desses grilhões que os impediam de voltar à pureza inicial.
Esta primeira coreografia de Iolanda Rodrigues foi interpretada de forma magistral por Daniel Cardoso, Elson Ferreira, Felipi Narciso, Mónica Gomes e Theresa Da Silva C. Envolvente e bela, o espectáculo não deixou os espectadores indiferentes. Para isso também contribuiu o suporte musical constituído por Aaron Funk, Susumo Yokota e Yann Tiersen. Mas o desenho de luz concebido por Carlos Arroja, que construiu com a sua iluminação um sétimo ser dançante, foi deveras surpreendente, dando ainda mais dinamismo ao espectáculo.
A segunda coreografia, concebida por Daniel Cardoso, teve também um impacto visual muito forte. A luz, de Carlos Arroja, rasgava as cortinas que delimitavam o espaço da dança. Seguindo-se à luz, os corpos dos bailarinos invadiram a cena pelas frestas de luz. A cena agora sentiu-se invadida por cor e por tintas que os bailarinos iam impregnando nas cortinas. Cada um tinha o seu ritmo, que se consubstanciava numa forma específica na tinta que ia depositando no cenário, munidos de pincéis. Círculos, traços, pontos riscos, iam aos poucos construindo uma pintura que se poderia aproximar da primeira fase do abstraccionismo de Kandinski. A cor da tela passa para o branco imaculado e puro dos figurinos dos bailarinos, concebido por Manuela Tinoco. Também nesta visão de Daniel Cardoso a tábua rasa do nascimento vai enriquecendo de sensações e dando lugar a um corpo mestiço de cor, que se mistura com outros corpos, desce à plateia, dança entre o público e regressa ao lugar de origem.
Neste trabalho as luzes também jogam um jogo intenso de relações com os actores. Aproximam-se, afastam-se, acendem, apagam, tornam-se autónomas e não simplesmente suportes artísticos. Os corpos dos bailarinos expressam-se com intensidade ao som das músicas de Kronos Quartet, Balanesco Quartet e Kodo. Todo o corpo era um manancial de energia, desde os dedos dos pés até às expressões faciais e à língua. Esta coreografia, dançada por Elson Ferreira, Felipi Narciso, Mónica Gomes e Theresa Da Silva C. reforçou o nível superior de técnica de que estes bailarinos são portadores. Um trabalho completo em que ao corpo se alia a luz, dançando as emoções das relações humanas.

Tuesday, August 28, 2007

Subamos as escadas




A Companhia de Dança Qualibó completou está a realizar uma residência artística no Centro de Artes Performativas do Algarve (CAPa). Desse processo resultou um trabalho que foi apresentado à comunidade e que irá ser agendado no próximo Festival de Dança Contemporânea Visioni di (p)Arte, a realizar no próximo mês de Outubro, em Itália.
Sabíamos que íamos assistir a um ensaio aberto. Contudo, mesmo nos ensaios abertos existe uma tensão intraduzível que só existe nos espectáculos. O espectáculo que a Companhia de Dança contemporânea Qualibó partilhou no dia 24 de Agosto no CAPa tinha como tema central a competição entre os seres humanos, utilizando como metáfora a imagem da escada.
O espectáculo Primo Sale, encenado por Lisa Masellis, começa com uma imagem de contraste. Quatro escadotes delimitam o espaço cénico. Há bailarinos que se encontram no cimo dos escadotes, outros no solo, evidenciando a diferença ao nível simbólico. A música de Adolfo La Volpe é intensa, obrigando os corpos a agir, não havendo, no entanto, uma inter acção entre os cinco bailarinos: Francesca Giglio, Giuseppe Lacerenza, Nico Masciullo, Maristella Tanzi e Marlene Vilhena. A imagem que se oferece ao público é a do egocentrismo e do culto da imagem. A rapariga que quer continuar a viver nos seus sonhos, os homens que passam uns pelos outros e nem se olham, a mulher que compra o vertido de lantejoulas e se sente contente consigo mesma, são personagens que jogam o jogo social o melhor que sabem: dissimulando, insinuando, expondo-se, actuando. Os bailarinos são portadores de uma boa técnica, que mostram com uma energia exemplar.
As escadas assumem-se como matriz simbólica da competição social. Os dançarinos sobem escadas, descem escadas, expulsam o outro e assumem o seu lugar. As escadas delimitam um campo de batalha dentro do qual os homens lutam entre si. A luta é violenta e bastante real. No fim a paz é restaurada e a própria luta é assumida como uma brincadeira de crianças. A luta assume aqui o sentido figurativo de uma gestão inadequada da relação inter pessoal. As próprias são também utilizadas para construir um cenário de treino de aptidão física, lembrando os percursos militares. Os actores, simbolizando os homens e as mulheres que assumem um treino diário para vencerem na vida mostram a execução de exercícios de uma forma repetitiva, que levam o espectador a comungar do sentimento de exaustão.
Esta coreografia joga de uma forma muito bem conseguida com o conceito de espaço. Há um fragmento em que as três bailarinas sobem para os três escadotes. Sentam-se no cimo das estruturas, alinhadas, e fazem um jogo teatral muito curioso e divertido. Há um lugar que é indesejado. As bailarinas, chegando a esse lugar, fazem tudo o que podem para se libertar dele, passando-o a outra. Finda essa libertação não se preocupam mais com quem ocupou o lugar causador de sofrimento. Mas a vivência social é cruel e as três bailarinas vão ter de partilhar o mesmo espaço de um escadote. O espaço exíguo é tranformado, através dos movimentos dos corpos, dando a ilusão de que aquele espaço é maior. É, de facto, um trabalho notável ao nível coreográfico.
Há uma cena em que os quatro bailarinos conseguem libertar os seus corpos, simulando dançar numa discoteca, enquanto que a quinta bailarina se escontra enclausurada dentro da gaiola de um escadote. Esta imagem condensa o contraste entre as psisões interiores, que muitas vezes não nos permitem sair dos nossos pequenos mundos e aqueles que voluntariamente se deixam prender em ritmos e movimentos iguais, dando a si mesmos a ilusão de se libertarem. Esta foi uma imagem muito bonita, sobretudo ao nível da conjugação dos corpos dos quatro bailarinos que iam progredindo através de movimentos fluidos. Esses movimentos contrastam com a jovem enclausurada na sua prisão interior, assim como o contraste se pode sentir através da luz. Num outro fragmento coreográfico há um jovem que se transforma em velho e que mostra, de forma muito limpa e credível, essa personagem presa na sua própria velhice. Através da escada conseguimos sentir a solidão de um homem, mesmo que aparentemente estaja rodeado de outros homens, jogando às cartas.
As escadas servem de barreira, separando os bailarinos do público. Construída essa barreira artificial o público consegue ultrapassá-la através da música, construída a partir das respirações ofegantes dos bailarinos. Conseguimos acompanhá-los e respirar com eles, o que também mostra que as barreiras interiores são muito mais profundas e fortes que as barreiras exteriores pois estas são, muitas vezes, ilusões.
Primo Sale é um trabalho assente num conceito claro e construído com rigor. O fragmento no qual assenta a visão coreográfica não destroi a ideia matricial que marca a leitura dramatúrgica, assente na competição e no jogo de cintura que muitas vezes se tem de fazer para ascender socialmente. Ou, simplesmente, quebrar as nossas próprias barreiras para conseguir viver de uma forma mais saudável.
A Companhia de Dança Contemporânea Qualibò trabalha desde 1991, tendo sido o seu primeiro trabalho a coreografia Città come spettacolo. Contudo, só em 2002 a Companhia é oficializada. Desde 2006 organiza o festival de Dança Contemporânea Visioni di (p)Arte, em Bari, Itália, que este ano se realizará entre quatro e sete de Outubro. Nesse festival o grupo envolve as escolas e tenta estimular o aparecimento, não só de jovens bailarinos, mas sobretudo de jovens coreógrafos.
Por sua vez, o grupo Qualibò assume-se como um colectivo “contaminado” por profissionais oriundos de várias áreas da dança. Na sua estrutura encontram-se bailarinos com raízes no teatrodança, new dance, improvisação, artes marciais, assumindo que a diversidade contribui para o enriquecimento de um trabalho. O que, avaliar por este trabalho, é uma visão não só válida como exemplar.

Sunday, August 19, 2007

Lisístrata, ou o que a imaginação quiser!



O quinquagésimo terceiro Festival de Teatro Clássico de Mérida voltou à cidade Património Mundial da Humanidade. Entre Julho e Agosto os amantes do teatro podem dar um pulinho à vizinha Espanha e esquecer-se de que existe uma Silly Season a inundar o Algarve. E são imensos os que querem fugir à imbecilidade que nos é imposta, pois durante o festival os bilhetes esgotam e o público adere em massa aos grandes clássicos.
Cada vez gosto mais de Espanha. Não só por ser um povo que admira e acarinha a sua própria cultura, como por combater a tendência irracional de transformar os meses de Verão, que é a altura em que as pessoas podem enfim concentrar-se mais em obras mais densas, numa estação em que não se pensa, em que o pensamento crítico fica em segundo plano. No Algarve isso verifica-se através das programações mais ligeiras, pelo encerramento para férias de alguns teatros, pela insistência da comédia em detrimento de temas mais trágicos. Por isso, chega o Verão e sente-se a necessidade de fugir para um destino onde tratam o público como uma entidade que continua a usufruir em pleno da sua razão e do seu sentido crítico.
Nem o calor da Estremadura espanhola afastou, durante cerca de um mês e meio, os milhares de pessoas que todos os anos rumam à cidade de Merida, Património Mundial da Humanidade, para se deleitaram com uma apresentação no magnífico teatro Romano. O Teatro romano, com capacidade para cerca de três mil pessoas, enche-se de quinta a domingo, nas noites de Julho e Agosto, permitindo voltar a ouvir as vozes dos clássicos.
Para engrandecer este acontecimento a organização envolve outros espaços da cidade, ligados à mística da Antiguidade Clássica, rentabilizando o evento. Assim, Mérida enche-se de instalações, espectáculos para a infância, espectáculos de dança, que oferecem ao espectador um leque variado de escolhas.
Quanto à encenação de Lisístrata, a heroína criada pelo comediógrafo Aristófanes, vale a pena explorar um pouco a recriação deste tema.
Lisístrata é um texto magnífico que exalta o poder que as mulheres detêm sobre os homens, mesmo que aparentemente sejam mais frágeis ou menos dotadas de engenho. No texto original Lisístrata, uma mulher ateniense, cansada de suportar uma guerra que se arrastava há mais de 10 anos, resolve convocar as mulheres dos países desavindo, fartas também de estarem em guerra, para pensarem numa estratégia de obrigarem os seus maridos a estabelecerem a paz. Combinam então todas, por meio de um juramento sagrado, que irão fazer greve ao sexo e que irão recusar aos seus maridos os legítimos prazeres do casamento. Os homens não aguentam tal restrição e estabelecem, por fim, a paz desejada. Este é um texto de esperança que tem sido reconstituído como um hino à paz e ao amor.
A versão de Manuel Martínez Mediero, encenada por António Corencia, recupera o nome da heroína Lisístrata mas reescreve por completo a obra, retirando-a, quer do seu contexto espacio cultural, quer do seu registo cómico, quer ainda do sentido de esperança que se vive no fim. A Lisístrata de Mediero, datada e machista, adultera por completo o sentido de igualdade que Aristófanes propõe. No contexto de Mediero, Lisístrata é retirada de Atenas e inserido num mundo mais bárbaro: Esparta. Lisístrata espartana é a rainha que apela à greve ao sexo, mas que não é muito bem aceite pelas suas conterrâneas. Mirrina, nesta versão, surge como uma traidora ao seu género e à sua classe, ambicionando mesmo o lugar de esposa do Rei de Esparta. A versão de Mediero contém várias contradições, pois Lisístrata, quando inquirida sobre a criação dos filhos, responde que não iam cair no ridículo de entregar as crianças aos pais para as criar. A paridade passa por todos os outros campos, menos pela educação das crianças. Não deixa de ser curioso que Mediero tenha colocado como fiel aliada da rainha uma prostituta, que luta pelo fim da guerra, usando as mesmas armas para que se acabasse com a guerra. Nesta guerra de mulheres, só as impuras ao nível dos valores, como se veio a revelar Mírrina, sucumbem.
A versão de Mediero assume no texto a violação e a morte de uma jovem rapariga, recuperada na encenação como o Capuchinho Vermelho, que encontra um homem velho e abjecto. Esse facto acaba por se elevar à categoria de símbolo, dando mais força à causa das mulheres, no sentido de se unirem mais e não vacilarem perante os seus desejos. O final, supreendente, mostra uma Mírrina, que em Aristófanes é uma mulher frágil, mas fiel a Lisístrata, como uma traidora da causa, seduzindo o Rei de Esparta, e prometendo-lhe os prazeres do leito, caso este matasse Lisístrata e a elegesse, a ela, Mirrima, como rainha de Esparta. E o facto é que, depois de um discurso inflamado de Lisístrata, pela liberdade como valor fundamental, não apenas de género mas da humanidade, Floripon, o Rei, mata-a, para poder, finalmente, desfrutar dos prazeres da carne com a traidora do reino, que não luta pela paz, pelo bem comum, mas pela sua causa individual. De facto, como assume o encenador António Corencia, “Do autor grego fica o título, e aquilo que serve de ponto de partida: acabar com as guerras que ensanguentam os países e atiram as mulheres para a solidão e para o abandono”.
Com um elenco que reúne trinta actores em público, entre protagonistas e figurantes, temos de dizer que a encenação não foi cuidada, assentando sobretudo na figura de Lisístrata, interpretada por Miriam Diaz-Aroca. Muitos figurantes andavam perdidos pela cena, avançando sem segurança nas cenas que implicavam movimento. O coro dos velhos tinha uns figurinos interessantes, mas a fala que deveria ser em uníssono por vezes fragmentava-se por não haver em todos os intervenientes um sentido de ritmo. Os figurinos de Lisístrata foram concebidos para acentuar a figura da actriz, não respeitando a linha clássica de vestuário. E um pormenor de muito mau gosto foi a personagem do poeta Tirteu, interpretada pelo actor Jorge Lucas, que brincava com a efemenização dos poetas, assumindo-se como homossexual de plumas cor-de-rosa.
Foi pena também não se retirar mais partido do todo do teatro, como fez, por exemplo, Bob Wilson na sua Proserpina. Esse espectáculo deu-nos, de facto, a dimensão do que pode ser a genialidade quando associada a um espaço majestoso.
Lisístrata de Manuel Martinez Mediero não é a Lisístrata de Aristófanes. E se a tendência da dramaturgia contemporânea é reescrever os clássicos, tendo a preocupação de conservar a mensagem original, não me parece decente que um dramaturgo contemporâneo usurpe o nome de uma peça de uma autor clássico para dele fazer o que muito bem quer, adulterando a mensagem original. No fundo, um texto que convidava a uma vivência de exaltação, tendo o sexo como elemento catártico, foi transformado num espectáculo que se serve do sexo como móbil da traição da mentora do espírito da liberdade.
Seja como for, vale a pena ir a Mérida, nem que seja pela discussão destes temas e pelo estímulo ao pensamento crítico. Até para o ano!

