Tuesday, November 28, 2006

A curva ou uma nova dimensão do teatro no Algarve


O profissionalismo é uma atitude que se manifesta nos pequenos detalhes, nos pequenos nadas, como um simples bilhete de acesso a um espectáculo. Quem tivesse ido assistir ao espectáculo de estreia da companhia Al-Masrah conseguia ler no pequeno papel de ingresso toda a informação manifesta e latente respeitante ao espectáculo que iria ver. Autor, intérpretes, encenadora, e, desenhadas nas duas primeiras letras do título do espectáculo, um tracejado descontínuo numa curva perigosa à direita, sem qualquer sinalização adicional. Ao lado, a fotografia de um corpo acidentado, caído no chão. Está dado o mote, vamos então ao espectáculo. Um programa modesto mas com a informação necessária é distribuído à entrada. O texto de abertura de Zé Louro, ao lado de uma fotografia de carros acidentados, aguça-nos o espírito para as curvas que se nos vão deparando ao longo da vida, apanhando-nos desprevenidos. Curvas anunciando precipícios de que nos refazemos, melhor ou pior, consoante o grau de ilusão e de exigência.
O espectáculo A Curva, de Tankred Dorst, interpretado por Francisco Campos, Pedro Guerreiro Ramos e Rui Cabrita, traz-nos a amargura cínica de uma sociedade que se devora a si própria pelas teias burocráticas em que se enreda. Um texto que já se pode considerar clássico de um autor que escreve sobretudo teatro de experimentação, inspirando-se no absurdo que chega a ser a vida. A proposta do grupo Al-Masrah, conduzida por Isolda Barrios assenta sobretudo no trabalho de actor. Estes constroem personagens ricas e credíveis a partir de um texto cru, irónico e um pouco sinistro sobre a relação do poder com os problemas reais. Pedro Ramos distingue-se interpretando um homem atormentado com a tragicidade da condição humana. Incansável, faz petições ao director-geral, pedindo uma solução para se acabar com a sinistralidade causada por uma curva perigosa sem qualquer sinalização de aviso. Cria flores que enfeitam as sepulturas dos sinistrados e sofre com a percepção do destino trágico da vida. Concentra em si o espírito apolíneo, capaz de iluminar sem transgredir. O seu irmão, interpretado por Rui Cabrita, é mecânico, conserta os carros sinistrados, constrói as cruzes para as sepulturas e, dentro da sua rudeza, admira secretamente a persistência e a eloquência do irmão, por quem nutre uma secreta admiração e inveja. O seu complemento dionisíaco, disposto a transgredir em prol de uma harmonia muito própria. Francisco Campos interpreta o próprio director-geral, surpreendido nas malhas do seu próprio enredo burocrático. Acidentado na curva originária de 24 petições esquecidas nos seus dossiês, o director-geral movimenta-se com o jogo de cintura, tão característico do poder, iludindo até onde é possível a ilusão, os irmãos receptores da efemeridade da vida humana. Credíveis, as três personagens atacam as suas defesas e as suas inseguranças num jogo equilibrado e limpo, dentro de uma encenação que não apostou em grandes soluções mas que apresenta um espectáculo que prende o espectador do princípio ao fim, sem bocejar.
Com uma cenografia depurada, pensada para intensas digressões pelo Algarve, a iluminação foi o parente pobre desta produção. As mutações, acompanhando as mudanças psicológicas das personagens, não iluminam a cena adequadamente, notando-se a falta de contra luz em momentos fulcrais do espectáculo. A música também não teve o impacto forte que um espectáculo com um texto destes pediria. Mas as soluções cénicas, como a da cadeira feita a partir dos pneus, as cruzes construídas com o metal retorcido dos carros vitimados, ou a manta de retalhos lembrando as vidas retalhadas e despojadas do seu sentido primordial, transformando-se em mortalha e capacho são as duas propostas simbólicas e convincentes do espectáculo.
No geral A Curva é um espectáculo que prima pela ideia de equilíbrio, tanto ao nível da interpretação contida dos actores, como pelo ciclo anunciado no texto: a serpente que devora a sua própria cauda, para não morrer à fome.
Uma hora e quinze minutos que passaram num ápice. O instante trágico da cegueira em que o sol bate nos olhos e nos devolve à inevitável sepultura, com a qual nos confrontamos e que visitamos no final. “Lembra-te Homem que és pó e que ao pó hás-de voltar” são as sábias palavras recordadas todas as quartas-feiras de cinzas. Palavras oraculares que perante este espectáculo, tomam um sentido mais esclarecedor e pleno. Personagens com sangue e alma que assumem um registo realista sem deixarem, contudo, de apontar para um sentido mais abrangente, profundo e simbólico. Ou não representará o director-geral o cúmulo da perversão burocrática a que chegou o mundo ocidental, prisioneiro da sua indiferença e do seu absurdo? E os dois irmãos, não serão também, entre outros, símbolos de uma totalidade amorfa que se atordoa com os hiatos do poder, resolvendo-os por vezes da maneira mais abrupta e absurda.
Com espectáculos agendados para o teatro Lethes dias 27, 28 e 29 de Janeiro, esta companhia profissional recém formada regressa a Tavira em Fevereiro e promete percorrer o Algarve com este e outros espectáculos. Outras “caixinhas de surpresas”, no dizer de Isolda Barrios, sem fundo ou com fundo. Assim o esperamos ansiosamente.

No comments: