Tuesday, November 28, 2006

Tavira honrou o seu engenheiro naval



O espectáculo sobre Álvaro de Campos apresentado na Biblioteca Municipal de Tavira foi o mais bonito que me foi dado ver este ano. Talvez um dos mais bem conseguidos espectáculos que me foi dado ver sobre poesia.
A nova biblioteca municipal, que cresceu à volta de um espaço de cárcere reaproveitado, foi explorada em múltiplas vertentes. Os espectadores eram convidados a fazer um percurso, acompanhando os actores pelos vários recantos do espaço a redescobrir ao som da poesia.
O espectáculo começa no espaço exterior com a construção de uma imagem na parede escura e rugosa. Dois actores chegam, munidos de escadas e, com uma fita adesiva clara desenham linha a linha a imagem de um barco de papel. Um terceiro actor, transportando uma mala de viagem conduz-nos, ao som da sua poesia, para o interior da biblioteca. O público vai, como que numa respeitosa procissão, e queda-se perante os cenários evidentes para a transmissão da poesia. Os espaços e os actores sucedem-se numa passagem de testemunho clara e compreensível. As palavras também lhes brotam da boca de forma clara, tornando-nos cúmplices da poesia de Álvaro de Campos.
Os circuitos são algo de recorrente nos espectáculos de teatro. A forma como se fazem é que será, ou não, de louvar. Este percurso, para além de nos mostrar a lindíssima biblioteca de Tavira, fez-nos viajar interiormente pelas sensações. Imagens visualmente belas, jogando com silhuetas nas sombras, completaram-se com um operário que ia construindo letra a letra a sua obra. Verdadeiro “operário em construção”, o actor desvendou o lado metafórico do poeta concebendo a sua imagem escrita..
De repente o público é conduzido para uma sala vazia onde, depois de apagadas as luzes, se dá início a uma reverberação sonora, ao mesmo tempo que se ouve a voz de José Louro, em off, muito suave e muito sentida, partilhando connosco a Insónia. Uma luz sob o rosto de um actor, de dentro de um quadrado, completa a imagem visual do poema.
Depois de sairmos dessa sala onde, impedidos de ver, pudemos sentir através do tacto e do ouvido, fomos conduzidos a um jardim interior onde duas árvores continham folhas de papel com textos do poeta. As folhas iam sendo lidas e oferecidas aos espectadores. E a recorrente imagem, interpretada num crescendo que caminha para um vertiginoso final ganha uma outra dimensão.
Damos a volta e confrontamo-nos com o papel escrito que expunha a silhueta do princípio do percurso. Esse papel é rasgado, lentamente, como se estivéssemos a rasgar as próprias entranhas do sentido da poesia e uma outra luz invadisse as palavras.
O último espaço a contemplar é outro jardim interior onde os três actores dão à dimensão do poema Se te queres matar a verdadeira dimensão pessoana da multiplicidade da imagem. Uma fragmentação do eu que apresenta Álvaro de Campos não apenas com a dimensão fria do engenheiro naval mas também com a dimensão sensual da imagética feminina, conferida magistralmente por Susana Nunes numa das imagens mais bonitas do espectáculo. Pedro Ramos mostra a raiva explosiva mergulhando entre os barquinhos de papel no dos lagos do jardim interior. O terceiro actor, Luis Campião, aproveita a sua aparente fragilidade caminhando circunspecto numa dimensão superior evoca o véu de angústia que constantemente paira sobre a sua poesia. No final os espectadores saem pela porta da antiga prisão, libertados pela poesia, ficando os actores encarcerados, separados do seu público por uma porta de grades, atrás da qual agradeceram os sentidos aplausos.
Com este espectáculo a biblioteca Álvaro de Campos recuperou a aura do poeta, já que a alma é alimentada por todos os que, diariamente, a frequentam. A delicadeza do poema, aliada à força da interpretação dos três actores, iluminou com uma luz diferente a poesia de Álvaro de Campos. Fragmentos que recuperaram por si só o sentido da totalidade.
A Companhia Al-Masrah continua a surpreender e a tornar ainda mais bonita a cidade do Gilão.

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