Saturday, August 18, 2007

Descobrindo a Fada Formosa


Todos os dias, a empresa de animação ANIMARIS faz dois passeios pela Ria Formosa, que pretendem ser uma autêntica lição de educação ambiental. E para além dos adultos as escolas também podem marcar uma aula diferente e dar a descobrir às crianças os segredos da fada formosa.
Batiam as onze horas na igreja da Sé quando um grupo de visitantes, quase todos estrangeiros, esperava ansiosamente pelo embarque no cais da Porta nova, em Faro, para iniciar a aventura da descoberta da Ria Formosa. Embarcámos na pequena embarcação, um catamaran de 15 metros e fomos apresentados à nossa monitora, Adelaide Fonseca, mais conhecida por Milai, que foi desocultando os pontos de interesse ao longo do passeio. Milai, contadora de histórias, aspirante a fada nos passeios em que se descobre a fada formosa, elucidou-nos sobre o ponto mais a Sul de Portugal.Continental.
Com ela ficámos a saber que o Parque Natural da Ria Formosa foi fundado em 1987, após ter sido considerado uma Reserva Natural desde 1978. Estende-se ao longo de 60Km pela costa algarvia, entre o Ancão (concelho de Loulé) e a Manta Rota (concelho de Vila Real de Sto António). Ocupa, actualmente, uma área de cerca de 18.400 hectares e abrange partes dos concelhos de Faro, Loulé, Olhão, Tavira e Vila Real de Sto António.
A maior parte da sua área é constituída pelo sistema lagunar da Ria Formosa; um cordão de ilhas e penínsulas arenosas, alinhadas paralelamente à costa, protegendo uma laguna que constitui um labirinto de sapais; canais; zona de vasa e ilhotes. O cordão é formado, essencialmente, pela Península do Ancão (que inclui a “ilha de Faro”), as ilhas da Barreta, Deserta, Farol-Culatra, ilhas da Armona-Fuseta, de Tavira, Cabanas e, por fim, Península de Cacela.
Esta área foi classificada como Zona Húmida de Interesse Internacional, pela Convenção de Ramsar.
O passeio pela Ria é agradável, permitindo desfrutar de toda uma multiplicidade de cheiros e matizes que enquadram todos os tons de azul.
A bordo disponibilizam-nos binóculos, através dos quais podemos apreciar mais de perto a fauna que depende do sistema lagunar de sapal que é a Ria Formosa. Ali se podem observar em todo o seu esplendor garças brancas, garças pequenas, maçaricos galegos, andorinhas do mar, Fuselos, Ostraceiros e Corvos marinhos. A nossa monitora ia traduzindo os nomes para inglês, mas de vez em quando também o faz para francês ou castelhano.
O passeio inclui uma visita à ilha deserta, onde o visitante pode deambular pela praia ou então seguir os trilhos e penetrar no coração da ilha.
Um mau cartão de visita é o lixo que acena ao visitante logo que este põe o pé na ilha. Espólio do desleixo de visitantes menos conscienciosos, os sacos esperam pacientemente que uma entidade camarária faça uso do seu dever e os venha, por fim, recolher. Não é um bom sinal para que ensina às crianças as regras básicas da educação e do civismo.
De regresso a Faro os visitantes puderam provar algum do sabor das terras algarvias. A amêndoa, servida em doce fruto ou em licor, fez as delícias dos palatos dos marinheiros de ria. As crianças, quando regressam, preenchem um caderno de actividades relacionadas com o que aprenderam no passeio, pintam os desenhos das aves que reconheceram nos sapais. Regressam mais ricas, porque ficaram detentoras de um saber que não se aprende nos livros mas que a Fada Formosa ajudou a permanecer na sua memória.

*Com Ana Isabel Pacheco

O regresso das Cenas na Rua



Tavira abriu mais um festival Internacional de Teatro e Artes na Rua. Quinze dias cheiinhos de animação com programas para todos os gostos é o que a cidade do Gilão oferece ao seu público. Este ano a autarquia apostou em nove estreias que irão certamente surpreender o transeunte menos atento.
O recém-criado anfiteatro da Praça da República de Tavira foi pequeno para acolher o público que se juntou para admirar Niño Costrini, o artista argentino que desconcerta o público com o seu sentido de humor politicamente incorrecto. Saturados de um humor que se apoia no texto mais ou menos conseguido, na piada fácil, foi uma lufada de ar fresco ver Niño Costrini a roubar gelados aos transeuntes, a lançar o sapato de um espectador para o meio do público, a pedir por tudo para que os pais das crianças as agarrassem, pelo perigo do manuseamento do fogo, a interagir de forma saudável com o público. Excelente nos malabares, contundente no humor, Niño Costrini teve um desempenho excelente, provocando o riso espontâneo nos espectadores que assistiram à abertura do evento.
Dia 5, na Calçada da Galeria pôde-se assistir ao espectáculo O Pai do Gigante, pelo grupo ENTREtanto Teatro. Dia 6 foi a vez do Teatro Extremo actuar no Jardim do Coreto com o espectáculo Velho Palhaço Precisa-se. Sábado e Domingo, foi a vez do grupo sedeado em Tavira, Al-Masrah Teatro, apresentar a sua mais recente produção em estreia absoluta. Trata-se do espectáculo Carne para Cargueiro, baseado numa história verídica e que continua a mexer com o público.
O Teatro das Beiras surgiu na Praça da República dia 9 com o espectáculo de rua Os Piratas, ao que se lhe seguiu o grupo Alatak, que levou a Tavira um espectáculo baseado nas técnicas de vídeo jamming. Dia 11, com honras de fecho será a vez do espectáculo O Empresário, co-produzido pela ACTA e pela orquestra do Algarve ter a sua apresentação na Praça da República.
Herdeira de Faro Capital da Cultura, esta iniciativa permite olhar a cidade de Tavira de uma forma mais cosmopolita, assumindo-se como uma verdadeira cidade europeia.

