Tuesday, November 28, 2006

Tudo é descartável. Até o amor



Um homem que chora, outro homem disfuncional sexualmente, uma mulher manipuladora dos sentimentos e uma bonequinha vestida de Jackie Kennedy que bate no marido são os quatro dados no tabuleiro das emoções que o encenador Francisco Campos preparou para o último trabalho da Ar Quente, uma recente Associação Cultural sedeada em Faro. Interpretado por Gil Silva, Joana Costa, Ricardo Mendonça e Susana Nunes, este trabalho parte da confrontação com um facto inquietante: tudo pode ser descartável. O trabalho, os sentimentos, e até o ser humano, quando é visto como um meio de se interpor à felicidade ansiada. A partir de um facto macabro, ocorrido no nosso país que mete morte, dissecação de cadáver e ocultação numa arca frigorífica, a trama acontece. Tudo parece correr bem até que a electricidade é cortada e o cadáver apodrece dentro da arca frigorífica. Os vizinhos denunciam o caso e o casal de amantes é preso e condenado. Este caso, que imita na perfeição uma história do Hitchcock, é uma nuvem que paira sobre a memória das quatro personagens. Há o homem abandonado pela companheira que chora e não consegue recuperar a sua vida. É gozado pelo seu superior, que faz uso de uma autoridade que não consegue manter com a sua mulher. Esse homem também chora. Por não ter filhos, pela sua sexualidade disfuncional, pela frieza da sua mulher, pelo abandono a que é votado. As mulheres não choram, são manipuladoras dos homens. Elas põem, dispõem, saem e entram nas relações e das famílias como se estas fossem de facto descartáveis. Os homens andam à sua mercê, fracos, reféns de uma sexualidade que não conseguem controlar. A trama está constituída, falta agora uma linha que una os fragmentos deixados ao acaso pelas personagens. Os actores desempenham razoavelmente as suas personagens, sem haver um esforço de interpretação muito profundo, refugiando-se nos clichés mais fáceis. O homem boçal e sensível que perdeu a mulher está bem caracterizado por Ricardo Mendonça que exagera no choro, retirando alguma verdade a uma personagem que podia ser a mais credível. Susana Nunes dá-nos, pela primeira vez desde há muito tempo, a musicalidade da sua voz, não tendo havido uma verdadeira transposição para as personagens que interpreta. Ali continuamos a ouvir e Susana Nunes e não Mariana, a mulher que sai de casa levando o filho em busca de uma felicidade perdida. O outro casal, constituído por Gil Sousa e Joana Costa, marcado por uma trágica disfunção na sua intimidade transpõem essa disfunção para o palco. Entram a dançar, metáfora corrente de uma sexualidade saudável, para dizer exactamente o contrário. A mulher, vestida como uma bonequinha supérflua dos anos sessenta, sem qualquer razão dramatúrgica para a assunção de um figurino tão marcadamente datado, domina a relação. A sua dureza extrema para com o marido contrasta com o afecto que dedica ao animal de estimação, o que também não é verdadeiramente original. A relação cénica entre estas duas personagens é pontuada por alguns momentos bem conseguidos que caem logo a seguir na banalidade, não conseguindo a encenação sustentar a tensão criada. As pausas são apenas paragens para mudar de cena, destruindo a tensão dramática. A relação entre os dois homens, marcada pelo sarcasmo, também é marcada pela incompletude, enquanto que entre as duas mulheres não existe verdadeiramente uma relação cénica. Neste trabalho são os homens que, sob uma capa de dureza, sucumbem e se mostram fracos, deixando-se manipular pelas mulheres, verdadeiras jogadoras perante as emoções e a vida. A ideia de matar o outro, tornado empecilho, parte delas, mostrando como prémio o bilhete para a felicidade suprema. De uma forma ou de outras, usando armas diferentes, elas põem e dispõem da vida como se fosse uma bebida com abertura fácil que se pudesse usar e a seguir deitar fora.
No entanto, faltou a este espectáculo a coluna vertebral que iria dar sentido quer ao enredo quer à credibilidade das interpretações. O que ficou, para além de quatro personagens dispersas à procura da sua felicidade descartável, foi um vazio gerado, não de forma assumida, mas deixado na cena ao acaso pela encenação. Alguns exercícios de confronto foram bem conseguidos, outros fomos reconhecendo aqui e ali como mais um dos que costumamos fazer nas oficinas de expressão dramática e de iniciação ao teatro, que se insinuaram assim na cena porque não foram suficientemente explorados. As interpretações estavam no caminho de uma interpretação cénica. Às vezes deixavam de o ser porque a emoção era abruptamente cortada. O crime que deu origem à criação deste espectáculo pairava subtilmente sobre as intenções cénicas mas podia ter sido mais explorado. Dir-se-ia que, mais que de um autor. Estas personagens andavam à procura de consistência que, não lhes sendo dada pela história, teria necessariamente de ser ultrapassada pela interpretação e pela intensidade dramática. Todas as histórias são fragmentos pensados por um autor, mesmo as mais complexas, as que cumprem as regras aristotélicas da escrita dramática. Mas enquanto personagens, têm de se mostrar completas e convincentes, mesmo nas suas fragilidades. Foi dessa completude que estas personagens andaram à procura o tempo todo. Por isso no final o espectáculo deu uma sensação de incompletude, porque as personagens não estavam trabalhadas por dentro, apesar dos actores terem tido desempenhos credíveis e ter havido bons momentos de contracena.
As luzes que davam continuidade ao cenário estavam bonitas mas as luzes que iluminavam os actores não o fizeram adequadamente. As expressões eram marcadas pelas sombras no rosto, não pontualmente, como seria interessante para realçar a monstruosidade em todos nós, mas de uma forma constante, o que lhe retira essa leitura. O suporte musical, que não vem devidamente indicado na folha de sala, também poderia ter sido mais explorado, pois quando o espectador se começava a adaptar à música, ela acabava abruptamente, provocando a tal quebra dramatúrgica, pois no caso desta proposta, o texto é constituído pelo todo fragmentado das intenções das personagens. Uma proposta interessante mas que deveria ter sido levada até ao fim no que diz respeito à exploração das personagens e da relação com o tema orientador. Por isso se sai deste espectáculo com uma sensação de incompletude, reflectindo não naquilo que falta em nós, mas procurando perceber o que falta no espectáculo e nas personagens. Não há uma verdadeira transposição e a função do teatro como crítica social não é cumprida. Apenas uma ideia chave muito forte, para quem ainda não tinha disso consciência: Tudo na vida é descartável. Até o Amor

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