Friday, August 17, 2007

O empresário - Um espectáculo completo



O espectáculo O Empresário, a partir da obra Der Schauspieldirektor, de Mozart, foi levado à cena três dias seguidos em três cidades algarvias. Este espectáculo, da responsabilidade conjunta da Orquestra do Algarve e da ACTA, assume-se como um espectáculo para as famílias onde a música se encontra com o teatro.
A Orquestra do Algarve e A Companhia de Teatro do Algarve, em associação com o Ópera Estúdio de Lisboa levaram a cena o espectáculo O Empresário, a partir da semi ópera de Mozart Der Schauspieldirektor. A encenação, tradução e dramaturgia estiveram a cargo de Paulo Matos que, com a maestria de um encenador experiente adaptou de forma exemplar o texto de Mozart à realidade contemporânea portuguesa. Os problemas de financiamento das companhias de teatro, a discussão sobre os critérios de qualidade, as cedências a que alguns directores se têm de sujeitar para poderem manter as suas companhias e poderem pagar os salários aos seus actores foram apontados com exactidão, expondo a nu os dramas diários de quem fez sua a profissão de actor.
Luis Vicente apresenta os seus dramas diários num registo sentido e quase comovente. Com o financiamento aceite, começam os malabarismos para se cumprirem todas as exigências do Ministério da Cultura e que, parecendo texto de comédia, de tão absurdas que são, na verdade, são bem reais.
Começa a preparação para o espectáculo com a elaboração do Casting, a que não são alheias todas as discussões inerentes à qualidade que se exige de um actor ou de um cantor, alimentadas pelos assistentes do director da Companhia, João Jonas e Afonso Dias. Os músicos aparecem, vindos do público, para se sujeitarem às audições, submetendo-se de imediato às instruções do maestro. O Casting começa e irrompe voluptuosa e sensual Elisabete Martins, interpretando uma actriz medíocre que se vale da sua ligação com um empresário para conseguir um papel de relevo na companhia. Interpreta Frei Luis de Sousa de forma histriónica e o poder do cheque faz com que ela seja aceite na companhia. Elisabete Martins expõe a sua graça natural neste papel, soltando-se e divertindo a plateia. O empresário Azevedo, interpretado por Luis Miranda também faz as delícias da assistência, com o seu ar assustado e submisso perante a sua insidiosa amante. Tânia Silva está muito consistente na jovem estudante de teatro que interpreta um grande texto clássico, com a sua candura que se transforma em força ao soltar o monólogo da Medeia.
Pelo seu lado, o maestro também parece sucumbir aos encantos de uma cantora que exige para si o papel de prima donna, interpretada por Lara Martins. Quando a cantora é confrontada com outra candidata igualmente virtuosa, Carla Caramujo, há uma disputa entre as duas candidatas a prima donna e acontece um fantástico duelo que tem por base a área da Rainha da Noite, da Flauta Mágica, de Mozart.
Não faltou a homenagem à Revista à Portuguesa pela mão de Glória Fernandes, divertida e solta num dos mais ousados textos levados a palco. Hilariante a reconstrução do clássico português O Costa do Castelo, na cena em que os jovens apaixonados, já envelhecidos, se reconhecem. Fernando Guimarães, para além da voz poderosa que mostrou revelou-se um actor de comédia bastante convincente.
A orquestra encantou nos pequenos trechos musicais que executou e os cantores brindaram os espectadores com as suas vozes de excelência.
Os figurinos de Rafaela Mapril dão ao espectáculo a dignidade que ele merece. Adequadíssimos, fazendo elevar a personagem de dentro do actor. A cenografia de Tó Quintas evoca o ambiente maçónico que se vivia na época de Mozart. A luz de Vasco Mósa realçou, no caso de Loulé, as arcadas do claustro da cerca do castelo onde o espectáculo decorreu. E nem o vento que se fez sentir distraiu o espectador do que era fundamental: o espectáculo.
Os quarenta e dois intervenientes, entre cantores, actores e músicos, contribuíram para que os espectadores regressassem a suas casas mais ricos, mais reconciliados com a vida, não deixando de lado o convite à reflexão.

O prazer de ver o teatro meridional



No dia Internacional do Teatro Loulé recebeu o Teatro Meridional com o seu espectáculo Por Detrás do Montes, encenado por Miguel Seabra. O segundo espectáculo do projecto províncias que procura mostrar a singularidade identitária que marca as diferentes regiões de Portugal. Um espectáculo onde a música e o corpo simbólico tiveram os papéis principais.
A voz profunda e humana começou a tomar conta do cineteatro louletano. Vindas de trás dos espectadores, os cantos intensos e penetrantes invadiram o espaço que já tinha a dimensão vibrante da música de Fernando Mota. Depois da música e das vozes os corpos dos actores começaram a tomar conta da cena, sendo por fim pintados pela luz de Miguel Seabra. O espectáculo Por Detrás dos Montes, encenado por Miguel Seabra, tem como referência o distrito de Bragança, no Nordeste Transmontano. Este é um espectáculo em que se sente a contaminação da matriz cultural transmontana. Como afirmou Natália Luiza, responsável pela dramaturgia do espectáculo, “este espectáculo visa falar de nós, saber de nós, aproximar-nos de uma matriz cultural que, embora comum, sempre esteve por detrás do granito dos Montes e que, sendo naturalmente permeável às exigências do mundo, mantém especificidades muito singulares.
Tal como no espectáculo anterior, não tivemos a veleidade de sustentar o trabalho numa recolha de informação antropológica, histórica, narrativa, mas antes deixarmo-nos contaminar por isso tudo e, pela observação sensorial, pelas sonoridades, pela paisagem, pelos sotaques, pela musicalidade, pelos rostos e pelas estórias. Formulámos então, subjectivamente, a forma como fomos tocados pelo Espírito do Lugar. O que escolhemos tornar narrativa cénica, primeiro intuída, e depois encontrada nos corpos e entendimento dos criadores.” Pelo decurso do espectáculo podemos dizer que esta equipa de criadores foi tocado pelo génio do local. Apesar de não utilizar a palavra como o meio privilegiado da comunicação cénica, o espectador tem a possibilidade de penetrar dentro da alma transmontana através da plasticidade do espectáculo. Como adiante Natália Luiza, o espectáculo “Serve-se e constrói-se nos corpos dos actores – aqui múltiplos no serviço da cena, das intenções e dos gestos, da música, da plasticidade do cenário e dos objectos, como que querendo pôr no lugar do palco, a energia guardada no silêncio das pedras. Põem-se e tiram-se as máscaras, para dizermos deste duplo significado que é a possibilidade de sermos mais outro, neste lugar onde o religioso e o profano, a verdade e a mentira, a ausência e o excesso se jogam na vida, tal como nós a jogamos no teatro.
Não tem um tempo diacrónico, antes fragmentado. Mas o espaço da cena é sempre lá, é aí, onde queremos estar, nesta visitação de quem atravessa e olha o lugar dos montes na geografia de quem os habita. Sabemos, porém, que embora queiramos estar e olhar por dentro das coisas, teremos sempre o olhar do visitante, aquele que é estrangeiro ao verdadeiro segredo. E trabalhar sobre o segredo, como conceito inerente à nossa percepção do lugar, foi uma das linhas condutoras da construção deste espectáculo. Porém, no lugar onde a matéria da intimidade se torna comunicação, queremos reafirmar o privilégio que é sentir, ser e interpretar os sinais de um lugar que é também nossa pertença, na geografia, na história e nos genes.”
Para o espectador foi um grato prazer penetrar nos mistérios do linho, da roca, da oração. Ver a oração transformar-se em coro grego e a máscara tornar-se rosto e corpo, pelo efeito da transformação operada pelo imaginário colectivo. Os tons castanhos e ocres das vestem redimensionam o olhar para a agrura das terras transmontanas. Os caretos impuseram-se na celebração festiva que dava origem à punição social. Uma punição que contribuía para a paz social, acabando tudo no baile da celebração do linho. Miguel Seabra disse a propósito desta sua encenação: “Encenar este espectáculo foi encaminhar invisivelmente uma procura colectiva que descobriu e propôs caminhos, que desenhou mapas, que inquietou certezas adquiridas, que alargou horizontes, que rasgou fronteiras e provocou instabilidades.
Foi fazer um percurso pelos segredos Detrás dos Montes e descobrir um sentido de identidade socialmente mais consciente e culturalmente mais humanizado.” Para o espectador, este foi um espectáculo que contribuiu para descobrir o humano que há dentro de si.

Libertar a partir da prisão

Sexta-Feira, os primeiros dias, foi o nome de uma oficina de criação e experimentação de múltiplas linguagens da cena com uma incidência particular na manipulação de formas e objectos e no movimento. Orientados pelos actores do Teatro do Ferro, os participantes nesta formação souberam libertar a alma de quem com eles partilhou as emoções da clausura.
Há muito tempo que não tinha oportunidade de assistir a um espectáculo tão bonito e intenso como o que aconteceu no Solar do Capitão-Mor no passado dia 12, às 18h00.
Entre 10 e 12 de Maio, entre o Solar do Capitão-Mor e o Teatro das Figuras desenvolveu-se uma experiência em função do colectivo e das suas especificidades. Esse espectáculo, da responsabilidade do Teatro do Ferro, foi o resultado de uma oficina de trabalho intenso que visa a preparação de um trabalho de longo fôlego para Novembro e que se irá chamar Sexta-Feira. Trata-se, como nos anuncia o nosso imaginário colectivo, de um trabalho que irá ter por base o texto Robinson Crusoé.
Para a preparação deste trabalho foi feito um convite à comunidade em geral. Não era preciso qualquer tipo de experiência e não fazia exigências ao nível da idade ou do sexo. Apenas era exigida disponibilidade total durante três dias. Feito o repto um grupo compareceu, com idades compreendidas entre os 9 e os sessenta. O desafio era recriar a sensação do náufrago quando se vê sozinho na ilha, de onde não consegue sair. A ilha torna-se uma prisão. Foi nesse sentimento de estar aprisionado que o grupo trabalhou, construindo as suas prisões interiores, visíveis através de pequenos objectos manufacturados pelos actores, numa oficina de construção de materiais.
No espectáculo entrava-se justamente pela oficina, passagem através da qual o público se confrontava com as ferramentas de que os actores se serviram para os ajudar a conceber os pequenos objectos com os quais iam interagir. Depois dessa passagem pelo mundo material passou-se para o mundo espiritual e simbólico. Este ficava oculto numa pequena sala que estava parcialmente coberta por panejamentos pretos. O público tinha de se posicionar da melhor maneira possível, estando atento à acção, que poderia surgir de qualquer lado. Os actores, um a um, iluminados por um único projector móvel, mostravam a sua relação com a prisão que tinham construído. Um diálogo intenso do actor com o objecto, mantido ao nível do corpo, mostrando que neste caso a palavra era supérflua. Os actores seguiam-se uns aos outros em silêncio e o público, também em silêncio, orientava os seus sentidos da melhor maneira possível. Da sala parcialmente coberta a preto, passámos a outra totalmente coberta de panos pretos, onde aconteceram mais duas interacções com os objectos, mantendo a ideia de prisão e de sufoco claustrofóbico. Depois destes dois momentos voltámos à sala mais clara, onde pudemos também observer uma interacção criada por uma criança. A solução, que foi buscar inspiração ao universo dos fantoches deu também a noção da inacessibilidade a da falta de comunicação que muitas vezes existe entre gerações. Um a um os actores apresentaram o seu conceito de clausura. Um a um, o público foi sendo surpreendido pelas propostas diferentes de interacção com objectos simbólicos, criados por cada actor. Durante toda esta passagem de testemunhos o público foi-se adaptando ao espaço como uma massa orgânica, em silêncio e com um sentido de partilha muito grande. O material (humano e imaterial) que se produziu nestes três primeiros dias de trabalho intenso será integrado no espólio/arquivo-vivo do espectáculo Sexta-Feira e alguns dos participantes poderão mesmo integrar o elenco do espectáculo. No fim o público ficou com a grande curiosidade de ver, em Novembro, o espectáculo concebido pelo Teatro de Ferro, a partir destas oficinas criativas. Esta iniciativa partiu do centro de animação e pedagogia do Teatro das Figuras e, apesar de ter sido o resultado de dois dias de trabalho o público ficou ciente de ter participado num ritual belo e intenso. Exactamente aquilo que precisamos para a vida.